Em entrevista, líder do PDT reitera críticas a Lula e afirma que seu partido tem um acordo para disputar as eleições municipais em aliança com PV, PSB e Rede. "Onde um estiver melhor, os outros três apoiam”.
Ciro Gomes, vice-presidente do PDT, tem uma lista de mágoas e decepções com o ex-presidente Lula, que já deixou explícita verbalmente, desde o ano passado. Ciro não foi nem visitar o antigo aliado na prisão no ano e meio em que o petista esteve em Curitiba. Ainda o menciona como um velho amigo, mas fala em 'lulopetismo' pejorativamente para marcar a distância que pretende manter politicamente. Hoje encontra mais afinidade no DEM, de Rodrigo Maia, por quem se derrama em elogios. Ciro tem se reunido com lideranças do partido de direita é para tratar do Brasil, e das eleições do ano que vem. Mas Ciro tem falado com todo mundo. “Fico três dias em casa [em Fortaleza], e 14 dias fora, viajando pelo Brasil”, conta. Nessas saídas, se despede com dor do filho Gael, hoje com 3 anos.
O ex, talvez futuro presidenciável, tem urgência para um momento de “combustão” brasileira. Em São Paulo, bate cartão de 15 em 15 dias. Nesta terça, esteve na redação do EL PAÍS para uma conversa de duas horas e meia. Quando a entrevista caminhava para o final, o fotógrafo Fernando Cavalcanti, que acompanha o encontro, se atreve a provocar Ciro num momento de descontração: “O senhor tem inveja do Lula?”. “Eu? Nenhuma”, responde ele, sem titubear. “Por que teria inveja de um cara preso e condenado? Eles esculhambam o carteiro para não ler a carta”, diz Ciro. “E se eu tivesse [inveja], o que eu disse aqui que não é verdade?”, finaliza. A seguir, os principais trechos.
Pergunta. Depois da soltura do Lula as atenções se voltam para você, e as possibilidades de aproximação com o PT, ainda que repita que não há chance. Nem conversa com o PT?
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Resposta. Sou uma pessoa que olha as coisas com a complexidade que elas têm. A soltura do Lula envolve aspectos políticos, judiciários e humanos. Lula não é uma figura que eu conheço da televisão. É um velho amigo de 35 anos. Já fomos muitos amigos, mas o apreço político sumiu. Nunca comemorei a prisão dele. Pelo contrário, eu estava nos Estados Unidos e quando eu soube eu passei mal, fisicamente, e olha que tenho saúde de aço. Ele solto, devia dar um tempo. Para mim, existem, neste momento, duas grandes questões. Uma é a luta contra fascismo, pela preservação do Estado de Direito e o avanço bolsonarista. Nesse sentido, a unidade das forças progressistas se unem na luta. Não tem nada que ter reunião. Cada um vai com seu rosto. No enfrentamento da Previdência, trabalhamos junto com o PT. Tem contradições, os deputados que votaram a favor do Governo, abrimos processo de discussão. O PT fez o que sempre fez. Por cima da mesa, todos contra. Por baixo da mesa, governadores do PT, sem exceção, trabalharam pela reforma da Previdência. No fim da eleição [para presidente da Câmara], o PT achou que era interessante fazer intervenção na mesa, mentindo ao Freixo dizendo que ia apoiá-lo. Eu disse: "É mentira, o [Rodrigo] Maia já está eleito, ele não quer ser eleito como o homem do Governo. Temos de entender que perdemos feio a eleição no Congresso". Falei ao PT o que podíamos fazer. O Maia, já vitorioso, queria nosso apoio para ser homem do Parlamento e não do Governo. Primeiro compromisso: Parlamento obrigará Bolsonaro ao jogo democrático. Segundo, mitigar danos. Nós, da oposição, que somos minorias, vamos ter respeitados nossos direitos a requerimentos, emendas, sem tratoramento do presidente da Câmara. E PT discordou, mentiu publicamente ao [deputado do PSOL-RJ Marcelo] Freixo, e nós acertamos com o Rodrigo. Ele sendo exemplar. Fazendo gestos centrais para jogar o jogo democrático. Agora vai mandar arquivar a PEC de exploração mineral em terras indígenas. Até no que era convicção dele, como a reforma previdenciária, ele foi exemplar, conquistamos pequenas vitórias.
