O século XX de Eric Hobsbawm.
Por David Marcus
Nas últimas semanas de 1954, Eric Hobsbawm e um pequeno grupo de historiadores britânicos partiram em uma viagem amistosa a Moscou. Era uma época estranha para se visitar a União Soviética, e ainda mais estranha para um comunista ansioso para ver as conquistas de um socialismo que realmente existia. Stalin tinha morrido no ano anterior, e seu corpo jazia embalsamado em uma caixa de vidro na Praça Vermelha. Depois de uma feroz luta pelo poder, Khrushchev tinha conquistado o controle do governo, mas as intrigas abundavam. Beria, o líder dos serviços de segurança há muito tempo, tinha sido julgado e executado secretamente. Molotov e Malenkov, defensores inabaláveis do velho regime, estavam de saída. Dezenas de milhares de prisioneiros, soltos depois da morte de Stalin, estavam saindo do gulag com histórias de terror sobre fome e tortura.
À primeira vista, nada pareceu inadequado para Hobsbawm e seus companheiros de viagem. Ao chegarem a Moscou, eles conheceram o elaborado sistema de metrô da cidade, antes de serem levados a Leningrado em elegantes vagões noturnos do Flecha Vermelha. Voltando à capital depois de uma performance de matinê do Lago dos Cisnes, eles passaram o Ano Novo com os maiores cientistas do país em meio a canapés e champagne. Mas à medida que os historiadores se acomodavam, eles começaram a suspeitar de que havia algo errado. Os intelectuais que conheceram eram extremamente discretos e eram receosos de conversar de forma privada. Os acadêmicos do grupo que vinha da Academia Soviética de Ciências pareciam quase inteiramente separados da academia ocidental. Quando os historiadores passearam fora do centro da cidade, eles encontraram uma Moscou extremamente cinza e remendada. Em uma rua abandonada, viram um grupo de “mulheres de meia-idade, supostamente viúvas de guerra, rebocando pedras e limpando entulhos”. “Como VIPs intelectuais”, Hobsbawm mais tarde observou, “quase certamente foi-nos fornecida mais cultura... assim como uma embaraçosamente grande quantidade de produtos e privilégios em um país visivelmente empobrecido... Não foi uma boa propaganda para o comunismo.”
Ao retornar à Inglaterra, Hobsbawm recebeu um conjunto de revelações ainda piores. No começo de 1956, Khrushchev fez seu discurso esboçando como era o brutal reinado de terror de Stalin. No verão, trabalhadores poloneses fizeram uma greve na cidade industrial de Poznan, impulsionando uma onda de protestos contra o governo soviético que fora imposto, e então foram metralhados pelo exército. No outono, depois de uma revolução na Hungria ter levado o país a sair do Pacto de Varsóvia, Khrushchev enviou os tanques. Milhares foram mortos, o primeiro-ministro foi deposto, e o país foi forçado novamente a entrar no grupo soviético.
Para um número cada vez maior de amigos próximos de Hobsbawm — Christopher Hill, E. P. Thompson, Raphael Samuel, Rodney Hilton — já bastava: enraivecidos com as ações soviéticas e pela recusa do Partido Comunista Britânico de denunciá-las, eles romperam de vez com o comunismo. Hobsbawm, entretanto, persistiu. Ele também estava horrorizado com os eventos na Hungria e com a brutalidade documentada pelo discurso de Khrushchev, e publicamente lamentou que os partidos comunistas dos dois lados da Cortina de Ferro tinham “deixado de lado qualquer resquício da democracia [que eles] originalmente tinham”. Porém, enquanto que mais de seus camaradas pulavam do navio, Hobsbawm continuava — e por mais 40 anos. Foi somente depois do colapso da União Soviética que ele deixou sua filiação ao partido prescrever, e mesmo então insistiu quanto a que “sonho da Revolução de Outubro ainda estava em algum lugar dentro de mim”. Citando um dos poemas de Bertolt Brecht — “Nós, que queremos preparar o terreno para a bondade / Não podíamos nós mesmos ser bons” — ele explicou: “A dureza foi forçada sobre os revolucionários”.
