top of page

Agonia (e morte?) do desenvolvimento no Brasil

Breve, neoliberalismo nos levará à terceira década de estagnação. País está esgotado e diante de encruzilhada. Ou sucumbe e aceita fim de sua humanidade possível; ou adota novo projeto, muito distinto do desenvolvimentismo anterior.

Por Eleutério F. S. Prado


Dois padrões de crescimento

Quando se olha o comportamento da economia capitalista no Brasil nos últimos setenta anos de uma perspectiva que fica apenas na observação dos dados empíricos, é absolutamente nítido que dois grandes períodos aparecem: um deles que vai até 1980, o qual não pode deixar de ser considerado como de alto crescimento e um outro, que se inicia em 1990, o qual está caracterizado por uma quase-estagnação. A década dos anos 1980 é de crise e de transição entre esses dois padrões de crescimento do produto interno bruto (PIB).


Como se pode observar na Figura 1, no primeiro deles, a taxa de crescimento médio anual do PIB chegou a 7,4 %, enquanto, no segundo, atingiu apenas 2,2%. Como também se sabe, se essa taxa mostrou uma tendência de declínio a partir de 2011 e, portanto, de sobrevinda de uma crise, tornou-se negativa em 2015 e 2016. Eis que a economia entrou em depressão a partir de 2014, devido às políticas de austeridade implementadas pelos três últimos governos (Dilma II, Temer e Bolsonaro).

Figura 1

Há, evidentemente, diversas tentativas de explicar essa mudança de longo prazo, tão marcante e tão desapontadora, com base nas teorias econômicas mais em evidência, e no interior de uma discussão multifacetada sobre o desempenho histórico do capitalismo no Brasil. Antes de abraçar uma dessas tentativas para fechar o argumento aqui desenvolvido, é preciso mencionar que, de uma perspectiva abrangente, pode-se apontar três fenômenos que se encontram associados à quebra do padrão de crescimento depois dos anos 1980 – os quais, é bom notar, foram denominados de “década perdida”; são eles: a privatização das empresas estatais, a desindustrialização e a financeirização. Eis que é preciso tratar destes três pontos, mas é impossível separá-los completamente.


Privatização, desindustrialização e financeirização

Aqui se toma a privatização das empresas estatais como uma dimensão de um processo mais geral de desregulação do sistema econômico com o fim de se aproximá-lo o mais possível daquilo que Karl Polanyi chamou de “mercado autorregulado”. Ela não é vista, portanto, como um procedimento episódico de ajuste da atuação do Estado frente as necessidades do desenvolvimento do capitalismo, mas sim como expressão de uma má utopia: aquela que diz que se deve libertar ao máximo as forças do mercado dos constrangimentos institucionais vindos do Estado, em nome de uma eficiência econômica da empresa privada na redução de custos e na obtenção de lucros, assim como de uma liberdade de empreender e de buscar o autointeresse que passa a ser identificada com a liberdade em geral. Se a coerção do Estado aparece para o ideólogo liberal ou neoliberal como externa, injusta e restringente, ele se sente bem confortável dentro da coerção do mercado porque, nesta última – pensa – o empreendedor e o proprietário capitalista levam vantagem.


Foi Karl Polanyi quem, referindo ao século XIX, afiançou que “a ideia de um mercado autorregulável implicava numa rematada utopia”.4 Para o bom entendimento dessa afirmação, note-se que, para ele, “mercado autorregulável” não significava o mesmo que “laissez-faire”, mas dizia respeito, diferentemente, a ausência de regulação direta – mas não de intervenção – nas atividades econômicas privadas por parte do Estado. Em particular, essa utopia capitalista preconiza não só a inexistência de proteção estatal aos trabalhadores, mas também o impedimento por parte do Estado de que estes possam se organizar para, assim, lutar por sua própria autoproteção. É nessa perspectiva, acrescida de uma notável preocupação com o ambiente, que ele assentou:


Uma tal instituição não pode existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade; ela destrói fisicamente o homem e transforma seu ambiente num deserto. Inevitavelmente, a sociedade tem que tomar medidas para se proteger, mas, quaisquer que sejam essas medidas, elas prejudicam a autorregulação do mercado.

A ideia de que o Estado capitalista possa se ausentar da interferência direta na esfera privada que caracteriza o “laissez-faire” é, ademais, uma “ideologia desprovida de sustentação histórico-empírica”.6 A forma por meio da qual atua e interfere, porém, pode variar enormemente; aqui, contudo, está-se interessado numa dualidade opositiva: ou busca o desenvolvimento e, nesse caso, interfere e regula de várias formas o sistema econômico tendo por propósito manter a unidade e a sua força acumuladora, ou, alternativamente, procura desregulá-lo ao máximo tendo por horizonte o ideal do mercado autorregulável e, nesse caso, permite que as suas contradições sejam tensionadas ao máximo.