P. O senhor está citando o Marcelo Freixo, mas ele estava lá em São Bernardo, emocionado, abraçando Lula.
"Maia é exemplar fazendo gestos centrais para jogar o jogo democrático"
R. Hoje [nesta terça] Gleisi Hoffmann estava no Rio presidindo reunião tirando a posição de lançar candidato próprio. Eles viraram enganadores, sem escrúpulo de nenhuma natureza. É manobra fictícia para apoiar o Eduardo Paes. Há uma tensão dentro do PT. Na medida em que Lula sai da cadeia, essa tensão fica um pouco mais clara. Lula é o dono do partido, é o caudilho. Agora solto, as pessoas cobram o custo dessas contradições. Já existe muita gente começando a pensar muito mais alto. E espero que essas pessoas façam um debate mais aberto. O que está corrompendo mais gravemente o Lula não foi deixar o poder subir à cabeça, lotear o Governo todo para subornar gente para seu projeto de poder. O que mais corrompe o Lula é a bajulação, falta absoluta de semancol, de qualquer aconselhamento ou reparo de sua circunstância, está cercado de bajuladores.
P. Estamos diante de uma realidade muito intensa tanto internamente — com um Governo de ruptura —, como ao nosso redor, com países em completa convulsão, como Chile e Bolívia. Não dá a sensação de que não temos o direito de errar nas decisões agora?
R. A gente nunca tem direito de errar nas escolhas. Mas somos seres humanos falíveis. Agora, a persistência no erro, após constatada suas consequências, aí já é maldade. A grande questão que deve se fazer hoje, com tempo para reparar o debate —e temos três longos e intermináveis anos, na melhor hipótese — : existiria agora o Bolsonaro e o bolsonarismo sem o lulopetismo e suas escolhas?
P. Mas falamos de só uma responsabilidade?
R. Mas ali só tem um, do lulopetismo.
P. Mas quem apoiou cegamente a Lava Jato e depois voltou atrás?
R. A questão é antecedente a essa. Existiria o lavajatismo sem o lulopetismo? Fui ministro do Itamar Franco, e também houve acusações. O que Itamar fez? Mandou apurar. O [ex-ministro Antonio] Palocci é uma figura central do lulopetismo. A escolha da Carta ao Povo Brasileiro foi lúcida, e isso é uma questão. Não só a corrupção. O Brasil tem o sistema tributário mais regressivo do planeta. Se isso for verdade, como é que se mantém um sistema regressivo desta profundidade depois de 13 anos de Governo autorreferido de esquerda? A crise econômica mais grave da nossa história foi produzida pelo Bolsonaro?
Ciro Gomes, em entrevista ao EL PAÍS, em São Paulo.
Ciro Gomes, em entrevista ao EL PAÍS, em São Paulo.FERNANDO CAVALCANTI.
P. Claro que não.
R. Foi produzida pelo Michel Temer? Foi pelo PT. A Dilma era escolha do Lula. Existiria o bolsonarismo sem as escolhas do Lula? A gente não pode ser contra o Bolsonaro sem entender as causas, porque o Bolsonaro é descartável.
P. Quando fala em lulopetismo o senhor não teme conceituar os eleitores que se sentem gratos a ele, que seriam uma parcela interessante para o senhor?