Hobsbawm foi um dos historiadores mais importantes do século XX. Talvez tenha sido o mais importante na língua inglesa. Sua série épica sobre a construção do mundo moderno — A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e A Era dos Extremos — introduziu milhões de leitores à história dos séculos XIX e XX. Sua pesquisa sobre banditismo, nacionalismo e a “invenção” da tradição ajudou a inspirar campos inteiros de historiografia britânica e estadunidense. Sua prosa era simples e elegante, sem a complicação dos modismos teóricos do momento. Seu julgamento histórico estava cheio de profundas percepções e ironias aguçadas de um historiador que parecia “saber tudo”. Ainda assim, parte do enigma de Hobsbawm é que, enquanto escrevia com uma sensibilidade tão aguda sobre as contradições e trágicas reviravoltas da era moderna, ele nunca parecia aceitar completamente a realidade em relação àqueles que confrontavam suas próprias convicções. “Por que”, Perry Anderson uma vez refletiu, “ele ficou até o amargo final?”
A nova biografia de Richard Evans, Eric Hobsbawm: A Life in History (Eric Hobsbawm: Uma Vida na História, em tradução livre), dá algumas pistas sobre este quebra-cabeça enquanto também defende a ideia de que essa pode não ser a pergunta correta a se fazer. Envolventemente narrado e meticulosamente pesquisado — entre outras coisas, Evans retira dados de 50 anos de relatórios de vigilância do MI5 — o livro provê um retrato com mais nuances do desenvolvimento político e intelectual de Hobsbawm, revelando que ele era um comunista muito mais ambivalente e um socialista muito mais pragmático do que seus críticos e adoradores alguma vez reconheceram.
Assombrado pelos fantasmas do sectarismo dos anos 1930, Hobsbawm defendeu o Partido Trabalhista durante a segunda metade do século XX — e não somente suas facções radicais. Depois das provações de 1956, ele participou de uma tentativa de democratizar o Partido Comunista Britânico e, quando isso fracassou, ele abandonou quase todas as atividades do partido. Socorrendo-se na política da América Latina e da Europa Ocidental, ele gastou grande parte de seus últimos anos defendendo os socialistas práticos dispostos a construir coalizões com os liberais e com o trabalhismo organizado. Para Hobsbawm, uma frente popular era mais do que uma estratégia defensiva; era a base sobre a qual a mudança igualitária poderia ocorrer.
Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, Egito, em 1917, somente cinco meses antes dos bolcheviques tomarem o poder na Rússia e um ano e meio antes da Primeira Guerra Mundial terminar. Seu pai tinha vindo da classe trabalhadora pobre e engajada de Londres, e sua mãe, de uma próspera família judia austríaca. Os dois se conheceram no distrito colonial de Alexandria, casaram-se e passaram a lua de mel na Suíça, e então se acomodaram em um confortável lar vitoriano na cidade, inclusive com uma babá para Eric. Segundo todas as fontes, seu tempo na cidade foi agradável. O pai de Eric trabalhava nos serviços telegráficos, e sua mãe começou uma carreira como escritora e tradutora. O período também foi curto: em 1919, uma rebelião anticolonialista entrou em erupção, e os Hobsbawms foram para a Viena de sua mãe, para nunca retornar.
Lá, no mundo crepuscular de uma metrópole anteriormente grandiosa, Eric e logo mais sua irmã mais nova cresceram. Brigas de rua e ameaças de golpes eram eventos diários. O mesmo pode-se dizer da dificuldade econômica: ninguém — nem mesmo a família de alta classe de sua mãe — tinha dinheiro, e os Hobsbawms batalharam para colocar comida na mesa. As coisas ficaram ainda piores depois de 1929. Voltando para casa depois de um dia gasto em busca de dinheiro para receber por trabalho ou como empréstimo, o pai de Eric morreu de um ataque cardíaco. Pouco tempo depois, sua mãe adoeceu e morreu. Com idades de 14 e 10 anos, Eric e sua irmã tinham se tornado órfãos.
A partir de então, os irmãos Hobsbawm viveram uma vida peripatética e economicamente austera, em um mundo que estava prestes a curvar-se sob o peso da devastação econômica e de um fascismo em ascensão. “Estávamos no Titanic”, Hobsbawm mais tarde recordou, “e todos sabiam que ele ia bater no iceberg”.
