Aos 96 anos, filósofo relembra sua participação ativa nos protestos, suas polêmicas e sua noção de que se tratava de “uma brecha sob a linha d’água da civilização burguesa — não a revolução”
Por Edgar Morin | Tradução: Anderson Lima da Silva e Martha Coletto Costa
Começarei pela pré-história. Depois de 1963, tendo tomado conhecimento do movimento estudantil de Berkeley (Califórnia) em 1964, eu me interessei pelo que designei à época como constituição de uma classe etária adolescente, que tinha sua autonomia própria entre o casulo da infância e a integração ao mundo adulto. Uma classe etária com seus uniformes, seus códigos, sua música, seus ritos, etc. Em 1968, antes de maio, eu estava impressionado com o surgimento de revoltas estudantis não apenas nos Estados Unidos, mas também no Egito, na Polônia, nos países ocidentais. Proferi uma conferência em Milão sobre o caráter internacional das revoltas estudantis: perguntava-me como era possível que, em sistemas políticos e sociais tão diferentes quanto a democracia popular, a ditadura egípcia ou a democracia dos países ocidentais, houvesse o mesmo tipo de movimento de protesto. O denominador comum é que essas revoltas se erguiam contra a autoridade em diferentes sistemas.
Em março de 1968, Henri Lefebvre, que era professor em Nanterre, me pede para substituí-lo durante sua viagem à China. Chego a Nanterre onde vejo carros de polícia partindo dali e um ruivozinho agitado que grita em todas as direções. Eu ainda não sabia que se tratava do amigo Dany Cohn-Bendit. Entro no meu papel e assumo o curso de Lefebvre. Naquele momento, um pequeno grupo de enragésdiz: “Nada de curso, nada de curso”. Proponho uma votação: “Se vocês quiserem curso, eu dou, se não quiserem, não dou”. Enorme maioria favorável ao curso; alguns agitados me apontam o dedo: “Morin milico”. Eles cortam a eletricidade. Eu não dou o curso.
Tomo conhecimento do Movimento do 22 de Março[1] e dos motivos que o suscitaram. Eu me dizia que aquilo realmente fervilhava e que alguma coisa estava prestes a acontecer.
Meu jovem amigo e colaborador, Bernard Paillard, acompanhava tudo de dentro e me avisa que uma parte do movimento de Nanterre havia migrado a Jussieu. No começo de maio, vou então a Jussieu, onde todas as salas estão ocupadas por grupos de estudantes. Vou ao encontro de Lefort e Castoriadis e digo a eles que venham ver. Estamos bem no começo do mês de maio. De repente, nosso trio está ligado ao acontecimento e, graças à presença constante de Bernard Paillard, acompanho todo o caso e, muitas vezes, eu mesmo vou à Sorbonne ocupada.
Publico então uma primeira série de artigos no Le Monde, com o título “A comuna estudantil”. Sou o único a poder explicar esse movimento: nem os acadêmicos, nem os jornalistas tinham a menor antena lá dentro. Esses artigos foram retomados em A Brecha.
Acompanho os acontecimentos e as peripécias e, no fim de maio, publico outra série de artigos: “Uma revolução sem rosto”. Lefort e Castoriadis, por sua vez, redigem um texto cada um. Havia diferenças com Lefort e Castoriadis, mas no fundo estávamos em sintonia. Diferentemente dos trotskistas, maoístas, etc., que pensavam que uma revolução começaria, para nós, tratava-se de uma brecha. Algo que seria uma brecha sob a linha d’água da civilização burguesa ocidental, e não a revolução. A única diferença consistia num ponto: Lefort desejava que dedicássemos o livro aos enragés [2]. Eu não queria, mas finalmente cedi. Quando ele pensava nos enragés, era numa parte dos jovens do Movimento do 22 de Março. Cada um de nós três disse coisas diferentes, mas éramos complementares e sabíamos que não era o início da revolução.
O que mostrei nos meus artigos foi que, diferentemente de outros países onde o movimento permaneceu estritamente universitário, na França ele transbordou sobre uma parte da juventude operária e secundarista. Sobretudo a duração e a intensidade do movimento acabaram por impulsionar os sindicatos, reticentes de início, mas que finalmente se lançaram nessa brecha, para arrancar do governo concessões fundamentais. Uma vez obtidas tais concessões, eles acalmaram as coisas.