R. Esse é um risco que tem de se correr, pois as coisas têm que ter nome. Eu não tenho nada contra o eleitor médio, militante do PT. Nas ultimas eleições de 2018 apoiei [o governador] Camilo Santana do PT no meu Estado, Rui Costa, na Bahia, Wellington Dias, no Piauí, Jorge Viana, no Acre. Na minha convicção, eram os melhores para as circunstâncias, em suas respectivas comunidades. Pouco importa que eu relativize, racionalize, o petista fanático não é racional. Ele é um bolsominion, de sinal trocado. Igualzinho, rigorosamente. Para eles, Lula pode andar pelado, bater na mãe, que eles defendem. Que importa que eu tenha sido aliado por 21 anos, e Lula chorando dizer que fui o amigo mais leal a ele, no escândalo do mensalão. Sabe o que eles fazem? Recrutaram da escória da direita brasileira a serviço da esquerda para fazer esse trabalho, e trucidaram a dignidade da Marina Silva, do Plínio de Arruda Sampaio. Mas eles não vão me empurrar para a direita.
P. O senhor se posiciona num campo disputado com o PT. O que pode acontecer de diferente ate 2022, que não aconteceu em 2018?
R. Quantos cientistas políticos viram a vitória de Bolsonaro?
P. 99,99% não viu.
"O que mais corrompe o Lula é a bajulação, falta absoluta de semancol"
R. Eu, profissional do ramo, que conheço tudo, não vi. Porque ali pelas tantas houve uma facada. Aí num sistema presidencialista tem esse componente maravilhoso e perigoso, a absoluta inorganicidade, e vira presidente. Quando o Brasil se redemocratizou tínhamos dois partidos, MDB e PFL, que se organizaram para sustentar a transição de Tancredo Neves. Depois, nas eleições, tiraram 2% e 1%. Com o povo buscando o novo, as elites empacotaram Collor de Mello, um corrupto ancestral, como um moralista. Culpa das elites. O mesmo que fizeram com Bolsonaro, que é um amoral, e corrupto, na dimensão que pôde. Nenhum de nós dava um centavo furado pela eleição do Bolsonaro. Representava o antipetismo tosco, uma persona política tão absurda. Achávamos que íamos triturá-lo no debate. Aí leva uma facada. Pronto. E pacote veio todo. Elite engoliu ele, elite queria Alckmin, Meirelles, topava Amoêdo, Marina. Eu nem pensar, Haddad dava para engolir, e Bolsonaro era última hipótese. A elite sabe quem é Bolsonaro, desde sempre. E agora estão aí, doidos para correr atrás da privatização, porque ele já já dá pra atrás, muda de ideia, deixa eles falando sozinho... Bolsonaro votou sempre contra todas as tentativas de reforma da previdência brasileira.
P. O que o senhor enxerga a partir daqui?
R. Vejo que teremos um crise tão grave —que já estamos na verdade— tão profunda e complexa, com poder de combustão tão grande, e com reviravoltas tão espetaculares, que quem fizer uma aposta no futuro do Brasil é um descuidado. O que pode acontecer? Bolsonaro termina o mandato?
P. O senhor já disse achar que ele não não termina.
R. É um mero palpite. Mas chamem a história do Brasil para mostrar que não é só um mero palpite. Somente três presidentes terminaram (JK, FHC e Lula) seus mandatos na história recente do Brasil. E Bolsonaro agrava esse histórico pela falta de capacidade dele de conviver, está saindo do partido dele, que ele inventou. Todo dia uma confusão, ligado à milícia, três filhos, ligado a desvio de dinheiro, criou uma aresta no mundo exterior, comércio internacional com pior saldo em cinco anos. Vassalagem total aos Estados Unidos e o Brasil perdendo dinheiro, tudo em troca de nada. Como vai aumentar isso? A base social dele vai esfarinhando.
Ciro Gomes, em entrevista ao EL PAÍS, em São Paulo.
Ciro Gomes, em entrevista ao EL PAÍS, em São Paulo.