Depois de meses pulando de parente em parente, a dupla terminou em Berlin, onde um tio os acolheu. Em Berlim, onde “o mundo estava visivelmente se desfazendo”, Hobsbawm tornou-se um comunista. A escolha era fácil: em uma cidade cambaleando entre duas revoluções — uma fascista e outra socialista: o que mais ele escolheria? Alguns de seus colegas judeus tinham esperanças em uma terceira alternativa: uma empreitada por um Estado judeu. Mas já tendo passado por dois países assolados pelo nacionalismo, e agora em um terceiro, Hobsbawm tinha chegado à conclusão de que a única revolução para ele era a da libertação mundial.
Praticamente sem supervisão familiar, Hobsbawm jogou-se em um turbilhão de agitação. Ele colocava panfletos sob as portas de apartamentos e participava de marchas gigantes por toda a cidade. Escapava das Tropas de Assalto em bondes e escondia um mimeógrafo proibido embaixo de sua cama. Ele se incomodava com a posição sectária de seus colegas comunistas em relação aos social-democratas, mais tarde observando que “chegava à insanidade política”. Mas ele manteve a disciplina do partido. Acima de tudo, Hobsbawm tinha encontrado uma nova família. “Pertencíamos uns aos outros”, recordou ele.
Em 1933, os irmãos Hobsbawm foram forçados a mudar-se novamente — desta vez para Londres. Como cidadão britânico e falante nativo de inglês, Hobsbawm considerou a mudança mais como uma volta ao lar do que um exílio, e ele imediatamente abraçou o país. Um ciclista ávido, passava os feriados andando de bicicleta pelos campos (“se a mobilidade física é uma condição essencial da liberdade”, mais tarde ele observou, “a bicicleta tem sido provavelmente o melhor equipamento para alcançar o que Marx chamou de completa realização das possibilidades do ser humano ... desde Gutenberg”). Ele aproximou-se de seus parentes de Londres, em especial de um tio que era um conselheiro local do Partido Trabalhista, e “devorou” tudo o que conseguiu encontrar de poesia e ficção inglesa.
Depois de três anos, Hobsbawm conseguiu entrar no King’s College, em Cambridge. Exultante com a notícia, ele marcou a ocasião em seu diário com uma paródia de autorretrato:
Eric John Ernest Hobsbaum, um rapaz alto, anguloso, cambaleante, feio e de cabelos claros de 18 anos e meio ... Alguns o consideram extremamente desagradável, outros amável, e ainda outros (a maioria) simplesmente ridículo. Ele quer ser um revolucionário, mas, até o momento, não demonstra nenhum talento para organização. Ele quer ser um escritor, mas não tem energia... Ele é vaidoso e convencido. Ele é um covarde. Ele ama a natureza profundamente. E ele esquece a língua alemã.
Ele até se permitiu um pouco de otimismo: “Talvez, só talvez, eu viva uma vida menos ‘de segunda mão’?”
Matriculando-se em 1936, Hobsbawm descobriu uma Cambridge ao mesmo tempo paroquial e estimulante. Era cheia de quadras enclausuradas, de gramados que não se podia cruzar, e dos preguiçosos filhos semianalfabetos da classe dominante da Inglaterra. Para sua surpresa, também acabou encontrando “a geração mais vermelha e radical da história da universidade”. Com os fascistas ameaçando invadir a Europa, era necessário escolher lados — mesmo em um campus universitário distante.
Ajudando a liderar o ramo estudantil do Partido Comunista, Hobsbawm juntou-se à organização da “incubação da revolução” na universidade em um conjunto de quartos bem abaixo do de Ludwig Wittgenstein. Com memórias amargas da Berlim sectária ainda frescas em sua mente, ele trabalhou duro para ampliar as atividades do ramo e forjar alianças com socialistas, liberais e outras facções de esquerda no campus. “Tínhamos”, recordou ele, “somente um grupo de inimigos — o fascismo e aqueles que (assim como o governo britânico) não queriam resistir a ele”.