Como a segunda opção é uma má utopia, ao persegui-la, o Estado passa a destruir o desenvolvimento. Por quê? Ora, a resposta está implícita, em parte, na própria afirmação de Polanyi. Aquilo que esse autor denomina “moinho satânico”, isto é, o mercado guiado apenas pela busca do autointeresse e pela concorrência mercantil, ao anular as normas de reciprocidade e redistribuição, esgarça tanto o tecido social que o desenvolvimento se torna insustentável. Por isso mesmo, para impor mais e mais a lógica do mercado autorregulável, tal como mostra a experiência chilena, é requerido um governo feroz e totalitário. É necessário, entretanto, ampliar essa perspectiva considerando como essa segunda opção afeta os próprios mecanismos do capitalismo industrial quando este já alcançou certa maturidade.


Nessa perspectiva, é preciso afirmar peremptoriamente que é um mito achar que o Estado pode cuidar apenas das regras negativas, ou seja, daquelas que apenas proíbem as ações que prejudicam o funcionamento dos mercados, mas não dizem jamais o que deve neles ser feito. Eis que apenas estas – dizem os neoliberais – são necessárias para constituir um sistema econômico propiciador de liberdade e, assim, gerador de prosperidade. É assim, com esse discurso aparentemente libertário, que promovem o ideal do mercado autorregulado.


Na verdade, quando se trata de agenciar o desenvolvimento possível nos marcos do capitalismo contemporâneo, o Estado e a esfera propriamente privada e propriamente capitalista da sociedade atuam e têm sempre de atuar de modo complementar. Cabem ao Estado, além de prover de modo importante a infraestrutura, a qualificação da força de trabalho, o desenvolvimento científico, a proteção das atividades internas etc., duas funções adicionais que devem aqui ser ressaltadas: a) a função keynesiana que visa garantir a estabilidade possível do sistema por meio das políticas macroeconômicas; e b) a função schumpeteriana que tem por objetivo tornar viáveis novos ciclos de acumulação, engendrando, em consequência, o aumento da complexidade econômica.


Como mostra o estudo citado, “a busca ao redor do mundo do cumprimento de tais funções econômicas pelos Estados aproxima (…) países aparentemente opostos, como a China e os Estados Unidos”. Em suas páginas fica provado, ademais, que delas não abdicaram também países como a Alemanha, a França, o Japão, a Coreia do Sul etc. Se a China tem 150.000 e a Alemanha tem 15.000, os Estados Unidos tem cerca de 7.000 estatais, além do complexo industrial-militar que, em interação com as grandes universidades, é responsável por grande parte do dinamismo científico e tecnológico desse país.


Ora, para que o Estado cumpra a função schumpeteriana antes mencionada, ele não pode prescindir das empresas estatais. Para que o desenvolvimento ocorra é requerido, ademais, tanto as políticas industriais de incentivo e proteção das empresas instaladas no território nacional quanto a criação de novos campos de inovação tecnológica, novos setores e novas indústrias.


E a razão é simples: como as empresas privadas têm por objetivo central obter o máximo lucro sem se arriscar a ter enormes prejuízos, elas tendem, mesmo não sendo conservadoras, a ser cautelosas em sua política de investimento. Mas isto não é tudo, como essas empresas operam num espaço econômico agora globalizado, elas não têm preferência por instalar as suas plataformas de produção numa nação determinada. Como as atividades econômicas do Estado, assim como as empresas estatais, têm como objetivo principal promover a prosperidade da nação, elas podem tomar iniciativas que as empresas privadas jamais tomarão, inclusive porque elas não têm a força econômica que é privilégio do Estado nacional.


Ora, a política sistemática de privatização executada no Brasil, desde o começo dos anos 1990 e retomada com mais força em 2019, é consentânea com o abandono cada vez maior da proteção da indústria aqui instalada, assim também com a despreocupação irresponsável com que foi e tem sido encarado o processo desindustrialização e de financeirização desde então observado. Ainda que não pareça à primeira vista, ela representa o abandono de qualquer projeto de desenvolvimento e mesmo de mero crescimento autônomo.