Houve desfiles imponentes. Era um movimento que demonstrava finalmente o vazio daquela civilização que se queria triunfante, que acreditava caminhar para uma harmonia. O [filóRaymond Aron da época, aquele que se enganou, via na sociedade industrial a atenuação fundamental de todos os grandes problemas. Antes mesmo da crise econômica de 1973, Maio de 68 revelou uma crise espiritual profunda da juventude.
As aspirações profundas da adolescência em relação àquele mundo de adultos eram: mais autonomia, mais liberdade, mais comunidade. Os trotskistas e os maoístas disseram: “Nós podemos realizar essas aspirações”. Houve uma transferência de fé: no começo era a revolta, o comunismo libertário, depois o movimento foi capturado pelo trotskismo e pelo maoísmo com a promessa de realizar as aspirações juvenis por meio da revolução. Para mim, a base do movimento era supra e infrapolítica. É por isso que o Movimento do 22 de Março e Dany Cohn-Bendit permanecem símbolos muito fortes. Todavia, pode-se dizer que a política [clássica] se infiltrou através do maoísmo e do trotskismo e perverteu o movimento.
No ano universitário que se seguiu (1968-1969), consagrei meu seminário na EHESS às interpretações das interpretações do Maio de 68. Havia aqueles que diziam: “eu sempre o previ” – mesmo que nunca tivessem previsto nada. Havia diferentes interpretações que eu passava sob o crivo da reflexão. O que me interessava era refletir nas entrelinhas.
Para o décimo aniversário, fiz novamente um artigo para o Le Monde. Em 1978 o acontecimento ainda me parecia considerável. Por um lado, tudo havia mudado, mas, por outro, nada havia mudado. Toda uma série de tendências neolibertárias saiu desse acontecimento. O feminismo não estava presente em Maio de 68, mas saiu daí, assim como o movimento dos homossexuais. Houve mudanças de costumes, embora nada mudasse na sociedade.
Conduzi com Nicole Lapierre e algumas outras pessoas um questionário, publicado num livro que se chamava, estupidamente, La Femme Majeure – nouvelle féminité, nouveau féminisme [3]. O estudo era interessante. Antes de Maio, a imprensa dizia: “cozinhe bem para o seu marido, seja bela, etc.”. A partir de Maio, a problematização substitui a euforização. Essa imprensa começa a falar das dificuldades da vida: o envelhecimento, o marido que tem uma amante, os filhos que vão embora. Essa problematização começa a ganhar numerosos setores da sociedade.
Em outra vertente, na sequência de 1968, alguns tiveram uma tentação “terrorista”, mas, diferentemente da Alemanha e da Itália, na França ela foi abortada ou mínima, talvez sob a influência de tutores como Jean-Paul Sartre. Houve, em vez disso, imersões na fábrica como aquela de Lip e outras; houve embarques para uma outra vida, rural e comunitária, com criação de cabras. Isso continuou no Larzac e em outros lugares, mas a maioria retornou com o colapso das esperanças revolucionárias.
Na realidade, no correr dos anos 1970 há o desmoronamento de um marxismo sumário que tudo explicava pela luta de classes. Por que esse colapso? Porque, ao mesmo tempo, ocorreu a dessacralização do maoísmo com o episódio da Camarilha dos Quatro, a difusão da mensagem dos dissidentes na França – especialmente de Solzhenitsin –, o fato que o heroico Vietnãzinho tenha se tornado o conquistador do Camboja, que, por sua vez, realizou um autogenocídio com Pol Pot. E a mesma coisa com Cuba, que começa a ser vista não mais como um pequeno paraíso. A desilusão, a perda de uma esperança – quer seja chinesa, soviética ou cubana –, fez com que o marxismo fosse desencantado. A chave mestra, que tornava tudo compreensível, vira palavreado enfadonho.