Hobsbawm também prosperou social e intelectualmente. No centro vermelho de Cambridge, ele rapidamente ganhou a reputação entre estudantes e professores como o “calouro em King’s que sabe tudo sobre tudo”. Ele descobriu uma afinidade por história e foi particularmente arrebatado pelo trabalho de abrangência mundial de Marc Bloch e da francesa escola dos Annales. Em seu terceiro ano, ele era editor da Granta, na época a maior revista estudantil de Cambridge; foi convidado para fazer parte dos Apostles, onde jantou com pessoas como E. M. Forster; e ganhou uma bolsa de pós-graduação para estudar a história colonial do Norte da África.
O avanço rápido de Hobsbawm pelas fileiras da elite intelectual e socialista da Inglaterra, entretanto, foi encurtado pela Segunda Guerra Mundial. No ano em que se formou, a Alemanha invadiu a Polônia, e ele foi recrutado pelo Exército Britânico. Ele esperava usar sua fluência em alemão e francês na luta contra o fascismo e tentou conseguir uma posição na inteligência. Mas os militares britânicos tinham outros planos: colocando-o sob vigilância por suas atividades comunistas, o exército relegou-o a uma unidade doméstica de construção de trincheiras e depois a uma divisão de educação. “Não tive nem uma ‘guerra boa’ nem uma ‘guerra ruim’”, Hobsbawm mais tarde relatou, “mas uma guerra vazia”.
Seus anos de guerra, entretanto, deram-lhe a oportunidade de desenvolver um interesse pela história popular. Ao criar cursos para os recrutas do exército que em geral vinham da classe trabalhadora, Hobsbawm descobriu os prazeres de ensinar e escrever para uma audiência geral. Impressionado pela orgânica “noção de classe, camaradagem e ajuda mútua” de seus colegas soldados, ele mudou sua área de especialização e embarcou em um estudo dos trabalhadores britânicos. Ignorado para uma série de posições em Cambridge — provavelmente por causa de suas afiliações comunistas — ele continuou a desenvolver seu interesse em história popular da classe trabalhadora depois da guerra. Em 1947, entrou no Birkbeck College de Londres como docente, uma escola noturna para trabalhadores adultos. Ele continuou lá por quase todo o resto de sua vida.
Apesar de ter encontrado um emprego proveitoso, os anos pós-guerra de Hobsbawm foram sombrios. Durante a guerra, ele casara-se com uma companheira comunista, uma jovem que estudava na London School of Economics. Porém, depois de seu retorno do exército, seu casamento se desfez. Seus dois primeiros livros — um sobre a história do trabalho assalariado e outro sobre o fabianismo — foram rejeitados por editoras por serem radicais demais. Os serviços de segurança britânicos não reduziram a vigilância sobre ele depois da guerra; eles a aumentaram. Ele suspeitava de que seu orientador da faculdade, M. M. Postan, estivesse sabotando suas candidaturas a empregos com recomendações de “flecha envenenada”.
A direção sectária do Partido Comunista depois da guerra também se provou desencorajante. Não sendo mais galvanizada pelas emergências dos tempos de guerra, a liderança do partido abandonou sua posição de frente popular e começou a travar uma campanha contra o Partido Trabalhista para dividir votos. “O que esperamos conseguir com essa disputa”, Hobsbawm escreveu em uma carta enraivecida para o Daily Worker, “além da chance de fazer ataques individuais ao líder do Partido Trabalhista?”
Hobsbawm, no entanto, descobriu novos círculos de amigos, que o ajudaram a animar-se novamente: situando-se em um grupo de historiadores comunistas dissidentes — Christopher Hill, E. P. Thompson, Dorothy Thompson, Rodney Hilton, Raphael Samuel, Dona Torr — ele fundou o Grupo de Historiadores do Partido Comunista e o periódico Past & Present com a meta de ajudar a popularizar a história da classe trabalhadora. Passando tempo nos clubes de jazz de West End em Londres, ele também encontrou consolo e camaradagem em sua “franco-maçonaria internacional semicontracultural” de músicos vanguardistas, e começou a escrever uma série de colunas musicais sob um pseudônimo no The New Statesman.