Figura 2

Se por volta de 1980, a participação da indústria de transformação no PIB chegara a 19% do PIB, agora ela tende a se estabelecer em menos de 10% (conforme mostra o Gráfico 1). E, como se sabe, esse conjunto de ramos da produção mercantil é aquele gerador de complexidade e motor do crescimento. Se o lucro sobre o patrimônio líquido das empresas financeiras tem ficado quase sempre acima de 20% (mesmo na depressão pós 2014), o mesmo indicador para a indústria de transformação tem ficado as vezes abaixo de 10% (no fundo do poço, em 2015 e 2016, ele ficou negativo). O crescimento relativo dos estoques totais de capital fixo produtivo e de ativos financeiros, conforme a Figura 2, mostra também, de modo complementar, a intensidade desse processo de financeirização: enquanto o primeiro aumentou cerca de 40%, entre 1996 e 2019, o segundo cresceu 400% no mesmo período.


Padrões de acumulação do capitalismo no Brasil

Em síntese, se o evolver do capitalismo no Brasil até o final da década dos anos 1980 foi orientado por uma perspectiva desenvolvimentista e, até certo ponto, nacionalista (ainda que de forma cadente após 1956), a partir do começo dos anos 1990 essa perspectiva se transformou em neoliberal e francamente dependentista (traço este que não se encontra no neoliberalismo adotado em muitas nações capitalistas, avançadas ou não). Ora, o neoliberalismo apresentou-se aqui com essa característica distintiva. Em consequência, foi adotada aqui, como horizonte utópico, a tese de que o mercado autorregulado seria o melhor que se poderia desejar para um país de renda média, cuja indústria de transformação possuía e possui apenas grau modesto de competitividade internacional, assim como outras fraquezas.


Antes de mostrar como se pode pensar essa transformação, parece correto indicar que ela aconteceu junto com uma mudança decisiva no sistema capitalista global. Ao mesmo tempo em que ocorreu no Brasil a transição acima mencionada ocorreu também uma mudança mais ampla na estruturação do próprio capitalismo como um todo: a partir dos anos 1980, pouco a pouco, é deslanchada a terceira onda de globalização e, junto como ela, acontece uma forte mudança na divisão internacional do trabalho. Por meio dela ocorre, sim, uma expressiva desconcentração da atividade econômica produtora de mercadorias no mundo, mas se formam, ao mesmo tempo, as grandes cadeias transnacionais de formação do valor, lideradas por grandes empresas – cuja maioria pertencem aos países centrais –, as quais passam a se valer do uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação.


Para compreender, em grandes traços, o que ocorreu nessa reestruturação das atividades produtivas em nível global, é preciso considerar três grupos de nações. As economias centrais clássicas (Estados Unidos, Alemanha, França, Canadá etc.) se desindustrializaram, mas apenas no que tange as atividades trabalho intensivas, pois mantiveram e avançaram nas atividades tecnologicamente mais sofisticadas. As economias periféricas desenvolvimentistas (China, Índia, Indonésia, Coreia do Sul etc.) industrializaram-se e se transformaram plataformas exportadoras, tornando-se assim mais complexas economicamente. Já as economias periféricas dependentistas (Brasil, Austrália, Argentina etc.) tornaram-se menos complexas, já que passaram por processos de reprimarização de suas atividades econômicas.


Para este último grupo de países, em particular para o Brasil, parece que se aplica bem a tese de Filgueiras, um reconhecido analista da economia brasileira e de sua história. Pois, a dependência se afigura para ele como um destino inelutável mantidas as estruturas atuais dos países capitalistas que ele chama de periféricos.


A marca característica fundamental das economias dos países periféricos ou “em desenvolvimento” é, desde sempre, a dependência; são economias capitalistas cujas dinâmicas e trajetórias são fortemente condicionadas e restringidas pelo processo de acumulação de capital no plano mundial – que lhes impõem a necessidade de adaptar suas respectivas estruturas produtivas internas às exigências dos países dominantes. Portanto, são economias subordinadas, com um grau de autonomia muito pequeno e que transferem continuadamente renda e riqueza para os países centrais (imperialistas) do sistema capitalista mundial.


É desse autor uma compreensão da história econômica do capitalismo no Brasil que a divide, a partir de meados do século XIX, em três grandes períodos, os quais são caracterizados por determinados padrões de desenvolvimento. Segundo ele, entre 1850 e 1930 vigorou o padrão primário-exportador que se caracterizava pela predominância da grande propriedade fundiária e por uma dinâmica de crescimento orientada para a exportação de produtos primários. Nesse período, observou-se a primazia da acumulação baseada na cafeicultura e, assim, da burguesia paulista que era proprietária principal do capital aplicado na produção dessa “commodity”. Ainda que existissem outras oligarquias regionais, assim como outras fontes de riqueza originadas da terra, era a exportação da rubiácea que funcionava como motor da economia capitalista no Brasil.

