Retrato da impotência: como os governantes dos países mais poderosos do planeta vislumbram os grandes problemas globais sem apresentar solução alguma para eles…
Por Cristina Fróes de Borja Reis, Tassia Rabelo de Pinheiro, Manoela Roland e Adhemar Mineiro
Com a atuação “mais nacionalista” de Trump nas negociações internacionais; o Brexit, a vitória de uma maioria eurocética nas eleições da Itália, e os movimentos contra a União Europeia; a enorme quantidade de migrantes e refugiados, as controvérsias políticas na Rússia e em diversos países emergentes, como Nicarágua, Venezuela, e Brasil – incluindo a intervenção militar no Rio de Janeiro; a escalada mundial do conservadorismo e da aderência aos discursos fascistas, o G20 está obviamente preocupado.
Por isso na Cúpula de Berlim ao final de maio sobre as Soluções Globais a intenção explícita era buscar uma boa narrativa para convencer as sociedades a primar pelo multilateralismo e também pelos valores clássicos das relações externas do pós-guerra, assim resumidos na declaração da União Europeia na ocasião dos 50 anos do Tratado de Roma: paz e liberdade, democracia e Estado de direito, respeito e responsabilidade compartilhada, prosperidade e seguridade, tolerância e participação, justiça e solidariedade. A cúpula foi organizada para assessorar o encontro do T20 na Argentina em 2018 (Think 20, uma rede de institutos de pesquisa e think tanks para assessorar políticas para o G20. [1])
Com a participação da Chanceler alemã Angela Merkel, ministros de Estado de alguns países do G7, laureados com prêmio Nobel de Economia, a reunião contou com debates intensos entre empresários, governantes, pesquisadores e acadêmicos, membros de ONGS, sindicatos e da sociedade civil em torno das 10 soluções globais elencadas pelo T20: [2]
O futuro do trabalho e da educação na era digital;
Ação climática e infraestrutura para o desenvolvimento;
Segurança alimentar e agricultura sustentável;
Coesão social, governança global e o futuro da política;
Cooperação com a África;
Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável;
Comércio, investimento e cooperação para taxas;
Equidade econômica de gênero;
Uma arquitetura financeira internacional para estabilidade econômica;
Migração.
Uma primeira critica se refere ao uso da expressão “narrativa”, pois da forma que foi colocada esteve descolada de um amplo diagnostico sobre os fatores estruturais politicos e econômicos que levariam às soluções globais. Ademais, enquanto somente um discurso para provocar adesão, o G20 simula uma falsa despretensão, como se qualquer um pudesse formular e impor uma nova narrativa no âmbito nacional e principalmente internacional – o que na realidade depende das relações de poder envolvidas. Portanto, da forma como apresentado nas discussões, a tal narrativa que querem construir mais parece uma artimanha retórica que justamente afasta os questionamentos mais estruturais e sistêmicos com relação às assimetrias de poder e riqueza.
Nesse sentido, chama a atenção o conceito central da nova narrativa, o recoupling. Segundo os analistas que o sustentam, entre 1945 e 2008 o crescimento econômico esteve de mãos dadas com o desenvolvimento social, processo que teria sido interrompido com a crise de 2008, de tal modo que seriam desejáveis medidas que visassem acoplá-los novamente (KELLY, C; SHEPARD, B, 2018). Em que pesem as desigualdades internas e externas do Sistema Mundial, nada mais equivocado, porque bastante distante da realidade de países do hemisfério Sul e até mesmo do Norte. Ou seja, com poucas exceções, aqueles processos não estiveram historicamente acoplados, muito menos seguiram padrões homogêneos nas diversas sociedades globais.
Em uma segunda crítica a ser colocada relembra-se que o G20 teve um histórico de seletividade. Primeiramente, formou-se o G7 nos anos setenta após a crise cambial de Bretton Woods, reunindo Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido, como um foro que incluía somente os ministros da Fazenda e presidentes dos bancos centrais dos países participantes (contando ainda com representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial). Assim, de início representava as economias mais poderosas do planeta, acrescidas da Rússia nos anos noventa, e que em 1999 passou a ser G20 por causa do crescente poder e relevância econômica dos países emergentes. A partir da crise financeira internacional de 2008, o G20 passou a ter uma agenda mais extensa, respondendo às críticas ao seu viés financeiro e também à própria necessidade de maior abrangência de sua influência. E também deixou de ser frequentado apenas por ministros da Fazenda e presidentes de Bancos Centrais, para ser um G20 de chefes de governo.
Assim hoje o G20 representa 85% do produto bruto, 80% dos investimentos, 75% do comércio e 66% da população mundiais (Fonte: https:www.g20.org). Ademais, dentro do G20 as relações econômicas, políticas e militares são muito assimétricas, concentradas nos países que integram o G7, mais China e Rússia. Ficam de fora cerca de 180 países que constituem as economias mais pobres do planeta. Sendo um clube, não deixa de ser contraditório que sua nova narrativa tenha se voltado a defender o multilateralismo com todas as forças.