O tempo que Hobsbawm esteve com esses dois grupos também inspirou seus dois primeiros livros publicados que, dado o seu crescimento meteórico entre a elite intelectual da Inglaterra no período anterior à guerra, vieram bastante tarde na idade de 42 anos. Em 1959, ele publicou A História Social do Jazz, uma história social e cultural abrangente da forma musical. No mesmo ano, ele também publicou Rebeldes Primitivos, um trabalho considerável de pesquisa sociológica e histórica que examinou as formas de resistência da classe trabalhadora — o anarquismo andaluz, a bandidagem italiana, o ludismo britânico — há muito ignorados pelos historiadores da esquerda.
Nenhum dos livros tornou o nome de Hobsbawm conhecido pelo público, nem lhe deu grandes somas de dinheiro. Porém, ambos o ajudaram em seu progresso como historiador e intelectual, abrindo novos mundos a ele sobre a vida da classe trabalhadora e a vida radical. Junto com outros livros produzidos pelo Grupo de Historiadores — O Mundo de Ponta Cabeça de Christopher Hill, A Formação da Classe Operária Inglesa de E. P. Thompson, Os Cartistas de Dorothy Thompson — o livro Rebeldes Primitivos também ajudou a revolucionar como a história inglesa era estudada em ambos os lados do Atlântico.
Em sua publicação inicial, Rebeldes Primitivos deve ter parecido um livro estranho para um PhD de Cambridge escrever, mesmo um com admitidos comprometimentos radicais. O estudo de história naquela época era dividido em geral entre duas linhas: historiadores políticos que mapeavam a ascensão e queda de nações e impérios sob a lente das elites — reis, primeiros-ministros, generais — que as lideravam; e historiadores econômicos que examinavam as instituições e grupos de interesse que competiam entre si que definiam o sistema comercial de uma nação ou império em particular. Os historiadores marxistas, assim como os liberais, dividiam-se entre essas frontes: os poucos marxistas que escreviam na época estudavam ou as vanguardas revolucionárias que buscavam transformar a sociedade através da tomada do Estado, ou as grandes forças econômicas que ajudavam a assentar as fundações do capitalismo moderno.
Rebeldes Primitivos tentou fazer algo completamente diferente: assim como A História Social do Jazz, seus protagonistas eram pessoas nas margens, desabrigadas da modernidade. Eles eram primitivos não porque lhes faltava sofisticação ou coordenação — Hobsbawm foi cuidadoso em mostrar o oposto — mas porque não se conformavam com como a maioria dos socialistas e liberais entendiam a política moderna. Seus rebeldes não queriam tomar o Estado; eles basicamente queriam sustentar seus modos de vida sob ele. Eles eram fazendeiros espanhóis formando coletivos de agricultura, artesãos ingleses quebrando máquinas de tear e camponeses sicilianos armando-se em autodefesa.
A política de Rebeldes Primitivos pode ter sido difícil de decifrar em um primeiro momento, dado o seu distanciamento tanto da historiografia marxista quanto da liberal. Mas assim como o trabalho do resto do Grupo de Historiadores, ela brotava de um desejo de recuperar momentos de ação da classe trabalhadora que ocorreram sob o embate titânico entre elites e estruturas econômicas em competição. Não mais convencidos de que um partido disciplinado era a única forma de avançar, ele e seus colegas queriam resgatar dos anais da história as tradições de resistência que não eram abrangidas pela alçada da esquerda socialista, seja em sua variedade revolucionária e bolchevique ou em sua variedade reformista e fabiana.
1956 esteve no centro deste projeto. A crescente burocratização dos países comunistas e social-democratas depois da Segunda Guerra Mundial tinha levado Hobsbawm e o Grupo de Historiadores aos arquivos em busca de formas mais democráticas de radicalismo, e o colapso pós-guerra da frente popular estimulou-os ainda mais. Mas foram os traumas de 1956 — o discurso de Khrushchev, Poznan, Hungria, o envolvimento britânico na Crise de Suez — que catalisaram sua percepção de missão: nem a social-democracia do Atlântico Norte nem o comunismo no bloco soviético pareciam fiéis aos ideias da esquerda. De um passado útil — eles esperavam — poderia vir um presente mais igualitário, e por isso deram ao seu periódico o nome Past & Present (Passado e Presente).