São, entretanto, os dois padrões seguintes teorizados por Filgueiras aqueles que interessam ao argumento central desta nota. E, para melhor entendimento, foram eles demarcados na Figura 3, a qual reproduz a Figura 1 como um fundo histórico. Vê-se aí quatro períodos distintos, mas eles configuram apenas dois padrões de acumulação, uma dicotomia crucial que se procura explicar em sequência.


O primeiro deles é caracterizado como desenvolvimento por substituição de importação. Esse padrão de acumulação, segundo esse autor, predominou de 1930 a 1990. Eis que ele inclui nesse intervalo de tempo não só a fase de prosperidade propiciada por este padrão, mas também a fase de crise e transição que ocorreu nos anos 1980. Nesse padrão, o motor da acumulação deixou de ser a exportação de produtos primários e passou a ser a indústria de transformação. Num primeiro subperíodo, de 1930 a 1956, o esforço de desenvolvimento foi feito mormente pelo capital nacional e pelo capital estatal. No entanto, a partir do governo JK, o capital multinacional, por meio dos investimentos diretos das empresas estrangeiras, foi incorporado ao esforço de industrialização, passando pouco a pouco a assumir mesmo uma posição hegemônica.

Figura 3

Assim, diz Filgueiras, “o nacional-desenvolvimentismo dos primeiros momentos da industrialização se transforma em desenvolvimentismo associado-dependente”. Nesse movimento histórico não desejado, mas ocorrido de fato, o centro propulsor da acumulação privada passa, pouco a pouco, ao domínio das empresas estrangeiras instaladas no Brasil. Vai se formando, assim, ao mesmo tempo, uma fração cosmopolita de interesses capitalistas, assim como uma classe média alta que com ela se identifica. Essa fração cada vez mais robusta, entretanto, perfila ao lado de uma outra fração formada pelos interesses nacionalizantes, que vai perdendo força e acaba ficando subordinada de fato à primeira. De qualquer modo, enfatiza esse autor, “com a implantação da indústria de bens de consumo durável e segmentos da indústria de bens de capital, a industrialização deslancha e o circuito da acumulação de capital, em grande medida, se internaliza.” Em decorrência, o mercado interno se torna mais importante do que o mercado externo.


Com a crise do final dos anos 1970 e prolongada por toda a década seguinte, o processo de acumulação por substituição de importações perdeu o seu dinamismo. Com o advento dessa “década perdida”, marcada por uma crise inflacionária renitente, o padrão de acumulação anterior foi substituído, segundo Filgueiras, por um outro que ele próprio denomina de “liberal-periférico”. E que, entretanto, melhor fica caracterizado quando se nota que veio à tona por meio da adoção da ideologia neoliberal em associação com uma opção pela dependência, ou seja, por um franco dependentismo. A burguesia cosmopolita torna-se responsável, então, pela promoção e sustentação dessa ideologia no meio social, assim como pelo esforço de instituí-la, de levá-la à prática.


Desse modo, o processo de industrialização, a partir do começo dos anos 1990, tendeu a ser deixado a si mesmo; as indústrias aqui instaladas foram submetidas a um processo concorrência por meio de uma redução das tarifas de importação , abertura dos mercados e valorização da taxa de câmbio, cujo resultado foi a desindustrialização. À medida que a acumulação real tendeu à estagnação, ganhou predominância um processo de financeirização. Este tem a sua própria lógica, pois, em última análise, nutre-se da acumulação de capital fictício. Entretanto, essa lógica exige que ele subordine e parasite a acumulação de capital real que, assim, perde força e primazia.


Eis que esses dois resultados – note-se bem – foram ilustrados por meio das figuras apresentadas. Parece evidente, também, que a política econômica no Brasil nas últimas três décadas – mesmo com alguma fraca resistência nos governos do PT – pautou-se por caminhar e se manter no horizonte utópico do mercado autorregulado. É por isso que a tendência observada nos últimos 30 anos mostra, para quem quer ver, a agonia do desenvolvimento no Brasil. Como uma recuperação desse Estado não parece crível no presente momento, a sua morte possível nas próximas décadas aparece como um espectro ameaçador…


É preciso, portanto, que as forças potenciais da civilização – que moram ainda nas classes trabalhadoras em sentido bem amplo –, passem a acreditar e apostar numa mudança mais profunda da sociedade. E, nessa perspectiva, o socialismo democrático e o ecossocialismo surgem como alternativas promissoras. Se o presságio acima se confirmar, sobrevirá a barbárie e o fim de nossa humanidade possível. Veja-se que, em certos espaços da sociedade brasileira, isto já está acontecendo e de modo bem evidente.


Fonte: Outras Palavras

2 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page