P. Mas o que vai acontecer?
R. O lulopetismo tem 25%, bolsonarismo tem outros 25%, e 50% dos brasileiros estamos tontos. Desorientados, assustados, chocados nas simplificações grosseiras, com energia destrutiva dos dois lados se confrontando. Então vamos ver se a gente consegue organizar essa turma aí.
P. E que turma é essa? Com quem o senhor está conversando hoje?
R. Estou conversando com o planeta todo, passo o dia todo conversando.
P. Com o DEM?
R. Agora orgânica, e sistematicamente. Desde a eleição do Rodrigo [Maia] percebi que precisava acertar o passo com eles, em que deixe nossas diferenças de lado e vamos ao que nos é comum. Defesa dos ritos e limites democráticos. E, dado que eles estão no poder e nós não, a contenção de danos.
P. Houve esse acordo?
R. Formal, de boca, palavra, mas conheço ele desde o pai [Cesar Maia]. Está cumprindo. Agora recentemente sentamos e abrimos uma conversa sobre eleições municipais. Muito boa conversa, de profissional.
P. Vocês podem se juntar em algumas cidades para as municipais?
R. Preservadas nossas diferenças, estamos conversando. Conversei com ele, e com o presidente do DEM, ACM Neto. Com Rodrigo Maia só tenho tido alegrias, ele está fazendo história. A gente não precisa ter afinidade, precisamos ter confiança. Diferente do Lula. Lula [o que promete] de manhã não serve de tarde, é um enganador profissional. Aí sistematizamos conversa com PSB, Rede e PV. Reunimos os líderes, todos os dirigentes e combinamos uma dinâmica. Onde um de nós quatro tiver mais chance os outros três apoiam.
P. Vocês já têm uma projeção para eleições?
R. Não, estamos trabalhando, saindo dali, da primeira reunião. O traço em comum é a inconfiabilidade do PT, para todos os quatro, e a necessidade de a gente preparar uma alternativa para um país que vai mergulhar numa crise e todo mundo está vendo. O PV tem uma resposta própria deles, proposta pronta, que é de parlamentarismo. Eu sou parlamentarista, mas acho que pelo plebiscito, virou cláusula pétrea, mas entendo as razões do PV, com as coisas se agravando e os ventos da vizinhança, eleições nos Estados Unidos, etc. E então [Carlos] Lupi [presidente do PDT] pede para botar a bola no chão. E agora, como é? Sou mais cuidadoso, não quero ficar como antes, namorando, namorando, namorando, para depois ser desvalorizado, como aconteceu. Meu pescoço passou a valer ouro. Várias pessoas foram prejudicadas por minha causa em 2018. Marcio Lacerda em Minas, Marília Arraes, tirada violentamente em Pernambuco... Para minha surpresa, o acordo foi mais rápido do que esperava. Quem estiver melhor, os outros três apoiam. Vamos mapear para ver se é praticável isso e estamos trabalhando nisso.
P. O senhor vê viável uma chapa, por exemplo, Ciro presidente e Rodrigo Maia vice, para 2022?
R. Tudo muito cedo. Meu diálogo com Rodrigo Maia tem dois objetivos: obrigar Bolsonaro a se conter dentro dos limites do Estado de direito e conter danos nas agendas anti-pobre, anti-povo e anti-nacional do Governo. E devo dizer, por justiça, que ele está cumprindo um belo papel!
P. O senhor já conversou com o Luciano Huck?
R. Não, eu sou contra estagiário na Presidência da República, não interessa se pela direita ou esquerda. Presidência da República é para profissional treinado. Quando você lê pesquisas Huck sai com 12 pontos como eu, e isso para mim é uma vitória extraordinária. Apesar de tudo, o povo não conhece política. Huck é 100% preferido por 12% e rejeitado por 70%. Tudo pode mudar, tem mil mecanismos, tenta mudar discurso, etc.
