No Equador, líder ‘achuar’ mostra como as comunidades locais enfrentam o extrativismo e o progresso da infraestrutura em direção à selva.
Apesar da profunda crise política que o Equador está enfrentado e do empenho com que as comunidades indígenas enfrentam o extrativismo galopante no país, a construção de estradas para dentro da floresta é incontrolável. Será benéfico, diz o discurso oficial. Quem poderia duvidar disso? No entanto, para algumas comunidades do povo Achuar, no sudoeste da Amazônia do Equador perto da fronteira com o Peru, a natureza incontestável desse benefício não é tão clara assim. Hoje mais do que nunca.
Há alguns anos, começou a construção de uma estrada que, partindo da cidade de Puyo, penetra, como uma agulha afiada introduzida sem piedade para tirar todo o seu sangue, na bacia amazônica habitada pelos povos Shuar e Achuar. A estrada avança, do mesmo jeito que avança uma coluna incansável de formigas operárias. Cria o seu caminho, conquista o interior da floresta, derruba qualquer obstáculo, invadindo o território virgem.
Percorrendo a via para a comunidade de Copataza, correndo paralelamente ao torrente rio Pastaza, o caminho atravessa o território da nacionalidade Shuar. A comunidade concordou que os benefícios que a estrada traria compensariam seu poder destrutivo e aprovaram seu progresso.
As consequências são visíveis. Em toda parte, ao longo da estrada, há novos edifícios de madeira, cercados por áreas incipientemente desmatadas. Construções de novas igrejas evangélicas, de tijolo e ferro, também proliferam. Tudo é muito recente e, ao mesmo tempo, muito explícito. Aqui e ali, o capital repentino que os madeireiros trazem é aparente e, ao longo da rota, pilhas de madeira cortada com precisão geométrica se acumulam no acostamento, prontas para carregamento, transporte e comercialização. Mas esse capital repentino pode ser uma miragem efêmera, segundo algumas histórias: uma vez cortada e vendida sua área florestal, a família proprietária fica empobrecida e despojada. Seus membros, então, são obrigados a se vender como mão de obra barata, fazendo apenas o suficiente para sobreviver.
Em muitos cantos da Amazônia, os efeitos de abrir uma via de comunicação através de estradas são devastadores. Basta observar fotografias de satélite para ver como, assim que uma estrada que penetra na floresta é aberta, estradas secundárias que extraem a floresta são imediatamente abertas. A mais valiosa primeiro e depois, todas as outras. A predação é impiedosa.
A viagem de Puyo à comunidade de Wisui, onde a estrada atualmente acaba, é acompanhada por Julián Illanes, um líder Achuar que acaba de terminar seu mandato político como líder do território NAE (NacionalidadeAchuar do Equador). Julián agora planeja acompanhar a chegada da estrada e mitigar os efeitos dessa infraestrutura.
A NAE previamente aprovou o traçado da estrada agora em execução, e Julián pretende reduzir o impacto que ela terá sobre sua comunidade, Copataza, que é a próxima na linha traçada pelo projeto, e porta de entrada no território Achuar virgem.
Antes de chegar a Wisui, surge uma corticeira centenária de madeira preciosa, cercada por terras desmatadas. É um gigante orgulhoso que permanece de pé, apesar das ofertas que o proprietário recebeu pela árvore. “Primeiro, eles ofereceram US$ 100 e depois US$ 500. Felizmente, o dono da árvore é um professor da escola. Não precisa do dinheiro e não a vende”, diz Julián. De qualquer forma, essa majestosa árvore é a exceção que confirma a regra: todas as suas vizinhas desabaram, uma após a outra.
Ainda no território Shuar, ao pé da estrada, Julián identifica algumas estações de extração de madeira. São instalações suspensas de cabos de aço que penetram na selva para recuperar a madeira mais preciosa, que estão sendo cortadas a toda velocidade. A proliferação dessas estações e o som de fundo das motosserras assustam Julián e aumentam seu ceticismo sobre os possíveis benefícios da estrada em construção.
