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Fascinante é produzir comida de verdade

George Monbiot está errado. Soluções para fome e devastação não virão de tecnologias como carne artificial e vegetais in vitro. Alternativa é Agroecologia, capaz de enfrentar corporações, gerar empregos e nos reconectar com a natureza.

Por Denis Monteiro | Imagem: Vincent Van Gogh, O semeador (1888)


“A aranha tece puxando o fio da teia A ciência da abelha Da aranha e a minha Muita gente desconhece” Na Asa do Vento – João do Vale e Luiz Vieira


Causou perplexidade, entre movimentos sociais e cientistas engajados com a construção de sistemas agroalimentares democráticos e saudáveis, ler no portal Outras Palavras e na CartaMaioro artigo “A fascinante comida pós-agro e seus incômodos1, de George Monbiot, publicado originalmente no The Guardian. A perplexidade talvez tenha sido ainda maior porque muitos de nós estamos relendo os textos e ouvindo entrevistas e palestras da Mestra Ana Primavesi, cientista brilhante, defensora da agroecologia, que nos deixou aos 99 anos no dia 5 de janeiro de 2020.

O artigo louva, como a grande saída para a degradação ambiental promovida pelas multinacionais do agronegócio e pelos latifúndios monocultores, a produção de “alimentos” em laboratório, que não precisaria de gente nos campos e nas cidades plantando e cuidando de animais, nem nas florestas praticando o extrativismo, nem nos rios e mares pescando. Felizmente, começam a surgir artigos críticos às apostas de Monbiot defendidas no artigo.


Infelizmente, existem intelectuais e políticos que, mesmo críticos à lógica do capital, sensíveis aos sofrimentos humanos e à degradação sem precedentes da natureza do nosso momento histórico, deixam-se fascinar pelas falsas soluções que só nos distanciam ainda mais da natureza, são extremamente caras e têm consequências ambientais e à saúde humana imprevisíveis e potencialmente catastróficas. Foi assim quando surgiram os transgênicos, tecnologia sobre a qual já há fartas evidências de seus impactos negativos, para a saúde das pessoas, dos animais e para toda a biodiversidade. Desenvolvida por corporações multinacionais, é uma tecnologia que concentra poder econômico, aumenta o uso de agrotóxicos e dificulta muito, quase inviabiliza em muitos lugares, o desenvolvimento de alternativas realmente sustentáveis. Lembramos bem de quadros de partidos de esquerda e até lideranças de movimentos sociais, argumentando que o problema não eram os transgênicos, mas sim quem iria controlar a tecnologia. Estavam equivocados, o problema não era somente das instituições que regulariam seu uso, mas essencialmente da natureza da tecnologia. O desenvolvimento de qualquer tecnologia é questão de economia política, é falsa a ideia de que a política só entra na hora de decidir quem controla como ela será usada e a quem vai beneficiar, além de ser uma grande ingenuidade acreditar que não é difícil controlar a voracidade das megacorporações quando querem impor as suas tecnologias patenteadas.


Para nos afastarmos do risco de cometer equívocos estratégicos como este de Monbiot, devemos refutar a ideia tão propagada pelo capitalismo há muito tempo, de que sempre poderemos dominar, subjugar a natureza, e que sempre haverá soluções tecnológicas inócuas – sempre caras e mirabolantes – para resolver os graves problemas ambientais que são gerados pelas … tecnologias a serviço da maximização dos lucros de um punhado de multinacionais.


Um grande desafio político é que mais gente se convença – e se mobilize para reivindicar aos governos e botar a mão na massa – de que as alternativas mais promissoras para reverter a degradação ambiental e enfrentar o aumento da pobreza e da violência, que vivemos neste momento de crise do capitalismo neoliberal, é nos aproximarmos cada vez mais da natureza, valorizar a biodiversidade e dar voz e apoio aos povos que por séculos ou milênios produziram comida respeitando os seus ciclos, é democratizar as riquezas praticando a economia solidária, é apoiar o desenvolvimento e a divulgação de tecnologias de base agroecológica, sem patentes, que possam ser ajustadas às condições ecológicas e às preferências culturais de cada lugar.