P. E João Doria?
R. Doria foi vitória de Pirro, tomando o PSDB para si, mas vai ser igual ao PRP [Partido Republicano Paulista, de Ademar de Barros, que foi governador de São Paulo nos anos 1960], em São Paulo. Com dificuldade imensa de sair de São Paulo. E tem um trabalho enorme que é governar o Estado.
P. Eduardo Bolsonaro insinuou que Lula solto gera sentimento antipetista muito maior, supondo que uniria a direita. É capaz de unir?
R. Isso é wishfull thinking na cabeça do Eduardo Bolsonaro, que é um boçal, opinião dele e tolete de esterco é a mesma coisa.
P. Mas a ideia de união é interpretação minha, não foram palavras exatas dele.
R. Mas a ideia de que Lula solto vai catalisar bolsonarismo é wishfull thinking. Eles contam muito com isso e trabalham por isso, contam com solidariedade implícita do lulopetismo que precisa de uma caricatura que afirme seu mérito pela negação. Chico Buarque, se for chamado a explicar o loteamento da Petrobras, sistema regressivo, vai encolhendo na explicação. Mas se é ele ou Bolsonaro. Todo mundo aperta o nariz e vai com Lula.
P. Acha que essas provocações do clã Bolsonaro contra a democracia podem se conectar com a ideia da diplomacia internacional de que parte dos militares andam inspiradas na América Latina por movimentos como o da Bolívia, onde o Exército o obrigou a renunciar?
R. Antes de ontem eu pus em xeque meu projeto, estudado há 20 anos, e agreguei, no capítulo de defesa, a formação de militares. A Bolívia crescia como nenhum outro país, se esforçando para preservar e agregar valor em sua base produtiva de commodities, menos o caudilhismo personalista, que é uma variável a refletir depois. Temi muito pela vida do Evo Morales. Gosto muito dele. Está em segurança. Ficou flagrante que não estamos livres das sargentadas ao modo dos anos 50 e 60. Vai acontecer no Brasil? Deus sendo brasileiro já está nos protegendo. Bolsonaro, no simbólico, já são eles no poder. E eles estão fracassando. E os profissionais das Forças Armadas estão ficando muito incomodados.
P. O senhor conversa com o alto comando?
R. Não. Converso com militares, mas não com o alto comando, pois acho impertinente.
P. O Brasil perdeu a voz conciliadora que tinha no continente?
Ciro Gomes conversa com o EL PAÍS, em São Paulo.
Ciro Gomes conversa com o EL PAÍS, em São Paulo.
R. Bolsonaro levou o Brasil de volta às antecedências do Barão do Rio Branco. A conquista do Acre, que o Barão do Rio Branco pacificou com tratado de Petrópolis, a maluquice do Jânio Quadros na Guerra da Lagosta, na confusão com a Guiana Francesa [França]. Trabalhamos muitos anos para vencer a grande desconfiança sobre nosso desempenho desde a Guerra do Paraguai. Foram décadas, século, para Bolsonaro voltar à estaca zero. Sem conversar com ninguém, Bolsonaro fala que o Brasil vai apoiar mudança de capital de Israel de Tel Aviv para Jerusalém. E depois a Alemanha, a França, se mete no processo eleitoral da Argentina, tudo de forma grosseira e tosca. Um macaco na loja de louças.
P. A diplomacia brasileira sempre projetou uma imagem externa da nação conciliadora, da democracia racial do Brasil, que não é real nem internamente, não?
R. Falta no Brasil uma luz intelectual mais autônoma. O colonialismo intelectual, como menciona Mangabeira Unger, é talvez nossa maior tragédia. Na própria afirmação identitária, replicamos um formato que não é nosso, é norte-americano. Muito relevante para um país fragmentado como o nosso, e com injustiças tão graves. Porém a soma dos interesses identitários —negros, jovens, mulheres — não dá o interesse nacional. A esquerda, aqui, abriu mão de um projeto holista, de transformação estrutural. Por exemplo, quando Marcelo Crivella para um livro que venderia 20 exemplares, o outro lado em vez de dizer: “Proibir livro, não”. Diz: "Proibir livro porque tem um beijo gay não". Aí aperfeiçoa. Isso é um problema da esquerda mundial e brasileira. Temos de aprender a jogar esse novo jogo. Você lacra, e perde a eleição.