À medida que a estrada avança e o território Shuar é deixado para trás, as imagens que ficam na retina falam por si mesmas e despertam um sentimento, cavalgando entre tristeza e estupefação.
Território indígena Achuar
A entrada no território Achuar deve ser autorizada. O povo Achuar há muito se protege de intrusões externas o máximo que pode. É por isso que, assim como Julián, a expedição incorpora Ernesto Senkuam, líder de comunicação da NAE, com a missão de abrir a porta "política" das comunidades, apresentando visitantes e negociando a autorização de entrevistas e a captura de imagens no território.
Até a estrada estar pronta, para chegar a Copataza, é necessário embarcar em uma canoa e enfrentar um rio cheio de correntes e baixas pedregosas, cuja navegação se torna uma aventura. A natureza torrencial e imprevisível do rio tem sido, juntamente com a densidade da floresta primária nesta Amazônia remota, uma proteção importante para essas aldeias. Pelo menos até agora.
Essas viagens de canoa são caras. Se vêm da parte alta do rio, além da passagem, precisam descer com cargas de combustível, um suprimento essencial para geradores de eletricidade, bombas de água ou motores externos. O peso reduz a altura da borda, o que facilita que uma onda inunde a canoa em um piscar de olhos. Consequentemente, o transporte seguro de passageiros e combustível, assim como a educação na cidade e o acesso acelerado a um centro de saúde em caso de emergência, são argumentos poderosos para defender a construção da estrada.
Os Achuar eram um povo nômade até muito recentemente e seus assentamentos no território são relativamente novos, mas as comunidades são altamente organizadas política e socialmente. Jaime, que ocupa um lugar de destaque em Copataza como administrador (chamado de chefe da comunidade no território Achuar), tem um olhar imponente, de enorme profundidade. Ele fala do orgulho do povo Achuar e da responsabilidade que ele tem de conseguir o melhor para a comunidade.
Jaime determina que a decisão de autorizar Julián a falar em nome da comunidade não corresponde a ele, mas a toda a comunidade, que se reúne em uma assembleia às 19h desse mesmo dia.
O senso de autoridade e a decisão coletiva são características essenciais das comunidades Achuar. É por isso que validar através da assembleia a opinião que Julián emita sobre a estrada é tão importante.
Este é um momento decisivo para o povo Achuar, que viu como seus irmãos Shuar se beneficiaram do transporte rápido para a capital, em carros 4x4 e ônibus, que milagrosamente superam os obstáculos mais pedregosos, especialmente as torrentes da enchente. Apesar disso, a estrada é funcional. Mas os Achuar também viram a extensão da catástrofe que as estradas causaram no norte da Amazônia, onde a indústria do petróleo opera.
No entanto, a decisão é tomada: a estrada chegará até a antiga pista de pouso dos aviões que os missionários construíram em Copataza. Desde o início dos assentamentos dessas comunidades, há não mais de cinco ou seis décadas, essas pistas são seus principais meios de comunicação para superar as distâncias que de canoa ou a pé levam vários dias, às vezes até semanas.
Efeitos indesejados
Durante o debate aberto na casa comunitária, os anciões da comunidade expressam seu ceticismo com a chegada da estrada e não se cansam de repetir os perigos que isso implica. Madeireiros ilegais chegarão, álcool, brigas e missionários evangélicos terão acesso mais fácil. Outros elementos negativos inevitavelmente se infiltrarão pelo caminho impedido.
Mas o consenso não é quebrado. Eles permitirão a construção da estrada. Aurelio, o líder mais eloquente, diz: “A decisão está tomada e seriam necessários cem Aurelios para revertê-la”. Mas a decisão já está tomada.
Após a assembleia, Julián está autorizado a falar em nome da comunidade e defender a chegada da estrada, embora a decisão não satisfaça a todos. Com muito mais entusiasmo do que a construção da estrada, Julián fala sobre as decisões que deverão ser tomadas, a partir de agora, para controlar seu impacto iminente.