Um ponto forte crucial da biografia feita por Evans é que ela mostra o quanto isso foi o caso tanto para Hobsbawm quanto para aqueles que deixaram o partido. Depois do discurso de Khrushchev, Hobsbawm foi coautor de uma carta raivosa denunciando o Partido Comunista Britânico por seu “apoio sem críticas a todas as políticas e ideias soviéticas”. No rescaldo da violenta supressão da revolta húngara, ele assinou uma declaração pública depreciando o servil “apoio dado pelo Comitê Executivo do Partido Comunista à ação soviética na Hungria”. Recusando-se a ser disciplinado, ele ajudou a lançar uma campanha para reformar o partido britânico por dentro, insistindo em que “o teste da democracia dentro do partido é se a política e a liderança podem ser modificadas de baixo para cima”. Quando isso fracassou, ele tentou derrubar a liderança do partido e então abandonou quase todas as atividades formais do partido. “A Hungria foi a última gota d’água para E[ric]”, reportou um membro do Grupo dos Historiadores em uma carta interceptada pelos serviços de segurança britânicos. Hobsbawm tinha se tornado um “oportunista” e um “personagem perigoso”, reclamava outro. Mesmo o MI5 começou a tomar nota da “afiliação instável de Hobsbawm no partido”.
Uma estranha dinâmica imobilizante ocorreu depois de 1956. Em alguns momentos, Hobsbawm queria que o partido o expulsasse. Em outros, o partido queria que ele "se expulsasse". Durante anos, Hobsbawm deu diferentes respostas quanto a por que ele permanecia: lealdade à causa à qual ele tinha se dedicado com tanto afinco desde a adolescência; solidariedade com aqueles comunistas de base que tinham sacrificado tanto; revolta com os ex-membros do partido que tinham se tornado falcões da Guerra Fria. Ele também confessou uma razão muito pessoal — orgulho. “Teria sido fácil sair sorrateiramente”, ele mais tarde admitiu. “Mas eu podia provar meu valor para mim mesmo ao ter sucesso como um comunista conhecido — independentemente do que ‘sucesso’ significasse... Eu não defendo essa forma de egoísmo, mas também não consigo negar sua força”.
Independentemente das razões para sua determinação pública, as experiências de Hobsbawm como um comunista na primeira metade do século XX remodelaram drasticamente suas atividades políticas e intelectuais na segunda metade. Em um ensaio intenso publicado vários anos antes de ambos morrerem, Tony Judt insistiu em que isso teve um efeito negativo: a afiliação de quase a vida toda de Hobsbawm ao comunismo o tinha “provincializado” como um intelectual e reduzido o escopo de suas percepções como historiador. Enquanto que Hobsbawm “pode reconhecer seus próprios erros rapidamente...”, argumentou Judt, “ele não parece entender por que os comete.” Prestando-se mais atenção ao desenvolvimento político e intelectual de Hobsbawm depois de 1956, a biografia feita por Evans defende de forma persuasiva que o oposto ocorreu: os anos amargos de Hobsbawm como comunista na primeira metade de sua vida somente o ajudaram a se tornar um melhor historiador e um socialista mais prático na segunda metade.
Começando com Rebeldes Primitivos, as histórias sociais de Hobsbawm — Os Trabalhadores, Bandidos, Capitão Swing, Mundos do Trabalho — foram impulsionadas por um novo propósito: ele queria salvar essas formas de radicalismo não convencional não só do que E. P. Thompson chamou de “enorme condescendência da posteridade”, mas da enorme condescendência de aparato do partido. Depois de 1956, ele também percebeu que seu marxismo estava rapidamente ultrapassando seu comunismo. Descobrindo Gramsci e levando próximo ao peito o ditado de Marx de que “os homens constroem a própria história, mas...não a constroem nas circunstâncias de sua escolha”, ele começou a ver a luta pela emancipação humana de uma forma muito mais multifatorial do que Lenin e os bolcheviques teriam permitido. Em vez de um jogo de soma zero entre o comunismo e o capitalismo, a política igualitária ficava em um continuum: tudo desde o estado de bem-estar social dos EUA até as social-democracias da Europa Ocidental e o terceiro campo da Iugoslávia conseguiam fazer parte da ampla extensão do progresso humano. “Estávamos certos em acreditar que havia somente um caminho, que havia apenas uma ferrovia única que nos levava para a frente?” perguntou ele em uma entrevista em 1978. “A resposta é não. Haviam todo tipo de outras coisas acontecendo das quais devíamos ter tomado nota”.