P. Ao falar de 2018, você usou a frase que seu pescoço vale ouro. Vale mais agora, não?
R. Bem mais.
P. E o senhor disse uma vez, em 2017, que uma chapa com Haddad seria um dream team. Se o Ciro fosse candidato a presidente e o PT propusesse uma chapa com Haddad vice, aceitaria?
R. Com esta burocracia do PT não quero nem ir pro céu. Eu sabia que isso não era possível. Não por ser profeta, mas porque eu estava conversando com Haddad. Cansei de dizer a ele: “Você não tem autonomia", "o Lula não vai deixar acontecer”. E ele me dizia: “Mas você aceita?”. “Topo na hora”, eu respondia. Só para você ver que a intransigência não é aqui, é lá. Aí no limite, Lula me chamou para ser o Haddad dele.
"O coitado do Haddad, que é saco de pancada e matéria para qualquer uso"
P. Mas que ia virar a cabeça de chapa depois.
R. A mentira era essa. Mas só que eu perdia. O problema não era eu. Era o lulopetismo que estava em xeque. E se eu fosse, que é que tinha acontecido? Eu teria fechado uma porta alternativa para o Brasil.
P. O senhor ia ficar vinculado ao PT?
R. Sim! Mais do que o PT, que é uma organização coletiva que, eu volto dizer, respeito. O que eu não respeito mais é essa burocracia do lulopetismo. Ninguém pode tirar ficha corrida na polícia. Volto a dizer, Paulo Paim, [...], Olívio Dutra, Raul Ponte, PT do Rio Grande do Sul, Henrique Fontana, aí você pega Suplicy, Rui Costa. Todos eles são marginalizados. O Lula apoiou o Eunício Oliveira contra o Camilo Santana.
P. O Camilo Santana está bem no Ceará?
R. Fica frio. Eu fiquei frio 20 anos. Minhas memórias vão ser muito interessantes.
P. Sem dúvida.
R. Eu tinha 16% a 17% nas pesquisas de 2010. Dos quatro [candidatos] da esquerda, eu fiquei fora da eleição. E o PSB, que era meu partido, querendo que eu fosse candidato, programas de TV falando para eu ser candidato, todos querendo que eu fosse candidato, e o Lula, na frente de várias pessoas, chorando para ser candidato. Chega 2010 e Lula me chama num jantar para pedir a mim que abra mão, que queria nossa ajuda. Que é que eu fiz? Topei. Daqui para frente eu viro cúmplice.
P. Há a grande crítica de o PT não ter dado espaço a novas lideranças.
R. Há falta de um projeto, algo que antecede as práticas podres. Maior crise econômica produzida por quem? O [ex-ministro da Fazenda Joaquim] Levy, nomeado pela Dilma para esconjurar a crise, era quinto nível do Bradesco, quebrou o Rio como secretário da Fazenda. Qual o papel que ele produziu? É o [mesmo que o Paulo] Guedes. Rei do mercado. O que Guedes entende da vida real do Brasil? Da geografia humana, física, do setor público brasileiros, de suas manhas e contradições.
P. Levy fez papel de Guedes naquele momento?
R. Guedes é melhor porque não tem pruridos ou contradições. É neoliberal convicto das lições que tomou nos anos 80 em Chicago, só viu sua conta engordar com jogo de rentismo. Vai reconstitucionalizar o Brasil sem ter autoridade para isso.