A agroecologia aponta caminhos promissores para produzirmos cada vez mais comida de verdade, no campo e na cidade, e o reconhecimento do seu potencial avançou muito nas últimas décadas, em todos os cantos do mundo. Isso Monbiot mostra desconhecer completamente, sua argumentação é de que não há alternativas que não a que ele defende, o que é falso como mostram estudos e documentos de grande relevância política que apontam a agroecologia como alternativa.


Em abril de 2018, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), à época presidida pelo brasileiro José Graziano da Silva, promoveu, em Roma, na Itália, o II Simpósio Internacional sobre Agroecologia. O evento foi a culminância de um trabalho sério de vários anos da FAO sobre agroecologia.


Um pouco antes, neste início do século XXI, outros três documentos chamaram muita atenção por destacar a necessidade de mudanças profundas nos sistemas agroalimentares orientados pelo paradigma da modernização agrícola da Revolução Verde em direção à promoção das experiências e práticas da agroecologia.


Um deles é o conhecido Informe do IAASTD (sigla em inglês para Avaliação internacional sobre conhecimento, ciência e tecnologia agrícola para o desenvolvimento), lançado em 2008 com o título Agricultura em uma encruzilhada, e que envolveu 400 cientistas de todo o mundo. O informe, encomendado pelo Banco Mundial e que envolveu diversas agências das Nações Unidas, dentre as quais a FAO, a Unesco, a Organização Mundial de Saúde e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), foi aprovado por 58 países em uma conferência realizada em abril de 2008 em Johanesburgo, África do Sul.


Em março de 2011, foi apresentado ao Comitê de Direitos Humanos da Assembleia das Nações Unidas o relatório A agroecologia e o direito humano à alimentação, de autoria de Olivier de Schutter, à época relator especial da ONU sobre direito humano à alimentação.


O pesquisador Jules Pretty, da Universidade de Essex, no Reino Unido avaliou 286 experiências agroecológicas em 57 países do sul que cobriam 37 milhões de hectares, e que concluiu que as técnicas de agricultura sustentável utilizadas permitiram um aumento médio de rendimento de 79%.


Outro documento importante é o Informe A agricultura biológica e a segurança alimentar na África, publicado em 2008 pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) e pelo PNUMA. Neste estudo, Jules Pretty e sua colega Rachel Hine avaliaram quinze programas agroecológicos e chegaram à conclusão que “93% dos casos estudados mostram benefícios para a fertilidade dos solos e para a retenção de água (mais água potável na estação seca), aumento da agrobiodiversidade e do sequestro de carbono. Todas as experiências centradas na produção de alimentos mostram aumento da produção por hectare.” Um dos coordenadores do informe, o alemão Ulrich Hoffmann, afirma terem constatado “que as práticas biológicas permitem um aumento de rendimentos de 120 a 130 % em um prazo de 3 a 10 anos e que o aumento é particularmente elevado quando as técnicas biológicas se aplicam a sistemas que utilizam poucos insumos químicos.”


Todo este reconhecimento internacional crescente do potencial da agroecologia, com sólida base científica, teve como resultado o desenho de políticas públicas de apoio em muitos países que, embora incipientes e sofrendo descontinuidades, mostram que é possível avançar, e no curto prazo. Os consumidores se organizam e preferem alimentos agroecológicos aos ultraprocessados quando há campanhas e políticas de promoção da alimentação saudável. Agricultores e agricultoras respondem muito rapidamente aos incentivos das políticas públicas, aumentando a diversificando a produção, recuperando nascentes, não medindo esforços para fornecer alimentos de qualidade para programas de alimentação escolar, organizando feiras em todos os rincões. Pesquisadores de instituições públicas se dedicam com paixão ao desenvolvimento de tecnologias de base agroecológica quando há programas e políticas de incentivo.


