Evento realizado pela CEPAL no início de abril em Brasília, promoveu uma verdadeira lufada de oxigênio para renovar e revitalizar o pensamento desenvolvimentista no Brasil
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Paulo Kliass *
Há pouco mais de setenta anos, em fevereiro de 1948, a Organização das Nações Unidas adotou uma importante resolução, estabelecendo a criação da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). A conjuntura geopolítica do período posterior à Segunda Guerra Mundial envolvia a adoção de um conjunto de políticas voltadas à reconstrução dos países destruídos pelo conflito bélico, com a emergência de medidas inspiradas em estratégias que poderiam ser qualificadas genericamente como keynesianas e desenvolvimentistas.
A constituição e o fortalecimento da CEPAL ocorrem exatamente nesse movimento que incorporava algumas ideias-força importantes, tais como o planejamento econômico-social, os modelos de desenvolvimento e a afirmação do protagonismo do Estado para promover a redução de desigualdades. As duas primeiras décadas da existência da Comissão se combinaram ao fortalecimento de teses de industrialização e de superação dos obstáculos estruturais ao desenvolvimento autônomo dos países da região.
Intelectuais de grande destaque e competência, como o brasileiro Celso Furtado e o argentino Raúl Prebisch, tiveram atuação relevante no interior da CEPAL e deixaram um grande legado para a própria vida da instituição e para o pensamento crítico nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Iniciando uma trajetória que acabou por ser a marca da própria Comissão, ambos combinaram uma imensa vitalidade de produção acadêmica e uma atuação estratégica em termos de formulação e implementação de políticas públicas em seus respectivos países e no continente de forma geral.
CEPAL e o sonho desenvolvimentista.
É importante registrar a impressionante capacidade de resistência da instituição sediada em Santiago do Chile ao longo de todo esse período, desde sua fundação. Apesar dos momentos de ambiente bastante hostil às ideias originais que foram a base de seu surgimento, a CEPAL não desistiu de sua missão e nem capitulou às pressões para se adaptar às orientações do centro do poder. Superou a fase das ditaduras militares que foram instaladas em vários de seus países membros ente os anos 1960 e 1980. Sobreviveu ao período de maior força das ideias hegemônicas e esmagadoras do neoliberalismo e do Consenso de Washington. E segue ainda hoje firme na defesa de políticas para superar as desigualdades, o subdesenvolvimento e os entraves estruturais ainda existentes na América Latina e no Caribe.
Os eventos patrocinados pela Comissão e os documentos elaborados e divulgados por seus responsáveis e dirigentes marcaram uma espécie de trilha de insubmissão relativa às recomendações de políticas governamentais orientadas pelo viés da ortodoxia. Nos tempos em que conceitos como “planejamento” e “desenvolvimento” haviam sido substituídos por outros como “mercado” e “Estado mínimo”, a CEPAL tornou-se o depositório das esperanças de retomada da agenda presente em seu próprio DNA.
A incapacidade do receituário liberal conservador em dar conta da crise por que passa a região e o Brasil, em particular, é flagrante. A ruptura da ordem institucional e a trama do golpeachment de Dilma Rousseff é uma das faces mais trágicas dessa tentativa desesperada de recuperar o poder político de forma ilegítima e autoritária, com o único intuito de colocar em marcha uma agenda de governo que vinha sendo sistematicamente derrotada nas urnas desde 2002. O fracasso do austericídio só veio confirmar os equívocos de diagnóstico e de proposições do campo liderado pelo financismo.
Nova geração de jovens cepalinos.
Mas a sociedade brasileira é impressionante por seus mecanismos internos de geração de energia positiva e transformadora. Assim, ganham espaço no interior das novas gerações de intelectuais e formuladores algumas das sementes que estavam na base do pensamento crítico da Comissão. Refiro-me aqui à recuperação de debates importantes, tais como: i) a desindustrialização de nossa estrutura produtiva; ii) a destruição patrocinada pela dominância financista; iii) os riscos de retorno acentuado ao cenário das desigualdades; iv) o fim das ilusões com a inserção internacional irresponsável, tal como proposta pelo liberalismo; v) preocupação com a heterogeneidade estrutural que ainda marca nossa sociedade e nossa economia; vi) convergência para uma pauta que recupera a necessidade do protagonismo do Estado como indutor de políticas públicas; entre tantos outros assuntos.
O escritório da CEPAL em Brasília identificou acertadamente esse movimento de recuperação da análise crítica e decidiu conferir a ele papel de destaque. Afinal, trata-se de uma nova geração de jovens cepalinos, que assumem a missão de dar continuidade aos trabalhos e aos sonhos daqueles que dedicaram suas vidas à redução das desigualdades e à melhoria das condições da vida da população latino-americana. Assim, temas que passaram a ser considerados verdadeiros tabus para o establishment - como a chamada relação “centro-periferia”, por exemplo - voltam ao centro da discussão.
O evento “Aportes de uma nova geração para a mudança estrutural com igualdade”, realizado no início de abril, foi um importante marco para a coordenação a discussão ampliada de tais ideais. Além disso, o encontro ofereceu aos participantes a reafirmação de que ainda existe vida inteligente no universo de economistas e demais pensadores críticos nas ciências sociais. Diversos professores e pesquisadores de várias universidades e instituições públicas exibiram toda sua competência no debate e na proposição de aspectos essenciais de um projeto estratégico de país. A abordagem crítica ali presente com certeza encheria de orgulho as principais figuras fundadoras do pensamento estruturalista.
Olhar para o futuro com as ferramentas do desenvolvimentismo.
A intenção primeira do seminário era “reunir jovens professores e pesquisadores que compartilham de diagnósticos minimamente convergentes, nos quais a crise brasileira se explica por razões estruturais, e se enfocará em debater alternativas para o futuro, em que a superação da crise envolva enfrentar problemas de longo prazo, ao mesmo tempo em que contém no centro da agenda a temática do desenvolvimento com igualdade.” Ao final do segundo dia, o clima de balanço entre os participantes era de muita esperança quanto ao cumprimento de tal missão.
A publicação próxima de um livro contendo um conjunto de artigos desses jovens autores servirá como alicerce importante para a estruturação deste pensar crítico renovado de temas como o desenvolvimento e a superação das desigualdades. Trata-se de uma contribuição essencial da nova geração de pensadores brasileiros para consolidar a comemoração merecida e necessária das sete décadas do sonho de Prebiusch, Furtado e tantos outros.
Uma verdadeira lufada de oxigênio para renovar e revitalizar o pensamento desenvolvimentista no Brasil e na América Latina. A mudança estrutural de nossas sociedades continua como item prioritário na ordem do dia. A iniciativa da CEPAL vem oferecer os instrumentos para compreender e interpretar a realidade que pretendemos transformar.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Publicado em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/A-atualidade-necessaria-da-CEPAL/7/39851
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