P. O Governo Bolsonaro fecha essa conta, com o super-pacote semana passada, essa carteira Verde e Amarela?
R. Não fecha. Porque a economia brasileira que o Guedes não conhece está colapsada. Não se sustenta nenhuma nação do mundo com base no capital dos outros. Não tem esse precedente. A não ser os Estados Unidos, que emite padrão dólar, que atende troca referência do mundo inteiro. Nossa poupança está em declínio, 14,6%. O que é feito para consertar isso? Nada. Acabaram de colocar 7,5% de tributo no seguro-desemprego. Outra questão de fundo, paradigma econômico. O que funciona é coordenação estratégica entre Estado forte, empresariado convergente com consenso afirmado, e academia ocupada organicamente produzindo as respostas tecno-científicas. Estamos no pior momento da história da academia, em retrocesso profundo, empresariado dominado por esquizofrenia que perde no negócio e ganha no rentismo. 220.000 pontos comerciais e 13.000 indústrias fecharam no Brasil nos últimos três anos. Fecham 1.000 empregos industriais por mês em São Paulo. Estamos com menor consumo das famílias, emprego informal, metade do povo ganha 413 reais, e cresce inadimplência. Isso não tem solução no mercado. Simplesmente não dá para repassar 42% ao ano, que é o juro na ponta [ao consumidor], porque o PT concentrou em cinco bancos 85% das transações financeiras. Isso é agravado pelo Bolsonaro porque Guedes quer fechar os bancos públicos. Já está esquartejando, diminuindo poder de interferir da Caixa Econômica e do Banco do Brasil. O investimento público previsto para o ano que vem é de 19 bilhões, antes do contingenciamento. Ceará vai investir 4 bilhões. Olha o tamanho da aberração.
P. Foi vendido por este Governo e por toda a classe econômica que a reforma da Previdência traria um “tsunami” de investimentos. O que ocorreu?
"Com Rodrigo Maia só tenho tido alegrias, ele está fazendo história"
R. Quando eu disse que seria a maior ressaca brasileira ninguém ouviu. Ela é injusta, e não reforma. Ajuste muito transitório. Daqui a três anos o Brasil estará falando em reforma da Previdência de novo. O problema é o sistema, é o modelo. De repartição pública, só tem aqui, na Venezuela e Argentina. Quando nós montamos o sistema de Previdência no Brasil havia 8 trabalhadores ocupados para financiar um aposentado que tinha expectativa de vida de 60 anos. Hoje temos menos de 1,5 trabalhador para financiar um aposentado com expectativa de vida de 73. O mal que faz ao país é o pensamento de esquerda não olhar nada disso. Esse regime não funciona mais. Você tem de discutir um regime de capitalização. Mas não esse regime ao modo Guedes, de estabelecer uma experiência ruinosa que não funciona em nenhum lugar do mundo. A poupança do futuro do aposentado na jogatina do rentismo, com riscos inerentes a ele. Tem de ser um sistema público sob controle dos trabalhadores. Dado que a previdência tem um déficit, você tem a necessidade de não dispensar nenhum centavo. Guedes quer abrir mão da contribuição patronal. O que foi feito no Chile e já micou.
P. Mas essa conta fecha?
R. Sim, por um sistema misto de três pilares. Um de responsabilidade social, embrião de renda mínima cidadã, de um salário mínimo pago a todos os brasileiros, independente de contribuir ou não. Segundo pilar: regime de repartição unificado do servidor público, privado, militares, todo mundo, com teto de 4 a 5.000 reais, a discutir. E terceiro, regime de adesão complementar de capitalização para quem quer receber acima do teto, porém, público, sob controle dos trabalhadores, regulado, e aplicado em investimentos triple A. Aí eleva a formação bruta de capital [taxa de investimento]. Ajuda a aumentar a taxa de poupança. Tudo sob uma comissão popular de trabalhadores.
