Mostra convida a um passeio poético e sinestésico por 150 obras do artista carioca, a maior no país desde 2000. 'Entrevendo' abre ao público nesta quinta no Sesc Pompeia.
Cildo Meireles (Rio de Janeiro, 1948) descobriu a arte quando, aos 12 anos, ganhou do pai um álbum com a obra do pintor espanhol Francisco Goya. "De uma certa maneira, ele foi um mestre para mim, porque eu ficava desenhando, copiando seus traços", conta ao EL PAÍS, em uma entrevista no Sesc Pompeia, em São Paulo, espaço que exibe, a partir desta quinta-feira, 150 obras do artista, na exposição Entrevendo. Seis décadas depois daquele presente, ele converteu-se no maior expoente da arte contemporânea brasileira no mundo, ao ponto de que o título de um livro sobre seu trabalho dispense sobrenome —como em Cildo: estudos, espaços, tempo, publicano no ano passado pela editora Ubu—.
No Brasil, no entanto, há pelo menos duas gerações que não conhecem sua obra, já que a última grande exposição do artista foi em 2000, nos Museus de Arte Moderna (MAM) de São Paulo e do Rio de Janeiro, com trabalhos expostos no New Museum, de Nova York. Foi precisamente pensando em aproximar Cildo desse público que os curadores Julia Rebouças e Diego Matos selecionaram as obras de mais de 50 anos de carreira que ocuparão, até fevereiro de 2020, mais de três mil metros quadrados do centro cultural paulistano.
"Não queríamos fazer uma retrospectiva. Primeiro, porque não teríamos condições materiais e físicas para isso e, depois, porque ele é um artista em plena atividade", explica Matos. O próprio Cildo conta que gosta de pensar em uma espécie de antologia poética e, centrada na percepção de sentido (que passa, às vezes, pelo subconsciente), Entrevendo convida o público a um passeio poético por obras sinestésicas que aguçam sentidos como faro e senso de localização.
Já de entrada, o visitante é recepcionado por uma espécie de oca construída com cédulas de países latino-americanos, construída sobre ossos (de boi) e rodeada por uma grande cerca de velas. Dentro da estrutura, soa uma motosserra. Essa é Olvido, a interpretação de Cildo do processo de colonização no continente. Ao lado, está a obra que dá nome à exposição e que convida o público a caminhar por uma instalação cilíndrica de madeira com dois gelos na boca —um de água salgada, o outro, de água doce— enquanto um grande ventilador sopra calor em sua direção.
Outros destaques são algumas obras inéditas no país, como Amerikkka (1991/2013), que faz nascer um continente a partir de aproximadamente 17 mil ovos de madeira e 33 mil balas de armas de fogo, e Eureka/Blindhotland (1970-2018), montada por primeira vez em sua totalidade. Esta última, composta por três instalações de esferas do mesmo tamanho e de diferentes pesos que enganam os olhos —o conceito é acionar outros sentidos além da visão, para perceber o entorno— contará com uma inserção em um jornal (não se sabe bem o quê, nem quando, nem onde).
Ideias assim são intrínsecas ao trabalho de Cildo, que, entre 1970 e 1975, produziu uma série de trabalhos que imprimiam frases consideradas subversivas em cédulas de dinheiro e garrafas de Coca-Cola. A arte do cotidiano, e não do metafísico, é sua essência. "Quando fiz as primeiras inserções, passei um tempo num certo impasse, porque não queria fazer daquilo um estilo, essa coisa de que o mercado tanto gosta, de converter sua obra em uma embalagem", conta. "Depois desse período de crise rimbaudiana, comecei a pensar cada vez mais em peças imersivas, que fossem feitas para uma pessoa, pelo tempo que ela quisesse. O espaço aqui oferece isso, não é tão volátil. Você pode chegar, entrar, ficar quanto quiser", acrescenta.
Arte e crítica social
Cildo Meireles detesta conversar. Diz que só gosta de falar "abobrinhas, e de futebol, sempre". Com uma voz quase inaudível e tom pausado, aceita, no entanto, desvelar um pouco de seu método de trabalho. Ou a falta dele. "Eu gosto de usar a ideia de relâmpago: passa alguma coisa na tua cabeça, e o propósito pode estar na política, no cinema, em alguma coisa que você não sabe precisar que forma tem, que cor, que tamanho. E, aos poucos, você vai se aproximando até materializar isso. Meu método de trabalho sempre foi esse. De uma certa maneira, quase que independe de uma realidade imediata. Eu continuo tomando notas. Às vezes, passo anos, décadas, fazendo essas anotações", conta.
Como exemplo, cita a que seja, quiçá, a obra mais conhecida do público brasileiro, Desvio para o Vermelho, exposta na galeria que leva seu nome em Inhotim. "A primeira anotação dessa obra é de 1967. Naquele momento, eu estava mais interessado nos espaços virtuais, nas maquetes... Mas só realizei ela em 1984, no MAM do Rio", lembra. "Tem outros trabalhos que são de 1969 e que só montei pela primeira vez em 2004, 35 anos depois. Eu gosto, inclusive, de deixar maturar, até porque pode ser que, nesse meio tempo, algum outro artista faça e me poupe", sorri.
Cildo referencia-se no conceito de arte cunhado pelo artista plástico estadounidense Carl André. "Ele dizia que 'o homem sobe a montanha porque ela está lá. E o artista faz a obra de arte porque ela não está lá'. A arte é uma inutilidade, em princípio, mas é indispensável", afirma.
Perguntado a que atribui a recente valorização da arte brasileira no mercado internacional, ele é categórico: "A arte é prostituta. Ela está onde o dinheiro está". Mas matiza: "No final dos anos 1980, começou-se a encarar a produção periférica. Houve o momento da arte da União Soviética, da arte japonesa, e, no final dessa década, descobriram a arte brasileira contemporânea. Hoje, é inimaginável uma grande exposição de arte contemporânea em qualquer lugar do mundo sem um artista brasileiro".
O artista rebate a afirmação de que sua arte é essencialmente crítica social. No ano passado, no entanto, ele atualizou uma das suas intervenções mais famosas —a das cédulas de dinheiro— para carimbar nelas o rosto de Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro no dia 14 de março de 2018. Pergunto-lhe se, de haver começado alguns meses mais tarde, o público também veria em Entrevendo cédulas com o nome ou o rosto de Ágatha Félix, de 12 anos, também assassinada capital carioca, com um tiro de fuzil, na última sexta-feira. "O problema é que o Brasil sempre se supera. Infelizmente, já deve estar acontecendo outra coisa tão terrível quanto isso".
Entrevendo, com 150 obras de Cildo Meireles. Visitação gratuita no Sesc Pompeia, de 26 de setembro a 2 de fevereiro de 2020.
Fonte: El País Global
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