No aniversário de 1988, o acontecimento começa a se atenuar. Entre as interpretações de Maio de 68 apareceu a de Régis Debray [4], cuja força se explicava principalmente pela sua prisão na Bolívia à época. Ele afirma que “Maio de 68 é mais o triunfo da sociedade de consumo do que sua contestação”. A parte verdadeira é que, realmente, um grande número de líderes das organizações revolucionárias, tendo perdido toda esperança, realizaram uma conversão total e foram levados à aceitação da sociedade tal como ela é. Muitos se acharam inseridos no mundo da intelligentsia. Muitos dos antigos trotskistas se aburguesaram.
Nada disso impediu que ocorressem ainda grandes greves – como em 1995 – ou revoltas estudantis, notadamente contra a Lei Devaquet [5]. Mas nenhuma teve a característica simbólica e mitológica de Maio de 68. Existe uma tradição de revoltas estudantis, mas nada jamais se comparou a 1968. Hoje, Maio de 68 sai do imaginário e se torna história, mas há o prosseguimento de uma polêmica surda entre aqueles que continuam a pensar que Maio de 68 não tem nada de revolucionário e permitiu a adaptação à nossa sociedade e, também, aqueles que pensam que Maio de 68 teve uma importância libertária nos costumes, dentre os últimos eu me incluo.
Em 2018, falar de Maio de 68 é evocar tempos muito distantes. O que permanece vivo, em primeiro lugar, são lembranças muito fortes. Algumas presenças naquela Sorbonne ocupada, transformada. Para mim, a primeira semana de Maio foi admirável. A tetanização do Estado fazia com que todo mundo se falasse na rua. Os consultórios de psicanalistas se esvaziavam bruscamente, todas as pessoas que sofriam de males estomacais se sentiam melhor. Assim que as coisas voltaram ao normal, tudo isso reapareceu.
Essa primeira semana foi um tanto parecida com a minha adolescência em junho de 1936, quando todos se falavam. Tenho lembranças maravilhosas dessa Sorbonne em festa, da realização de um acontecimento impossível. Lembranças dessa guerra civil sem morte – exceto em Flins [6] –, desse jogo sério no qual se representava a revolução, mas sem o risco de morte, apesar da violência dos confrontos. Logo, nada de amargura.
Maio de 68 encarnou profundas aspirações, nutridas, sobretudo, pela juventude estudantil. Aspirações que os jovens sentem e das quais se esquecem quando são domesticados à vida que os integra ao mundo. Aspirações de mais liberdade, autonomia, fraternidade, comunidade. Totalmente libertário, mas sempre com a ideia fraternal onipresente. Os jovens combinaram essa dupla aspiração antropológica que brotou em diferentes momentos da história humana. Creio que a importância histórica de Maio de 68 é grande por tê-la revelado. Maio de 68 é da ordem de uma renovação dessa aspiração humana que reaparece de tempos em tempos e que ainda reaparecerá sob outras formas.
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[1] Movimento estudantil francês de caráter antiautoritário e de inspiração libertária, fundado na noite de sexta-feira 22 de março de 1968 na faculdade de Nanterre. Reúne anarquistas, situacionistas, trotskistas e futuros maoístas-espontaneístas. Daniel Cohn-Bendit é a personalidade mais midiatizada do movimento.
[2] Em tradução literal “enraivados”, embora possa se possa-se dizer mais coloquialmente “exaltados”: no entanto, por conta de seu significado histórico bem específico e determinado, esta tradução optou por manter o termo original em francês – a exemplo do que ocorre com os sans-coulottes da Revolução Francesa.
[3] Em tradução livre “A Mulher Maior: nova feminidade, novo feminismo”. Não há tradução deste livro em português.
[4] Trata-se do livro Modeste Contribution aux Discours et Cérémonies Officielles du Dixième Anniversaire. Paris: La découverte, 1978. Em tradução livre “Modesta Contribuição aos Discursos e Cerimônias Oficiais do Décimo Aniversário”.
[5] Projeto de lei para reformar as universidades francesas, apresentado em 1986 por Alain Devaquet, durante o mandato presidencial de François Mitterrand. A reforma previa mudanças no regime de seleção dos alunos pelas universidades e o acirramento da concorrência entre as instituições de ensino superior. Tendo suscitado muitas críticas e provocado manifestações maciças, o projeto de reforma foi derrotado no mesmo ano graças à pressão popular.
Fonte: https://outraspalavras.net/destaques/edgar-morin-maio-de-1968-reaparecera/
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