P. Quando a gente vê a participação popular sendo restrita, pensar em controle de trabalhadores é viável?
R. Se você tem uma vaca que todo dia lhe dá leite, e aí tem carrapato. Mata a vaca? Mata o carrapato. É um carrapato que deu depois de esquerdismo no Brasil. É assim que funciona o lulopetismo.
P. Nós vemos pessoas falando de redução de Estado, privatização do SUS...
R. Mas a gente sabe como funciona a rede de saúde dos EUA.
P. Mas a classe média paulistana, por exemplo, não sabe.
R. Mas eu sei, vou me guiar pela estupidez e preconceito?
P. Mas o senhor precisa convencer este estúpido preconceituoso de que o que ele propõe é contra ele.
R. A estratégia da unanimidade, para mim, sempre conduz a um fracasso.
P. Mas o senhor quer ser presidente em 2022?
R. Quero muito. Mas quero ser presidente baseado numa ideia lúcida. Porque costumo sair muito popular das experiências de Governo que tive. Gosto de sair muito popular. Para isso preciso que as pessoas conheçam o problema, racionalizem as soluções, e votem nas minhas ideias e não nas minha personalidade. O Brasil precisa desesperadamente construir uma alternativa. Não sei se serei eu, mas vou ajudar a construí-la. Porque é necessário. Não é fácil, simples e é extremamente arriscado, mas é um dever moral que eu tenho com o meu país. Inclusive estou explorando a mentira do Lula. Porque a esta altura o Lula já prometeu a candidatura para o Flávio Dino, já insinuou que o Camilo Santana pode ser o candidato. O coitado do Haddad, que é saco de pancada e matéria para qualquer uso. E se submete a esse tipo de coisa. O Lula está dando corda ao Boulos. É um filme velho que eu conheço. Quantas vezes ele disse 'você é meu candidato, o único cara que foi leal comigo. O resto só quer me explorar'... aos prantos com dona Marisa, Patrícia Pilar, minha ex-mulher, com os filhos, a gente jogando baralho.
P. Por que você diz que construir uma alternativa “é extremamente arriscado”?
R. Porque é muito mais fácil entender que as coisas são preto ou branco. No imaginário popular é Fla x Flu. E eu estou querendo lembrar que existe o Vasco e o Fluminense. Hoje a crise brasileira tem três camadas. A primeira vem de fora, a exaustão do modelo neoliberal com a dissecção do pensamento progressista global. A Inglaterra que fecha o Parlamento baseado numa lei de 1600. Os Estados Unidos, na mão do Trump. A segunda crise é nossa. A Constituição de 88 se exauriu, foi pródiga na promessa, mas foi ao estelionato, nunca se cumpriu. E os dois operadores dela se desmoralizaram na esteira de operá-la de forma disfuncional, o PSDB e o PT. O elo social-democrata foi revogado na prática e institucionalmente, com a emenda que congela os gastos públicos por 20 anos. Na minha opinião é uma emenda inconstitucional. Mas assim não será entendida porque o mercado a quer. A terceira é a maior crise socioeconômica da história do Brasil. Isso tudo explode nas costas do povo de uma forma muito pesada. Os traços comuns estão aí explicando outros países, Argentina, Chile... Essas três crises juntas têm um poder de combustão e pega o Brasil na mão de um amador, sectário, burro, mal assessorado. É humilde que eu examine esse poder de combustão à distância. Até para poder não ter medo de dizer o que eu preciso dizer. Estou querendo ser uma certa voz, estar prevenindo as coisas, dizendo como poderia ser diferente, antecipando questões para ganhar respeito. Para ser talvez um dos fatores com o qual o país possa contar. Não necessariamente o único, gostaria que tivesse outros. Minha conversa com Haddad, Rui Costa, Flávio Dino, Aldo Rebelo, Tasso Jereissati, Rodrigo Maia, ACM Neto era essa. Estou preocupado com o Brasil como nunca estive na minha longa vida pública.
Fonte: El País Global
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