Então, como terceira crítica, a contraposição do “nacionalismo” ao “multilateralismo” é um tanto simplificadora, porque esses países estão na verdade liderando as atuações regionais e os tratados preferenciais de investimentos e comércio – variando o discurso conforme lhes convêm. E ainda, são os líderes das instituições ditas multilaterais e dos tratados que organizam os regimes de propriedade, comércio de bens e serviços, preservação do meio-ambiente, segurança e paz internacional. Nesse sentido, é emblemático que a África surja nas soluções mais como uma região para cooperação, do que como realmente integrante dos fluxos de bens, serviços, capitais e conhecimento mundiais – o que evidencia sua condição periférica marginal inclusive do ponto de vista retorico para o G20.
Considerando as dez soluções, a quarta crítica é a de que embora avancem na tentativa de identificação e resolução de problemas, são paliativas; estão pouco preocupadas em alterar a estrutura das desigualdades globais. Tanto por causa do escopo, quanto do conteúdo. Por um lado, esses problemas têm a ver com o ponto de partida teórico assentado na ortodoxia nas ciências humanas, sobretudo na Economia. Isso ajuda a explicar porque, entre os temas, não figuram as origens e também consequências distributivas do modo de produção e comércio mundiais, associadas às diferenças de dotações iniciais dos fatores trabalho e capital, de propriedade intelectual sobre a tecnologia e conhecimento (sobretudo no que se refere ao que vem por aí com a manufatura avançada e a indústria 4.0), ao acesso privilegiado a fontes de matérias-primas, alimentos e energia, bem como a alta concentração dos mercados em torno de poucas empresas oligopolistas de origem no G7 – que juntamente com determinantes socioeconômicos internos explicam o desemprego estrutural, miséria, fome, desequilíbrios ambientais, guerras e outras mazelas do mundo.
Por outro lado, e como uma quinta crítica, diretamente associada às anteriores, as soluções não conseguem deixar de ser eurocêntricas e economicistas. Na lente do G7, o desenvolvimento é um conceito baseado em suas próprias experiências e interesses, gerando recomendações de políticas que reproduzem suas instituições e relações de classes, ainda que com um olhar mais atento para as suas falhas internas. Reconheceram-se, por exemplo, existência de desigualdades mundiais de renda e de gênero, desequilíbrios ambientais, péssimas condições de alimentação e nutrição nas populações mundiais, dominância das instituições financeiras e das mídias nas relações internacionais econômicas, políticas e sociais – mas, como já dito, não procuraram as causas desses problemas.
Assim, vale fazer alguns destaques das discussões sobre as soluções na cúpula de Berlim. Ainda que sub-representadas dentre os panelistas, houve intensa participação das mulheres nas discussões colocadas pelo público da conferência (ainda que, em geral, nos dez minutos finais de cada painel). Exigimos soluções para além das condições de acesso e remuneração nos mercados de trabalho, chegando em temáticas mais profundas como a cultura do assédio e violência. Essas e outras reivindicações eram necessárias pois, afinal, a questão de gênero não foi abordada de maneira estruturante nas soluções – apenas como um tema isolado e adjacente, sendo sintomático que o seu painel tenha sido um dos mais esvaziados.
Sobre o futuro do emprego e do trabalho, enfatizou-se a preocupação com os efeitos adversos da digitalização, embora poucas soluções concretas tenham sido apresentadas. Os números apresentados são alarmantes, talvez como estratégia discursiva, com ampla redução do emprego a partir da adoção das novas tecnologias da indústria 4.0. Falou-se na necessidade de se modernizar a educação e a capacitação das pessoas neste novo cenário, de se ampliar regulação nos mercados de trabalho e de bens e serviços, desenvolver segurança cibernética, etc. Entretanto, a perspectiva dos debates era nitidamente eurocêntrica, em que foram exaltados os benefícios da internacionalização das novas formas de energia, robotização e inteligência artificial surgidas no centro, mas pouco atentaram para as particularidades de economias periféricas.
Em relação as temáticas de comércio e finanças, a defesa do multilateralismo no plano do discurso destoou fortemente da prática, que também conflita com os pressupostos teóricos da análise utilizada para as soluções. Se por um lado a narrativa continuava privilegiando abertura econômica e financeira, mantendo o discurso de uma globalização virtuosa que melhora a vida das pessoas em todos os países devido ao acesso a uma maior quantidade e qualidade de produtos e serviços, por outro (e devido às conquistas democráticas das sociedades desses países que permite uma postura política mais crítica e militante dos grupos sociais), não abrem mão de protecionismos e barreiras de mercado como os subsídios agrícolas da União Europeia, garantia dos direitos de propriedade do TRIPS, cláusulas especiais de comercio, etc. Mais além, as politicas concretas para reduzir o poder das instituições financeiras nas relações internacionais foram bem tímidas, tal como o debate sobre tributação de lucros e fortunas.
