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A guerra entre a Vale e a Tüv Süd pela responsabilidade da tragédia de Brumadinho

Em depoimentos e e-mails divulgados até agora, auditores falam de pressões da mineradora para atestar a estabilidade da barragem. Já a Vale sugere morosidade de fornecedores para averiguar inconsistências na leitura de piezômetros


Bombeiros usam máquinas pesadas em busca de vítimas, 20 dias após a ruptura da barragem de Brumadinho. DOUGLAS MAGNO AFP

Mais de um mês após a tragédia em Brumadinho ainda não se sabe, oficialmente, o que causou o rompimento da barragem I e liberou um tsunami de rejeitos que deixou 186 pessoas mortas e outras 122 desaparecidas. Também não está claro a quem se atribuirá a responsabilidade pelo crime, ainda que o Ministério Público tenha pedido o afastamento de quatro diretores da Vale, incluindo o presidente Fabio Schvartsman, o que foi acatado no último dia 3 pela empresa. E, nos bastidores, uma guerra de se trava: Vale, dona da barragem, e Tüv Süd, empresa alemã contratada por ela para inspecionar a estrutura e garantir sua estabilidade, lutam entre elas para atribuir a culpa uma para a outra. Procuradas pelo EL PAÍS, a posição oficial das duas empresas é a de que colaboram com as investigações e não comentarão detalhes do caso.

Nos trechos de depoimentos à Polícia Federal, documentos internos e e-mails tornados públicos até agora pelos órgãos que investigam a tragédia, há uma simbólica disputa de narrativa.


Enquanto as linhas de investigação apontam que as duas empresas estavam cientes dos riscos e teriam assumido as consequências da ruptura, funcionários da mineradora e da consultora tentam se isentar da responsabilidade pela tragédia. E tentam jogar para o outro possíveis negligências que influenciaram na tomada de decisões relacionadas à barragem que ruiu, pelo menos em depoimentos e documentos.


Desde o primeiro momento, a Vale tem insistido que não tinha qualquer conhecimento prévio de um "risco iminente" de rompimento da barragem. A seu favor, contava com os laudos de estabilidade da estrutura, entregues de seis em seis meses à Agência Nacional de Mineração (ANM). Esses documentos foram produzidos pela empresa Tüv Süd, contratada pela própria mineradora, que, à revelia do que diziam vários especialistas em segurança de barragens, sustentava que não houve quaisquer sinais prévios de perigo antes de a estrutura desmoronar. No entanto, o engenheiro da empresa alemã, Makoto Namba, que foi detido, disse à Polícia Federal que se sentiu pressionado pela Vale a atestar a estabilidade, mesmo identificando problemas. Essa suposta pressão já havia sido comentada em maio do ano passado por Namba, em um e-mail enviado a outros três funcionários da consultora e tornado público na semana passada, quando a Justiça mineira determinou a prisão provisória de oito funcionários da Vale envolvidos na inspeção da barragem.


Namba afirmava que provavelmente os estudos de liquefação (quando os rejeitos, por possível infiltração de água, se tornam mais líquidos) da Barragem I do Córrego do Feijão não atingiriam o fator de segurança mínimo de 1.3 e que "a rigor" a empresa não poderia atestar a estabilidade da barragem. A consequência, destaca, seria a paralisação de todas as atividades da mina, que possui outras barragens, além da I. Segundo ele, um funcionário da Vale chamado Felipe Figueiredo Rocha (também investigado) havia sugerido que outra empresa de consultoria atestaria a estabilidade da barragem Forquilha III, em Ouro Preto, com base nas promessas de que a Vale tomaria as medidas necessárias para resolver os problemas. Namba pede aos colegas uma discussão interna urgente para afinar a resposta que a Tüv Süd daria à Vale. "Mas como sempre a Vale irá nos jogar contra a parede e perguntar: e se não passar, irão assinar ou não? Para isso, teremos que ter a resposta da Corporação, com base nas nossas posições técnicas", escreveu o engenheiro.


O depoimento do engenheiro Washington Pireti, que trabalha na Vale há 22 anos e não está na lista dos detidos da mineradora, indica que a empresa se absteve de tomar medidas mesmo sabendo que havia anormalidades na barragem. Ao Ministério Público, ele contou que foram constatados problemas na estrutura no primeiro semestre de 2018, mas que apenas no fim do ano a empresa elaborou o projeto de descomissionamento da barragem, que não chegou a ser iniciado. Ele também comenta sobre a discrepância na leitura de cinco piezômetros automatizados —equipamentos utilizados para medir o nível da água da estrutura— nos quinze dias antes do rompimento. "Não é normal que uma leitura dessa, feita no dia 10, chegue ao dia 25 sem que alguma avaliação e providência sejam adotadas", declarou.


