General demitido vinha adotando procedimentos mais rigorosos para emitir títulos de propriedade a ocupantes de terras públicas na região amazônica. Governo nomeia pecuarista para substituí-lo no comando do órgão.
Em meio a uma disputa no governo Jair Bolsonaro sobre os critérios para a concessão de títulos de propriedade a ocupantes de terras públicas na região da Amazônia, a demissão do presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), general João Carlos Jesus Corrêa, foi publicada no Diário Oficial nesta quinta-feira (17/10).
Corrêa vinha adotando procedimentos mais rigorosos para emitir os títulos, o que impedia sua concessão em massa em pouco tempo – em julho, ele havia lançado a meta de conceder 25 mil títulos de propriedade definitiva até o final do ano. Esse ritmo foi considerado insuficiente pelo secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, que também é presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR) e se engajou na campanha de Bolsonaro a presidente.
A tendência agora é o governo tentar flexibilizar os requisitos exigidos para que ocupantes de terras públicas recebam títulos de propriedade. No início de outubro, Garcia anunciou que o governo estava preparando uma medida provisória para promover a regularização fundiária por meio da autodeclaração.
Se a medida for efetivada, o interessado em solicitar a propriedade de uma terra pública declararia ele mesmo a área, sem a necessidade de o governo fazer uma vistoria no local ou realizar uma medição independente.
O governo nomeou como novo presidente do Incra Geraldo Melo Filho, que atuava como secretário adjunto de Relacionamento Externo da Casa Civil. Pecuarista, Melo Filho é sócio da Guzerá Agropecuária, que possui fazendas em Minas Gerais, e foi conselheiro da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu e superintendente da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA). Ele também é filho do ex-senador e ex-governador do Rio Grande do Norte Geraldo Melo.
O problema das terras públicas na Amazônia
O governo federal não sabe exatamente qual o tamanho das terras públicas que possui na região. Essas áreas começaram a ser incorporadas ao patrimônio da União durante a ditadura militar, mas projetos para medir e registrar as glebas não foram concluídos.
A regularização é benéfica para pequenos agricultores na região amazônica, entre os quais muitos receberam o direito de usar terras públicas próximas a rodovias federais nos anos 1970. O título permite que eles consigam financiamento e reduz sua vulnerabilidade a conflitos.
Mas a regularização também pode beneficiar pessoas que ocuparam grandes áreas públicas de forma ilegal, e que desmataram e queimaram floresta sem autorização para convertê-la em pasto.
Em 2009, o governo federal lançou o programa Terra Legal, que visava regularizar 55 milhões de hectares de terras públicas federais (área equivalente a quase 1,5 vezes o tamanho da Alemanha) e conceder títulos de propriedade a cerca de 160 mil pequenos agricultores na região da Amazônia. Em junho de 2017, o programa havia emitido 28.499 títulos, correspondendo a cerca de 13,4 milhões de hectares.
O governo Bolsonaro extinguiu o Terra Legal e transferiu a atribuição de regularização fundiária ao Incra, que por sua vez foi colocado sob a alçada do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
Em 17 de setembro deste ano, o Incra criou um comitê gestor para "planejar, orientar, coordenar e supervisionar" a execução descentralizada das ações de regularização fundiária na Amazônia legal, composto por representantes da diretoria do órgão e de 11 subcomitês regionais do Incra na região, para dar conta do "aumento significativo das demandas para regularização".
As decisões sobre concessão de títulos passam pelas superintendências do Incra nos Estados, sujeitas a indicações políticas, com nomes escolhidos por congressistas.
A demissão de Corrêa
O ex-presidente do Incra vinha sofrendo críticas públicas de Nabhan, que reclamava da demora na concessão de títulos de terra.
Segundo reportagem do jornal O Estado de S.Paulo, do início de outubro, ao saber que seria demitido, Corrêa enviou mensagem a um grupo de WhatsApp de servidores do Incra afirmando que ele havia tentado fazer um "saneamento" no órgão. "Como estávamos contrariando interesses e agindo com ética e honestidade, passamos a ser pedra no sapato", escreveu.
Também em outubro, Nabhan anunciou o plano do governo de usar a autodeclaração para a regularização de terras, e disse à agência Reuters que a saída de Corrêa facilitaria o andamento da medida provisória no Congresso.
José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará, afirmou à DW Brasil que Corrêa, por ter formação militar, estava adotando mais cautela no procedimento administrativo, o que desagradou o setor ruralista.
"Os ruralistas que querem ser beneficiados pela regularização fundiária em terras públicas têm pressa e querem o controle total dos órgãos responsáveis. Esse setor já assumiu a direção das três superintendências do Incra no Pará, estado emblemático por ter milhões de hectares de terras griladas por madeireiros e grandes proprietários", diz.
A proposta de autodeclaração
Atualmente, ocupantes de uma terra pública até dezembro de 2011 podem fazer um pedido de regularização fundiária. Antes de conceder o título, porém, o governo verifica os documentos, realiza georreferenciamento para medição e descrição das características da área, analisa se há conflitos com outros interessados e faz uma vistoria no local.
Nabhan não deu detalhes sobre como seria a autodeclaração, mas afirmou que deve ser um processo ágil, e que o governo "precisa dar um voto de confiança naquele cidadão que está na terra, trabalhando".
Na prática, segundo Afonso, a autodeclaração dispensaria a vistoria do governo no local e facilitaria que grileiros e ocupantes ilegais obtenham o título de propriedade de terras públicas. "A autodeclaração é a liberação total, é como se dissesse ‘desmate, toque fogo, ocupe e depois declare a área onde tu tens a nova fazenda que o governo vai regularizar’", afirmou.
Jerônimo Treccani, professor de direito da Universidade Federal do Pará, afirma que a estratégia é congruente com a visão do governo Bolsonaro para a Amazônia, que segundo ele remete à da ditadura militar, que também incentivou a ocupação da área de forma irregular por se tratar de "interesse nacional".
Outro aspecto, diz, é priorizar grandes proprietários em vez dos pequenos produtores e da reforma agrária. "A transferência do Incra para o Ministério da Agricultura, feita pelo Bolsonaro, vai nesse sentido. O Ministério da Agricultura é conhecido como o ministério do agronegócio, e colocar o Incra lá significa que não vai ter chance para pequeno e médio produtor, que quem vai dar a regra do jogo é o grande proprietário", diz.
Essa tendência, diz Treccani, já havia sido acentuada pelo governo Temer, que ampliou a área máxima de terreno sob terras públicas que pode ser alvo de regularização fundiária, de 1,5 mil hectares para 2,5 mil hectares. Sob Temer, a data limite de ocupação da área pública também foi alterada, de dezembro de 2004 para julho de 2008, ampliando o número de potenciais beneficiados. O professor da UFPA afirma ser provável que essa data limite seja novamente alterada sob Bolsonaro, "trazendo-a mais próxima do presente e beneficiando aquele que ocupou terra de maneira ilegal".
A DW Brasil tentou contato com o Ministério da Agricultura e com Garcia, mas não obteve resposta.
Fonte: DW Notícias
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