Quanto ao desenvolvimento sustentável e segurança alimentar, o debate centrou-se na capacidade que inovações tecnológicas poderiam vir a ter para ampliar a capacidade de produção de alimentos e, por sua vez, a segurança alimentar, bem como em soluções individuais, iniciativas de empresas e ONGs que contribuiriam com ambas as pautas. Ratificaram a importância dos objetivos do milênio de desenvolvimento sustentável da ONU, mas soluções sistêmicas relacionadas a mudanças do padrão de consumo e produção vigente passaram ao largo. A reforma agrária, realizada décadas atrás nos países do centro do capitalismo e centrais para o seu desenvolvimento e modernização agrícola, mas ainda um sonho distante em nações como o Brasil, não teve lugar no debate.
As soluções tampouco entraram devidamente na temática da violência global, comercio de armas e trafico, furtando-se ao debate sobre assassinatos, estupros, guerras que massacram milhares de pessoas ano a ano. Entretanto, na discussão sobre migração, houve defesa nítida de acolhimento e socialização dos refugiados, com a proposição de políticas mais inclusivas, como a regra de integrar todas as crianças migrantes ao sistema educacional dos países em que elas chegam para viver. No que tange a coesão social, a importante constatação da necessidade de ações para diminuir a fragmentação social, mostrar cuidado e atenção para com as pessoas, resgatar a cooperação e a solidariedade, facilitar e elevar o diálogo entre os grupos sociais.
Vale ressaltar que o tom mais social da narrativa tem sido conferido pela Alemanha, anterior presidente do G20 em 2017, reproduzindo para o contexto internacional os seus conflitos internos relativos a ascensão da direita e do nacionalismo, em contraposição ao seu histórico Estado de Bem-Estar social, de base trabalhista e grande promovedora da União Europeia. Como lider da principal economia da Zona do Euro, Angela Merkel e seus ministros das Finanças, Relações Exteriores e também do Meio-ambiente assumiram que foram bastante beneficiados pela globalização, evidenciando a ambição germânica de manter e até mesmo fortalecer seu protagonismo regional e mundial, inclusive como uma das lideranças do novo paradigma tecnológico digital. Entretanto, não aderem totalmente ao discurso neoliberal sobre a atuação esatal, pois embora tenham defendido o livre-comércio, reafirmaram a necessidade de se fortalecer a democracia e cuidar dos direitos dos trabalhadores, garantindo que não haja diferenciais exagerados entre os contornos salariais das diferentes profissões, investir na provisão de bens e serviços publicos de qualidade, regular mercados – inclusive a seguridade das cadeias de valor, acolher refugiados e manter um padrao de vida digno para os cidadãos.
Claro que uma narrativa mais humanista e de bem-estar social proposta pelo T20 é preferível ao conservadorismo identitário que exacerba fragmentações sociais, porém não são convincentes para o pensamento crítico do Sul. A gente precisa mesmo planejar as nossas soluções para os problemas globais, construindo então narrativas dos países em desenvolvimento sobre como melhorar a vida das famílias, promover paz e a coesão social e lidar com os desafios que vêm com a digitalização, os novos acordos e regulação internacional – que constituem um cenário de maior concentração de poder das grandes empresas transnacionais e dos países do G7 nas relações centro/periferia do Sistema Mundial. Soluções Globais não serão construídas desarticuladas das estruturas de classe inter-estatais e a partir somente de visões extremamente particularistas de mundo, que na verdade não estão comprometidas em alterar as desigualdades de poder e riqueza internacionais.
Por fim, uma menção de lamento. Embora a presença da Argentina estivesse forte no evento porque hospeda o T20 e o G20 em 2018, o mesmo não se pode afirmar do Brasil e dos outros países da América Latina. Além de poucos representantes dentre os painelistas e público, mal estávamos identificados nas análises das soluções globais. Embora nosso país esteja entre as maiores populações e economias mundiais, atua mais fracamente no comercio e finanças, tendo também enfraquecido sua influência política nas relações internacionais durante o Governo Temer – revertendo a crescente participação que marcou os governos de Lula e Dilma (destacando-se a atuação de Celso Amorim). Esse é um dos aspectos do golpe de 2016, cujo caráter antidemocrático foi devidamente registrado por nós, da sociedade civil, na cúpula de Berlim.
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[1]Grupo dos 20, foro internacional para cooperação econômica, financeira e política composto pela União Europeia, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canada, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Franca, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, África do Sul e Turquia
[2]Para conhecer melhor o conteúdo, acesse: https://t20argentina.org/
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Cristina Fróes de Borja Reis é profa. Dra. de Economia e também do Bacharelado de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) , IPODI/ Marie Curie post-doctoral fellow na Technische Universität Berlin, Alemanha
Tassia Rabelo de Pinheiro é profa. Dra. de Ciência Política da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)
Manoela Roland é profa. Dra. de Direito Internacional, e coordenadora do Homa, Centro de Direitos Humanos e Empresas, da Universidade Federal de Juiz de Fora
Adhemar Mineiro é assessor da Secretaria de Relacoes Internacionais da Central Unica dos Trabalhadores (CUT) e da REBRIP
Fonte: https://outraspalavras.net/brasil/e-deles/
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