Por Manuel Cabiese Donoso
“Os mais vis exemplares da natureza humana se encontram, em todas as épocas, entre os demagogos” (Thomas Macaulay)
O medo do povo está fazendo a classe dominante entrar em pânico, com medo de um povo cansado dos abusos, da segregação, das humilhações e da desigualdade. A indignação acumulada por anos saiu finalmente às ruas, e não dá sinais de que vai regressar à resignação que era seu refúgio. Se trata de uma insurreição popular espontânea, pacífica, sem direção nem programa, mas que conseguiu incorporar diferentes setores sociais. Nunca os chilenos estiveram tão unidos quanto nestes dias de repúdio ao sistema que impediu uma maior democracia e justiça social, como as que o país havia alcançado até 1973. É um mal-estar profundo que não tem somente motivações econômicas. Embora o estopim tenha sido o aumento das tarifas do metrô e a os estudantes pulando as catracas das estações, a rebeldia do povo, desencadeada desde aquela sexta-feira 18 de outubro, se espalhou pelo país e diversificou suas petições com uma velocidade espantosa.
A tarifa do metrô já é coisa do passado nesta histórica rebelião social. O governo já revogou o aumento, através de uma nova lei, já aprovada pelo Congresso, em tempo recorde (e votada em pleno domingo, coisa inédita). Entretanto, o caldeirão social continuava fervendo, porque no fim de semana a demanda do povo já era muito mais ampla e variada. Os problemas do sistema neoliberal afetam não só os trabalhadores e aposentados, mas a sociedade como um todo. Na terça-feira (22/10), o presidente chileno, Sebastián Piñera, se reuniu com presidentes de partidos governistas e opositores, para reunir sugestões em busca de uma solução para a crise. Nessa mesma noite, anunciou em rede nacional uma “agenda social”, que mais parece essas promessas de campanha eleitoral, inspirada pelo marketing político e com ofertas para todos os setores. Muitas deverão enfrentar trâmites parlamentares complexos, mesas de trabalho, leis os bombeiros legislativos asseguram que votarão com máxima urgência. Para demostrar seu renovado espírito republicano, os deputados ofereceram diminuir suas verbas parlamentares, diminuir o número de representantes e limitar sua reeleição.
A “classe política” encontrou digno émulo de sua demagogia no grande empresariado, cujos privilégios acumulados empurraram o povo ao desespero. Andrónico Luksic, o mais rico entre os empresários mais ricos do país, (com uma fortuna que a revista Forbes estima estar entre os 15 bilhões de dólares), anunciou que desde o próximo dia 1º de janeiro, nenhum trabalhador de suas empresas ganhará menos de 500 mil pesos mensais (cerca de 700 dólares). O salário mínimo no Chile é de 301 mil pesos (cerca de 400 dólares), e a jornada de trabalho é de 45 horas semanais legais, sem contar os atalhos que permitem aos empregadores que estas sejam ainda maiores. A prestigiada Fundação Sol sustenta que 70% da população ganha menos 550 mil pesos. Isso explica o enorme endividamento das famílias chilenas. Cerca de70% da renda de cada lar do país está comprometida com dívidas. O consumismo – principal combustível da economia de mercado e inibidor da consciência dos trabalhadores – transformou os chilenos em escravos dos cartões de crédito.
O número um dos ricos também convidou os outros multimilionários como ele a que imitem o seu generoso altruísmo. No entanto, nenhum glutão deste festim capitalista que já dura 36 anos quis seguir seu exemplo. Nem Sebastián Piñera (cuja fortuna se estima em 2,8 bilhões de dólares) acatou o apelo de Luksic.
Em meio a este verdadeiro festival de demagogia, algumas vozes se levantam na tentativa de situar a elite em um quadro de maior realismo. É o que afirma o bispo de Concepción, Fernando Chomalí: “no Chile, aproximadamente 650 mil jovens entre 18 e 29 anos, não estudam nem trabalham, existem altas taxas de doenças mentais e suicídios entre eles, milhares de idosos vivem sozinhos, abandonados pelas famílias, sem ninguém que se preocupe por eles, e a taxa de suicídios nessa idade é cada vez maior… A violência e a solidão no Chile são uma epidemia”.
A desumana realidade do Chile exige uma profunda mudança cultural, social e econômico, que só pode ser alcançada a partir de novas bases de convivência, que eliminem a segregação social. Necessitamos uma democracia participativa e solidária na qual a remoção dos maus funcionários seja uma faculdade do povo. A superação do conflito social não consiste em migalhas, que deixam a salvo a estrutura institucional que produziu a crise. O que o Chile precisa é de uma nova Constituição Política. O caminho é um plebiscito que aprove a convocação de uma Assembleia Constituinte, e logo, uma eleição dos representantes que elaborarão o texto constitucional, que finalmente seria submetido a veredicto popular.
O Chile não pode se encaminhar a um cenário de justiça social enquanto permanecer afogado pelas regras de uma Constituição que impede qualquer possibilidade de soberania popular. Chegou a hora de uma mudança de verdade. É isso que o povo está pedindo nas ruas.
*Publicado originalmente no blog Punto Final | Tradução de Victor Farinelli
Fonte: Carta Maior
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