A épica trilogia de Hobsbawm sobre o “longo século XIX” — A Era das Revoluções, A Era do Capital e A Era dos Impérios — magnificaram essa percepção por toda a totalidade de um século. Os profundos fracassos da Revolução de Outubro e dos partidos comunistas ocidentais foram somente os ecos de um padrão mais amplo de progresso e reação que moldou toda a história moderna. As “revoluções duplas” — francesa e industrial — que tinham iniciado o longo século anularam as sufocantes hierarquias do regime antigo, mas elas então impuseram suas próprias formas de dominação. A formação das democracias constitucionais nos anos 1860 e 1870 libertaram milhões do punho do absolutismo, mas o autogoverno na Europa foi então subsidiado pela brutal colonização de grande parte do resto do mundo. Toda guinada para o lado certo parecia seguir-se de uma para o errado.
Isso é o que fez a narrativa de Hobsbawm tão monumental: sua série Era de foi seu Guerra e Paz. Narrados como observando-se de cima e sintetizando grandes trechos de pesquisa, cada volume foi infundido com o olho de um romancista para a natureza paradoxal e desordenada do progresso humano. O século que começou com a forte luz da emancipação tinha terminado na escuridão do império e da guerra mundial. Os industriais e imperialistas da era tinham culpa, mas também tinham culpa, Hobsbawm insistiu, os revolucionários que iniciaram a era com uma fúria de violência sectária e os liberais e social-democratas que ajudaram a terminá-la ao soar os tambores da guerra continental.
Essa percepção também modificou Hobsbawm como ator político, abrindo-o para uma série muito mais ampla de movimentos e causas igualitárias. No começo dos anos 1960, ele participou dos protestos na Praça Trafalgar contra armamentos nucleares e no final dos anos 1960 encontrou-se em meio aos protestos em Paris, que, depois de algum ceticismo inicial, ele apoiou por suas “potencialidades revolucionárias”. Ele somente visitou a União Soviética mais uma vez como um convidado oficial depois de sua primeira viagem, mas ele viajou frequentemente para a América Latina, estabelecendo alianças fortes com intelectuais e políticos socialistas da região, incluindo, entre outros, o futuro presidente do Brasil Lula da Silva. Quando em 1970 o governo da Unidade Popular de Allende tomou o poder no Chile com uma maré crescente de colaboração da esquerda, Hobsbawm celebrou o caso como uma “perspectiva animadora”.
Onde partidos comunistas locais provavam-se dispostos a abrir-se, Hobsbawm lhes emprestava seu nome e energia, encontrando-se frequentemente com uma nova geração de comunistas italianos que buscavam romper com o sectarismo de seu partido. Nos países onde socialistas e social-democratas estavam fazendo progresso, Hobsbawm também provou-se ecumênico, encontrando nas coalizões de François Mitterrand da França e de Felipe González da Espanha o possível começo de uma nova frente popular.
"Em casa", também, Hobsbawm defendeu a política de frente popular, encontrando causas em comum com Michael Foot do Partido Trabalhista e depois, para frustração de muitos de seus camarada socialistas, com Neil Kinnock, que estava levando o Partido Trabalhista para a direita. “A unidade de todas as forças progressistas e democráticas era necessária”, acreditava ele, “se for para pararmos a revolução conservadora de Thatcher”.
Hobsbawm ainda manteve algumas das limitações de sua visão estrita marxista do começo do século XX: ele era frustrantemente indiferente ao ativismo feminista que irrompeu no cenário nos anos 1960 e 1970, e, em seus últimos trabalhos históricos — especialmente sobre o “curto século vinte” — ele tendia a se focar mais nas colisões tectônicas que aconteciam no topo da história às custas daquelas lutas diárias acontecendo mais abaixo. Também havia um perigo sempre presente de que sua política de frente popular pudesse lançar uma rede ampla demais em busca de poder, aliando-se àqueles da esquerda que estavam muito dispostos a abandonar os tradicionais programas igualitários de seus partidos.
