Falta à esquerda uma crítica mais profunda às redes sociais e à captura e tráfico de dados. Não se trata de “desmembrar o Facebook”, mas de opor, às “inovações” que apenas conservam a ordem social, uma possível Tecnologia Rebelde.
Por Evgeny Morozov | Tradução: Gabriela Leite
No momento em que o Facebook confessa seus pecados digitais e promete tornar-se cidadão da aldeia global, respeitoso da vida privada e preocupado em evitar a compulsão digital, as bases da hegemonia cultural das grandes empresas de tecnologia parecem estar desmoronando. Mais surpreendente ainda: é nos Estados Unidos, país do Vale do Silício, que parecem estar mais fracas.
Mesmo em tempos de extrema polarização e de guerras comerciais, Trump, que tem constantes explosões contra a “censura” em plataformas de redes sociais, junta-se a políticos de esquerda como Elizabeth Warren e Bernie Sanders, ao apresentar a Big Tech como a maior ameaça aos EUA. O recente apelo de Chris Hughes, cofundador [afastado] do Facebook, para que a empresa seja “quebrada” dá pistas do que está por vir.
Nem os magnatas do Vale do Silício, nem os mercados financeiros parecem se preocupar, no entanto. A decisão recente de Warren Buffet — um dos investidores mais bem sucedidos, mas também mais conservadores dos EUA — de finalmente investir na Amazon é provavelmente uma indicação melhor do que esperam os gigantes da tecnologia em médio prazo: lançamentos na bolsa com resultados mais polpudos, mais dinheiro saudita, mais promessas para aplicação de inteligência artificial para resolver problemas causados pela inteligência artificial.
Mais de um ano após o escândalo da Cambridge Analytica, o debate sobre as grandes empresas de tecnologia continua restrito às mesmas questões velhas e batidas: eficiência de mercado, evasão fiscal e modelos de negócio que provocam, deliberadamente, adição. Apesar de atraírem os eleitores, tais temas não abrem caminho algum para gestar um futuro alternativo, no qual os cidadãos pudessem se ligar a instituições sociais mais ricas que a fábrica ou o supermercado.
Os dois campos ideológicos, apesar de sua suposta convergência sobre as grandes empresas tecnológicas, provavelmente não usarão esse debate para reinventar seus próprios projetos políticos. Aqueles à direita que esperam conseguir resultados eleitorais ao atacar a Big Tech ainda estão calados sobre qual sua alternativa preferida de futuro. Além disso, como muitos desses movimentos desejam o retorno a uma sociedade conservadora e corporativista, comandada por forças não submetidas ao voto dos eleitores, o Vale do Silício, com sua vasta infraestrutura digital preparada para o soft power, é seu aliado natural.
No cenário internacional, o mito do salvamento pela tecnologia adquire força extra, já que há muito mais “salvação” a ser oferecida pelos gigantes. Isso estimula alguns líderes populistas a fantasias de transformar seus países em enormes feudos, eficientemente comandando por algum suserano tecnológico. Tanto que o governo Bolsonaro, no Brasil, anunciou orgulhosamente que “sonha” com o Google ou a Amazon controlando seu serviço nacional de correios, que quer privatizar.
O Brasil de hoje, tão propenso a crises, revela ainda outra consequência de entregar o espaço anteriormente ocupado pela política ao complexo industrial da Big Tech. O efeito de longo prazo de suas atividades supostamente revolucionárias é, na verdade, cimentar o status quo, mesmo que isso seja feito por meio de soluções extremamente disruptivas.
Em nenhum lugar, é mais evidente o quando as tecnologias digitais estão sendo usadas para lidar com os mais agudos problemas sociais. À medida em que as taxas de criminalidade decolam, o Brasil se tornou um cadinho de inovação no que podemos chamar de Tecnologia da Adaptação, com uma panóplia de ferramentas digitais sendo usada para checar a segurança de ruas e bairros, e para coordenar “respostas” conjuntas em nível comunitário.
O Waze, um aplicativo popular de propriedade da Alphabet-Google, já alerta usuários de grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, de que estão prestes a entrar em uma parte perigosa da cidade (a procedência dos dados que alimentam tais recomendações no geral é bastante obscura). Da mesma forma, moradores preocupados com a taxa de criminalidade em seus próprios bairros cada vez mais fazem o uso de ferramentas como o WhatsApp para compartilhar informações sobre atividades suspeitas em tais áreas.