Sim, há incerteza sobre o cronograma de execução do trabalho. Muito depende do governador da província de Pastaza, e a situação política no país é tensa e complicada. Duas semanas antes da visita ao território Achuar, o Equador foi bloqueado e Quito, a capital, ocupada por mais de 40.000 indígenas.
Chegando do planalto andino e da bacia amazônica em protesto contra as medidas de austeridade neoliberais adotadas sem aviso prévio pelo governo, eles mostraram as caras. O protesto resultou em tumultos que duraram 12 dias consecutivos.
A repressão da polícia militarizada foi feroz, a resistência invencível e, finalmente, quando as mortes começaram a se acumular, o governo voltou atrás sobre a decisão de aprovar o pacote de medidas. Em seguida, o presidente Lenín Moreno estabeleceu uma mesa de diálogo com os representantes indígenas, que após duas semanas de trabalho apresentaram uma alternativa à redução do déficit que o governo planejava para agradar o FMI. Não é à toa que, por parte da comunidade indígena, o líder seja Jaime Vargas, precisamente um indígena Achuar.
Deslocado para Puyo, Julián participou ativamente dos protestos, o que aumentou sua convicção em aliviar os efeitos negativos da chegada da estrada a Copataza. O que está sendo considerado agora é qual será a rota final dessa estrada, se atravessará o rio e, se sim, em que altura.
A oposição à construção de uma ponte é unânime. Abrir uma via até o outro lado da margem do rio significa vender a floresta virgem do outro lado, onde o controle de atividades extrativas ilegais seria praticamente impossível para a comunidade. Nesse contexto, a construção de um teleférico para atravessar o rio seria a opção dos sonhos.
Rio abaixo, durante a viagem de canoa para a comunidade de Sharamentsa, continuam a aparecer vestígios de agressão ao território. Em algumas ilhas, há atividade extrativa de madeira balsa, um material duro e leve e altamente valorizado pelos mercados internacionais.
Em vista desse novo impacto, Julián sente o peso da responsabilidade. Ele sabe que seu território e vida comunitária, até agora protegidos por isolamento e inacessibilidade, estão condenados a se transformar em algo muito diferente do que é agora.
O sonho de Julián
Mas se os Achuar mantiverem a tomada de decisão coletiva, provavelmente tentarão aliviar as tensões que, inevitavelmente, serão produzidas pela tentação da riqueza que a estrada deve trazer.
A determinação que Julián encarna é preservar a soberania, fazer o novo porto fluvial funcionar. Impedir que a estrada continue a penetrar floresta dentro. Que o rio seja atravessado apenas por um teleférico. Que o projeto de canoas elétricas movidas a energia solar liderado pela Fundação Kara Solar seja fortalecido. Que as estações de carregamento necessárias sejam instaladas ao longo do rio Pastaza. Julián aspira, em suma, conectar seu sonho ao sonho solar dos Achuar, que contribua para a soberania de seu território.
Os índios Achuar, que não foram colonizados e que sobreviveram a várias ameaças, dão aos sonhos uma importância primordial. Eles os usam para guiar suas vidas diárias e também para suas decisões mais transcendentais.
E eles contam seus sonhos uns para os outros, de madrugada, enquanto bebem wayusa em abóboras oblongas. Wayusa é uma infusão que produz um vômito purificador, que os fortalece para que enfrentem seus dias de trabalho árduo.
Hoje, dada a iminente chegada da estrada, a certeza de continuar a defender a selva contra agressões externas depende, talvez mais do que nunca na história do povo Achuar, dos sonhos solares de Julián e de seus companheiros.
E também na fé que os Achuar sonhem muito.
Este artigo pertence à série sobre defensores de florestas que começou no Brasil e agora continua no Equador. É um projeto da openDemocracy / democraciaAbierta e é realizado com o apoio do Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center.
Fonte: El País
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