Porém, as lições amargas colhidas dos anos de Hobsbawm como militante tinham apesar de tudo deixado uma marca profunda: para Hobsbawm, a esquerda somente teria sucesso se encontrasse uma forma de transcender suas diferenças ideológicas e construir movimentos grandes de tendências múltiplas. “A estratégia popular”, explicou ele em um artigo de 1985, “era mais do que uma tática defensiva temporária... Também era uma estratégia cuidadosamente pensada para se avançar para o socialismo.”
Ao escrever sobre Keynes, Hobsbawm uma vez observou que o economista se encontrava forçado a radicalizar seu liberalismo no rescaldo dos fracassos do capitalismo no começo do século XX. O mesmo poderia-se dizer sobre Hobsbawm: ao encarar os fracassos do comunismo no começo do século XX, Hobsbawm encontrou-se forçado a liberalizar seu socialismo. Isso era, insistia ele, o que Marx também teria feito — “reconhecer a nova situação na qual nos encontramos...e formular não somente o que queremos fazer, mas o que pode ser feito.”
Assim como as mudanças dialéticas entre progresso e reação que inauguraram o mundo moderno e que continuaram a transformá-lo nos séculos que se seguiram, a própria biografia de Hobsbawm pode ser dividida em dois movimentos separados e opostos: de 1917 a 1957 ele viveu uma vida itinerante, dispersa e frequentemente sectária; de 1957 até sua morte em 2012, sua política e vida, ambas, começaram a ganhar uma força centrípeta. Depois de anos sem publicar, ele lançou um novo livro quase a cada dois anos até morrer — mais de 30 no total. Sua série Era de foi traduzida para dezenas de línguas, e suas histórias sociais e econômicas foram centrais para a transformação da historiografia da língua inglesa. Ele casou-se novamente — dessa vez uma união feliz. Teve filhos, comprou uma casa e passou os verões no País de Gales. Tornou-se uma quase celebridade em muitas partes da América Latina, sul da Ásia e Europa Ocidental. Tendo desempenhado um papel marginal como militante comunista na primeira metade do século XX, ele se reinventou como um intelectual excursionista e “historiador de guerrilha” na segunda metade, alegremente emprestando seu apoio àqueles da esquerda que estivessem construindo movimentos e coalizões de base mais ampla.
Hobsbawm tendia a caracterizar seu próprio “curto século vinte” como uma era catastrófica entre os extremos de um socialismo que tinha dado terrivelmente errado e um capitalismo que parecia permanentemente entrincheirado. “Nunca o padrão do progresso ou da mudança contínua pareceu menos plausível”, afirmou ele nas páginas de conclusão de A Era dos Impérios. Mas uma das conquistas consideráveis da nova biografia feita por Evans é que ela nos ajuda a contar uma história diferente — tanto sobre a vida de Hobsbawm quanto sobre o século no qual ele viveu. Em vez de ser uma era definida somente por ideais desperdiçados e extremos sectários, a Era de Hobsbawm também moldou uma quantidade surpreendente de avanços morais e políticos. Seja no Atlântico Norte ou no mundo descolonizado, o longo terço intermediário do século viu novas frentes populares ascenderem em busca de sociedades mais democráticas e igualitárias. Mulheres, minorias preparadas para lutar, pessoas colonizadas, imigrantes e trabalhadores marginalizados de todo o mundo conseguiram obter novas liberdades para si mesmos, e muitas de suas conquistas ainda se aplicam hoje em dia.
Hobsbawm frequentemente lamentava que as agitações de seus rebeldes primitivos não deixaram para trás instituições duradouras para o presente. Mas os radicais não convencionais do século XX — incluindo Hobsbawm – deixaram uma marca, dando à esquerda uma imagem de uma igualdade mais ampla com a qual pode desafiar as desigualdades e injustiças dominantes de seus dias. As frentes populares que ela inspirar certamente não se parecerão com aquelas do passado. Elas enfrentarão novos desafios, e serão forçadas a fazer história de sua própria maneira. Mas, novamente, nenhum de nós consegue agir nas circunstâncias de nossa escolha.
David Marcus é o Editor de Literatura do The Nation
*Publicado originalmente no The Nation | Tradução: equipe Carta Maior
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