Com a piora da situação — e não apenas no Brasil — tais tecnologias permitem que cidadãos sobrevivam em meio ao caos, sem demandar nenhuma transformação social. A última década, com sua celebração à “austeridade”, tem sido boa para os negócios da Big Tech também. Toda a explosão tecnológica que seguiu a crise financeira de 2007 e 2008 pode ser explicada por essas lentes, com seus capitalistas de risco e fundos soberanos, que subsidiaram temporariamente a produção em massa da Tecnologia da Adaptação aos despossuídos e descontentes.
“Tecnologia de Adaptação”, contudo, é marca muito ruim para intitular conferências ou manifestos laudatórios. Ao invés disso, fala-se da “economia do compartilhamento” (com startups que ajudam os pobres a sobreviver, aceitando empregos precários ou alugando suas posses), da “cidade inteligente” (com os municípios entregando sua soberania tecnológica — em troca de serviços temporariamente gratuitos — às gigantes digitais), da “fintechs” (com bancos que emprestam para os mais jovens capturando e vendendo seus dados, apresentados como uma revolução de “inclusão financeira”).
A não ser que as condições econômicas melhorem — uma hipótese improvável — os governos continuarão sua aliança implícita com a indústria tecnológica: é a única maneira de garantir que as multidões, crescentemente infelizes com os sacrifícios fiscais e comportamentais (vide os Gillets Jaunes) recebam pelo menos uma quantidade módica de segurança e prosperidade, embora a curto prazo e ilusória.
E assim, chegamos ao resultado paradoxal de hoje: 99% das inovações tecnológicos visa apenas assegurar que nada de substancial se rompa na sociedade. A miséria material e moral persiste, nós apenas nos adaptamos melhor a ela — com sensores, mapas, inteligência artificial e — por que não? — computação quântica. O verdadeiro evangelho da Big Tech, hoje — sancionada e celebrada por governos — é a inovação para o propósito da conservação.
Os programas devem ser lançados e celebrados sob a bandeira de “transformação digital”. Mas, na realidade, implicam muito pouca consciência e transformação social. Ao invés disso, o que é vendido sob essa chancela é a ideia exatamente oposta, por exemplo: a noção de que indivíduos e instituições devem se adaptar — e não transformar — o mundo tecnológico ao seu redor. Segundo se prega hoje, a “transformação digital” significa transformar as instituições e indivíduos para ajustá-los às condições sociais aparentemente imutáveis — e não o oposto disso.
As políticas favoritas dos que se dizem progressistas — quebrar a Big Tech, ou mesmo redistribuir seus dados — podem resolver alguns problemas reais. Mas é difícil ver quanto enfraqueceriam um mundo de Tecnologia da Adaptação. No fim das contas, tais engrenagens virtuais podem ser perfeitamente preenchidas por centenas de start-ups — o mundo alternativo da “tecnologia pequena e humana” — e não apenas pelos gostos da Microsoft e da Amazon.
Como alternativa, podemos imaginar um mundo futuro alternativo da Tecnologia Rebelde, que não vê as relações sociais como inscritas em pedra, para ser apenas aceitas e ajustadas por meio das últimas tecnologias. Ao invés disso, tecnologias poderiam ser adotadas para alterar, dar forma e — sim — se rebelar contra condições sociais enraizadas. As distinções entre a Tecnologia da Adaptação e as Tecnologias Rebeldes não são apenas ou filosófica; políticas mais inteligentes podem nos levar a mais do segundo conceito e menos do primeiro.
Quebrar as gigantes tecnológicas, fazê-las pagar um volume justo de impostos, fazer melhor uso de seus dados: são todas condições necessárias. Mas, infelizmente, insuficientes para transformação social efetiva — não apenas a individual ou institucional. Hoje, slogans ditos progressistas são frequentemente construídos a partir de pontos de partida depressivamente conservadores. Eles implicam que, contanto que a indústria tecnológica aceite sua responsabilidade como sucessora ungida da indústria automobilística — tornando-se, no melhor dos casos, a impulsionadora mais ecologicamente correta do crescimento econômico — voltaremos em algum momento ao confortável e próspero mundo como o dos anos 1960 e 1970 quando reinava, nos países ricos, a social-democracia.
Embora essa visão pareça atraente, ela apenas camufla a falta de qualquer pensamento estratégico entre as forças progressistas ou social democratas sobre um tema crucial. O surgimento da Big Tech é uma consequência, não a causa, de nossa crise política e econômica; nós não vamos resolvê-la meramente nos livrando da Big Tech ou reprimindo suas operações.
A Tecnologia Pequena e Humana pode ser de alguma valia. Porém, sem uma visão mais abrangente — e um plano concreto — para abandonar a Tecnologia da Adaptação em favor da Tecnologia Rebelde, as forças progressistas não vão ter muito a dizer sobre a técnica — e, portanto, a política contemporânea.
Fonte: Outras Palavras
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