Atuação subterrânea foi decisiva para a vitória de Bolsonaro, mas é inegável que a “nova direita” colocou a política “dentro de casa”, unindo “atualizados” e “obsoletos”. Sem projeto de futuro, esquerda assiste inerte.
Por Mateus H. F. Pereira e Valdei L. Araujo | Imagem: Winslow Homer, Direita e Esquerda (1909)
Palavras finais e provisórias
Em janeiro, entre uma atualização e outra, via “zap”, recebemos, de uma amiga, que conversou com um bolsonarista, em Macapá, a foto a seguir. A imagem talvez seja emblemática das atuais mudanças no mundo do trabalho e sintetiza o perfil de vários eleitores de Bolsonaro com os quais conversamos:
Foi ela, também, quem nos enviou uma foto feita em Manaus, onde a eleição de Bolsonaro era comemorada em dezenas de outdoors:
No fim do mês, em grupos bolsonaristas e evangélicos, circulava uma mensagem de “zap”, que defendia Flávio Bolsonaro do “escândalo Queiroz”. Como podemos observar, nesses grupos a corrente também é forte. E, ainda que o lema não seja explícito, a meta é “ninguém solta a mão de ninguém”.
De fato, é inegável que a governamentalidade algorítmica, que tratamos no livro e também aqui, foi e é fundamental para compreender a eleição de Bolsonaro. Mas podemos ver, seja nas reportagens aqui apresentadas, da revista da Gol, como nas conversas com as mulheres e homens de direita, que um sólido trabalho de base foi feito. A esse respeito, muito pouco se fala, por exemplo, da atuante presença de Bolsonaro em diversas feiras do agronegócio e em festas do peão boiadeiro, pelo Brasil, desde 2013, ou do trabalho de porta em porta realizado por diversos núcleos da direita que reforça a ideia de que a política deve ser decidida dentro de casa, reforçando e atualizando o sentido conservador da família – também ativo nos grupos de whatsapp. Outro grande desafio para a esquerda, que sempre entendeu a rua como o espaço privilegiado da política.
É sintomático que nas vozes da esquerda sobressaiam a necessidade de saírem das bolhas. A derrota é um fato. Mas, é interessante destacar que nossos entrevistados de direita não tem essa preocupação em “furar a bolha”. Talvez, por acharem que o campo comum de atualizados e obsoletos de direita conseguiu, no momento, virar o jogo. A questão agora parece ser consolidar a hegemonia e seus projetos de futuro. A esquerda, por sua vez, não tem um projeto de futuro claro. A maioria está perdida e, de certa forma, parecem esperar que essa nova liderança popular caia sozinha. Ou, que a própria direita faça o serviço quando for a hora? Ao mesmo tempo, é angustiante perceber que os obsoletos de esquerda possam sentar mais facilmente à mesa com os obsoletos de direita do que com os atualizados de esquerda.
Esse aspecto nos leva a pensar na justificativa do voto nulo de um obsoleto de esquerda. Ele é professor da educação básica, negro e tem 29 anos. Achava o Bolsonaro o fim do mundo: “Onde já se viu o cara achar que pobre não tem que ter curso superior. Que alegria é ter um primeiro filho na Universidade”. Ele foi o primeiro da família. Destaca que violência não leva a lugar nenhum. “Agora, não quis votar em Haddad, porque achei a Manuela feminista demais. Isso não ia dar certo. Tem que pensar no vice. Se fosse a Gleise, presidenta do PT, de vice, eu teria ido com o Haddad. Mas não gostei da Manuela. Nunca nem tinha ouvido falar nela”. A pesquisa mostrou que as direitas são mais capazes de articular passado-presente-futuro e estratificá-lo entre seus aderentes do que a esquerda no contexto atual. E sabemos que muitos destes estratos temporais são passados-futuros ou, simplesmente, a destruição, seja da previdência, das conquistas dos direitos, dos povos tradicionais, das mulheres, das minorias, dos negros, dos vulneráveis, de vidas, do meio ambiente, dentre outros. A esquerda parece presa no passado-passado ou, simplesmente, na agenda da conservação e não da mudança. Muitas vezes parece navegar de forma improvisada nas ondas da atualização.
Ainda que a luta contra os canudos de plástico seja legitima, ela é um índice importante para percebemos os desafios desse campo, em especial, na necessária articulação e diálogo entre atualizados e obsoletos. Essa luta parece um surf de marola frente às ondas do atualismo em que a direita vem surfando. O discurso teórico da intersecionalidade de raça, gênero e classe precisa ser vivido na experiência e com urgência. Talvez possa ajudar na construção de articulações temporais complexas que coloquem na mesma mesa, em negociação, obsoletos e atualizados de esquerda.
Portanto, a partir dessa pequena-multiplicidade de vozes que trazemos nesse texto, reforçamos a nossa sensação e impressão teórica inicial de que a direita e extrema-direita atual, representada, por exemplo, nos episódios do Brexit, da eleição de Trump e no Brasil, pelo fenômeno Bolsonaro, foi mais bem-sucedida em promover alianças estratégicas entre obsoletos e atualizados. Ao unir (1) a agenda do liberalismo econômico com (2) as promessas de progresso automatizado do atualismo e (3) a nostalgia fantasiosa de uma restauração, a “nova direita” conseguiu estratificar o tempo histórico.
*Agradecimentos: Veronica Pereira, Guiomar de Grammont, Mauro Franco, Luiz Prazeres, Luana Melo, Fernando Nicolazzi e Marta Maia.
Fonte: Outras Palavras
Comments