A Amazônia está em chamas - e aparentemente isso não é o bastante para comover os poderosos, alerta arqueólogo francês.
Em um momento em que o fogo desperta consciências pesadas ao atingir joias do patrimônio mundial, como o Museu Nacional do Rio de Janeiro ou a catedral de Paris, é bom lembrar que chamas não menos destruidoras assolam há décadas a maior floresta tropical do mundo. Trata-se, ali também, de uma tragédia que terá consequências incalculáveis para o nosso futuro. Os efeitos não se limitam à flora e fauna locais, mas também aos povos indígenas, à biodiversidade terrestre, à absorção de carbono e até mesmo às mudanças climáticas globais.
Ah! Mas por que se preocupar? A Amazônia tem cerca de 390 bilhões de troncos, cobrindo uma área superior a seis milhões de quilômetros quadrados. Não há motivo para inquietação, dizem os grandes exploradores desta abundante vegetação. Também se refugiam na ideia de que sua mega-biodiversidade, que concentra 15% das espécies vegetais e animais do mundo, é inesgotável, um discurso de perfeita má-fé. Evasivas que escondem interesses econômicos sórdidos de curto prazo. O homem do século XX foi o coveiro desta mega-biodiversidade, porque a miragem da exuberância amazônica acabou causando um grande mal: o dinamismo peculiar à floresta tropical foi o germe de sua degradação ou, pelo menos, deu a ilusão de uma vitalidade eterna.
Acostumados a reportagens episódicas sobre a tragédia do desmatamento na Amazônia, ficamos adormecidos com a impressão de estar diante de uma fatalidade lamentável, sem muita consequência, no outro extremo do planeta. Pelo contrário, muito mais do que uma simples efeméride jornalística, trata-se de milhões de sumaúmas, palmeiras, figueiras e outras árvores veneráveis queimadas todos os anos. Abrigando mais de 16 mil espécies de árvores, a nobre dama equatorial é, assim, despossuída da sua diversidade e do seu espaço. Especialistas estimam que metade das espécies de árvores da Amazônia estaria ameaçada de extinção.
O novo milênio havia, no entanto, trazido esperança com medidas preventivas firmes. O governo brasileiro criou leis, em 2004, para condenar os abusos. Porém, como nenhum abuso foi punido, os infratores rapidamente reativaram suas motosserras. Pior, o poderoso lobby da agroindústria do Brasil conseguiu aprovar um novo Código Florestal em 2012 para anistiar o desmatamento ilegal do passado. Essa renúncia da justiça abriu a caixa de Pandora dos vícios mais escandalosos. No ano de 2014, o desmatamento aumentou mais de 400%. Em todo o cinturão tropical, a destruição de árvores atingiu uma taxa recorde em 2018, com 12 milhões de hectares de floresta varridos no mapa.
Este ataque é acompanhado pela erradicação das populações ameríndias, pois, para tomar suas terras, não se hesita em contratar matadores para "limpar" o local. Um faroeste tropical nauseante, sob a tirania de pistoleiros sem alma. Um reino de chamas e sangue.
Derrapadas “climatocéticas”
O que dizer da política recente? O novo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, exibe claramente suas tendências à "democradura", associadas a derrapadas “climatocéticas” e um desejo inflexível de frutificar a Amazônia, considerada inútil. Como resultado, o desmatamento atingiu uma taxa recorde em 2018. A Amazônia é uma pedra no coturno de Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, tesouros ameríndios do patrimônio milenar viram cinzas com esse desmatamento bárbaro e descontrolado. Desde a conquista europeia, em 1492, a floresta tropical tem sido vista como um mero produto da natureza, propício à selvageria e degeneração das sociedades humanas. Desde então, nenhuma conquista humana local foi digna de qualquer reconhecimento. Nenhuma pirâmide ou basílica de belas pedras que justificassem tal honra. Os cientistas, no entanto, vêm demostrando o exato oposto. Os primeiros habitantes já manipularam a paisagem amazônica, seja a cobertura vegetal, a natureza dos sedimentos subterrâneos ou a modelagem do solo. Esta Amazônia é também uma construção humana, feita em estreita interação com a criatividade da natureza. Os ameríndios não estavam enganados ao conceber o mundo como uma continuidade entre humanos e não humanos, sem estabelecer barreira entre cultura e natureza.
Essa estreita interdependência foi levada em conta em julho de 2018, por ocasião da primeira inscrição de um sítio arqueológico pré-colombiano da Amazônia no Patrimônio Mundial da Humanidade. O biótopo e as pinturas rupestres de Chiribiquete, na Colômbia, foram classificados como um lugar misto de natureza e cultura, respeitando, assim, a concepção ameríndia do mundo. Ainda resta muito a ser feito para reparar a injustiça feita à Amazônia antiga. Enquanto isso, sítios e monumentos arqueológicos desaparecem sob as chamas.
Ao sobrevoar a floresta amazônica brasileira, há alguns anos, fiquei impressionado com a densidade de incêndios, em vários pontos. A terra havia substituído a Via Láctea para impor sua miríade de estrelas incendiárias que avançavam por sua superfície. Ao deixar o fogo derrubar séculos de floresta, mais do que um crime contra a natureza, contribuímos passivamente com o inexorável desaparecimento de um patrimônio cultural único e desconhecido. Nossa floresta-catedral está em chamas.
Enquanto as lágrimas do diabo devastam alguns dos lugares de culto e de conhecimento mais importantes do mundo, choros incandescentes devoram, sob indigna indiferença, uma das maravilhas do nosso planeta.
Stéphen Rostain é arqueólogo, diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique e especialista em Amazônia equatoriana.
*Publicado originalmente no Le Monde | Tradução de Clarisse Meireles
Fonte: BBC Brasil
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