Perícia atesta normalidade nos piezômetros

A Vale contratou a empresa IBPTECH para examinar os componentes do Sistema Automático de Coleta de Dados destes piezômetros e analisar se de fato os equipamentos identificaram alguma alteração no nível de água da barragem antes de a estrutura ruir. O relatório deste trabalho, publicado em 9 de fevereiro, aponta que os piezômetros mantiveram comportamento normal e que um erro de cadastro deles no sistema provocou uma leitura equivocada dos dados pelo sistema. Ou seja, na prática, as anormalidades identificadas não existiam.


Mas essa informação só foi confirmada 15 dias após o rompimento da Barragem, e o relatório —produzido pelo IBPTECH tendo como única base as informações dadas pela Vale— sugere que funcionários da mineradora tinham mais pressa em resolver o problema que as empresas terceirizadas.


O problema com a leitura envolveu piezômetros automatizados instalados na Barragem I da Mina do Feijão. A implantação e operacionalização destes instrumentos mais modernos, conforme o relatório, eram de responsabilidade da Tüv Süd (que monitorava a barragem) e da Tecwise (responsável pelo sistema tecnológico). "[O problema dos piezômetros] foi provocado por erro na configuração de partes do sistema, atividade sob responsabilidade de fornecedor da [Vale]", alega estudo. Em outro trecho, o texto do documento defende a atuação da Vale: "A incorreção dos dados visualizados já havia sido identificada, motivo pelo qual ela requereu, advertiu e reiterou aos seus fornecedores na solução do problema".


O documento inclui vários e-mails trocados entre funcionários da Vale, da Tüv Süd e da Tecwise e busca lançar luzes sobre como as empresas agiram ao detectar a suposta anormalidade, que à época não se sabia que era apenas um erro de leitura. Dois dias antes da tragédia, Denis Valentin, um funcionário da empresa alemã, comunicou funcionários da Vale por e-mail que desde o dia 10 havia leituras discrepantes em cinco piezômetros. O engenheiro geotécnico Helio Marcio Lopes de Cerqueira, da Vale, responde à Tüv Süd e à Tecwise no dia seguinte, pedindo prioridade ao caso. "As leituras estão incoerentes. Favor verificar o que aconteceu.


Ainda estamos sem leituras para prosseguir com o monitoramento desta barragem. Priorizar isso! Se não encontrarem a falha me liguem no celular. Precisamos resolver isso rápido", escreveu. No mesmo dia, outro funcionário da Vale, chamado Anderson Fernandes, reitera aos fornecedores a necessidade de “análise rápida” e determina “sanar rapidamente esse problema”, além de estabelecer que, se eles não corrigissem o sistema, deveria ser realizada “a coleta manual dos dados” dos pontos com divergências. A Tecwise então respondeu que agendaria uma visita para a semana seguinte.


Em resposta, a Vale solicitou que as providências fossem tomadas no dia seguinte, inclusive pela preocupação com as multas que deveria pagar se não apresentasse as leituras para o órgão fiscalizador. "O risco de multa do DNPM é muitíssimo alto", escreveu o engenheiro geotécnico Helio Marcio Lopes de Cerqueira, da Vale, às duas empresas fornecedoras. Nem representantes da Tüv Süd nem da Tecwise chegaram a ir ao local depois disso, já que a barragem rompeu no dia em que seria feita a visita, 25 de janeiro.


Procedimento ao detectar anomalia não foi seguido

Em depoimentos ao Ministério Público, funcionários da Vale admitiram que o procedimento em caso de anomalia nos dados emitidos automaticamente pelos piezômetros seria que os funcionários da própria empresa verificassem as condições físicas da barragem em campo e fizessem uma leitura manual dos instrumentos de monitoramento. Nos e-mails e trechos de depoimentos divulgados pelos órgãos de investigação, nenhum dos funcionários das empresas explicam porquê isso não foi feito. A própria perícia contratada pela Vale mostra que, durante vários dias, a empresa esperou que suas fornecedoras verificassem se as leituras dos piezômetros eram reais ou se havia problemas na comunicação dos dados no sistema tecnológico.


Os investigadores apontam que, no momento, os depoimentos e provas apreendidas indicam que havia um "conluio" entre as duas empresas para maquiar a real situação da Barragem I. No último dia 15 de fevereiro, o Ministério Público pediu a prisão de oito funcionários da Vale e outros quatro da Tüv Süd, que teriam analisado a emissão de laudos de estabilidade mesmo sem atingir o nível mínimo de segurança para não perder futuros contratos com a mineradora. A Justiça concedeu somente a detenção dos que trabalhavam na Vale. Os funcionários da empresa alemã foram alvo de buscas e apreensões.


Desde que ocorreu o caso de Brumadinho a veracidade dos laudos de estabilidade foi colocada em xeque. E empresas de auditoria têm se mostrado mais criteriosas que antes para atestar a segurança dessas estruturas. Nas últimas semanas, mineradoras ativaram o Plano de Ação Emergencial em várias barragens porque não conseguiram os laudos, e centenas de pessoas foram desalojadas, a maioria delas pela própria Vale.


Fonte: El País Global

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