Em outubro de 2018, na sede da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), instituída no Brasil em 2012, recebeu o prêmio prata do Future Policy Award 2018, que reconheceu as melhores políticas em agroecologia e sistemas alimentares sustentáveis de todo o mundo. O prêmio ouro foi para o governo do estado indiano de Sikkim, onde todos os 65.000 agricultores praticam agricultura orgânica, é um “estado 100% orgânico”. Também foram premiadas experiências de agricultura urbana em Quito, no Equador, as políticas de incentivo à produção orgânica na Dinamarca e iniciativas de compra direta dos agricultores por escolas de diversas cidades dos Estados Unidos. Sabemos que, felizmente, estas são apenas pequenas amostras de tantas iniciativas ao redor do mundo.


Os Programas 1 Milhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), de convivência com o Semiárido, financiados desde o início dos anos 2000 com recursos do orçamento público federal e executados em parceria com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) – também foram premiados pelo Future Policy Award na sua edição de 2017, que reconheceu políticas de enfrentamento à desertificação.


Monbiot mostra desconhecer estas e muitas outras experiências orientadas pelos princípios da agroecologia em curso em todos os lugares do mundo2 e as iniciativas de políticas e programas públicos de apoio (“não enxergo em nenhum lugar do mundo políticas agrícolas sensatas se desenvolvendo”). Há um esforço enorme das mídias corporativas para que elas não sejam visibilizadas, mas formadores de opinião tão bem informados como ele não deveriam desconhecê-las. É também um alerta para que as mídias contra-hegemônicas dediquem mais espaço para a agroecologia, que vem crescendo com uma força extraordinária em todo o mundo, com ou sem apoio de políticas públicas, e que vai crescer muito mais quanto mais visibilidade alcançar.


Um dos aspectos mais difíceis de compreender no texto de Monbiot é assumir como normal, uma questão de fácil solução, que essas tecnologias que defende vão desempregar muita gente que hoje está nos campos, nas florestas e nas cidades produzindo alimentos. Vejo isso como um futuro distópico, os camponeses são a categoria profissional mais numerosa do planeta, estão em todos os continentes e produzem a maior parte dos alimentos consumidos no mundo, embora a pobreza rural ainda seja um dos mais graves problemas sociais em toda parte. Esta visão distópica me fez lembrar de um excelente texto de Eric Holt-Gimenez – Os pecados da agroecologia segundo o capital. Um dos pecados é justamente que a agroecologia depende do trabalho de bilhões de camponeses e camponesas, povos e comunidades tradicionais, em todo o mundo. Você quer apostar na distopia de campos sem gente e comer alimentos de laboratório, ou prefere acalentar, tendo como inspiração as ideias de mestras como Ana Primavesi e sabedorias ancestrais, a utopia de tanta, muita, diferente gente, em todos os lugares, trabalhando com dignidade, cuidando da natureza e produzindo comida de verdade, com fartura e diversidade, para alimentar o campo e a cidade? Prefiro este caminho da agroecologia, este sim, pela sua rebeldia frente ao capital e por ser radicalmente democrático, fascinante.


1 No portal CartaMaior, o artigo está tem o título “Alimentos cultivados em laboratório em breve destruirão a agricultura – e salvarão o planeta”.


2 No portal da Articulação Nacional de Agroecologia – ANA é possível conhecer muitas experiências em curso no Brasil. A ANA e o Canal Saúde, da Fiocruz, produziram em parceria documentários em vídeo sobre experiências em agroecologia – a série Curta Agroecologia. A AS-PTA edita, desde 2004, a revista Agriculturas, sobre experiências em agroecologia do Brasil e de outros países. Para um panorama rico de experiências em agroecologia ao redor do mundo e destaque para estudos e documentos citados neste texto, sugerimos a leitura do livro Las cosechas del futuro (2012), da jornalista francesa Marie Monique Robin, que deu origem a um documentário com o mesmo nome.


Fonte: Outras Palavras

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