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Haiti – Ferida aberta da história do colonialismo europeu na América Latina

Artigo escrito por Thomas A. Mitschein[1]

Fonte: CNN Newsource/WPTV

Ocupando a parte ocidental de São Domingos e abrigando atualmente em torno de 11 milhões de habitantes, a República de Haiti se destaca na América Latina como país socialmente mais vulnerável, uma condição que está diretamente ligada ao seu passado colonial. Neste contexto, é preciso lembrar que, após sua descoberta em 1493 pelo genovês Cristovão Colombo que estava à procura do acesso marítimo às riquezas naturais da Índia, esta ilha caribenha (ver Mapa) acabou se tornando uma espécie de laboratório para os conquistadores ibéricos.


Mapa - Mar do Caribe

Fonte: Imagem Reprodução/Google Earth

Na medida em que ficou claro que a população ameríndia não se enquadrava nos moldes do trabalho compulsório, impostos pelos civilizadores de fé cristã, a continuidade de sua empreitada colonialista dependia fatalmente da institucionalização da escravidão dos povos do continente africano, praticada no contexto mediterrâneo no final da Idade Média e transferida com rapidez e afinco pelos representantes do capital mercantil europeu para o Novo Mundo. Já em 1505 chegou o primeiro carregamento de negros ladinos (que falavam espanhol) em São Domingos.


E, em 1518, diante da crescente demanda por escravos, a Coroa espanhola sancionou por decreto o transporte da mão de obra africana para as terras da Nova Espanha, fazendo com que, durante três séculos e meio, cerca de 12,5 milhões de pessoas tenham sido raptadas da África subsaariana, dos quais 95% foram entregues aos mercados da mão obra escrava na América do Sul e no Caribe (Eltis, Richardson 2010). No que concerne ao arquipélago caribenho, este, no decorrer do século XVII, tinha se tornado base territorial da conquista do mundo pelo açúcar (Braudel 1995), encontrando na parte ocupada pelos franceses da ilha de São Domingos o palco destacado de um levante de escravos de origem africana com impactos ate então desconhecidos por parte dos protagonistas do sistema político-econômico internacional daquela época.


Fazemos questão de abordar a dimensão dramática desta luta libertadora, iniciada dois anos após a derrubada da Bastilha em Paris, através de uma rápida referência ao seu líder principal, Toussaint L'Ouverture. Escravo ate 45 anos de idade, se revela como brilhante estrategista político, aproveitando com astucia a violenta disputa que os estados europeus tramavam pela dominação desta parte do seu espaço ultramarino. Num primeiro momento, se torna aliado da aristocracia espanhola que, diante da revolta dos escravos, vislumbrou uma chance para reintegrar a parte francesa da Ilha em seu império colonial.


Mas em abril de 1793, quando os dois recém chegados delegados do Diretório Governamental da França acabam decretando em São Domingos o fim da escravidão, procurando atrair, desta maneira, os sublevados negros para a luta contra a invasão dos ingleses que estavam decididos para se apropriar da então mais próspera colônia da França, Toussaint não se alia aos franceses. Duvida da sinceridade de sua proposta, vislumbrando que os governos europeus envolvidos "não se deram ao trabalho de esconder que, em última instancia, o negro só poderia esperar o chicote do feitor ou a baioneta" (James 2000, p. 136).


Contudo, depois da ratificação do decreto da abolição pela convenção francesa em janeiro de 1794, ele se junta às forças republicanas, se tornando, em pouco tempo, o líder inconteste dos "jacobinos negros", obtendo, em 1777, o grau de general de divisão e expulsando, em 1778, após uma guerra de cinco anos, o exercito britânico. Acaba rejeitando a insinuação inglesa de transformar São Domingos num território politicamente autônomo sob a proteção do Union Jack e, em 1800, já reconhecido pela França como governador geral, resolve regularizar as atividades no setor primário da Ilha nos seguintes termos: 50% dos frutos da produção entrarão integralmente no tesouro público, a metade restante deve ser dividida por partes iguais entre a mão de obra assalariada e os proprietários das unidades produtivas.


Estabelece, desta maneira, um regime de produção que se choca frontalmente com o interesse dos local landlords e do governo francês pela retomada do fluxo dos fabulosos lucros da produção açucareira para os seus cofres próprios. Determinado para acabar de uma vez para todas com tais mudanças cada vez mais incontroláveis, Bonaparte, no final de 1801, resolve mandar uma grande armada ao Caribe para reintroduzir o cativeiro em São Domingos. Enganado pelos dirigentes da força militar francesa, o “general de ébano” acaba sendo levado à França, onde, em virtude de “maus tratos, frio e fome” (ibid. 329), morre poucos meses antes da estrondosa derrota que Jean Jacques Dessalines e o seu exercito de libertação impõem aos invasores da Grande Nação, criando, no primeiro de janeiro de 1804, com a República do Haiti o primeiro estado independente da América Latina. Contudo, por mais que naquele momento no subcontinente sulamericano inteiro tenha sido levantada a bandeira da luta contra o colonialismo ibérico, a recém nascida República Haitiana estava, no dizer de Eduardo Galeano (2010), "condenada à solidão."


"Nem sequer Simon Bolívar - escreve o finado escritor uruguaio (ibid., destaque T.M.) - que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país. Bolívar pode reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já havia o derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete navios, muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois de sua vitória, quando já governava a Grande Colómbia, deu as costas ao país que o salvara. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti, mas convidou a Inglaterra. Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. Por essa altura, o Haiti já estava na mão de ditaduras militares carniceiros, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da dignidade."


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Braudel, F.: As Estruturas do Cotidiano, Elsevier Editora, Rio de Janeiro 2000

Eltis, D.; Richardson, D.: Atlas of the Transatlantic Slave Trade, Yale University Press, New Haven, London 2010

Galeano, E.: Os pecados do Haiti, in: Le Monde diplomatique, março 2010, Ano 3, Número 32

James, C., L., R.: Os jacobinos negros. Toussaint L'Ouverture e a Revolução de São Domingos, BOITEMPO EDITORIAL, São Paulo 2000


[1] Thomas A. Mitschein é sociólogo, Dr. Phil pela Universidade de Muenster - Alemanha, desde 1992 pesquisador e docente em entidades técnico-científicas de países amazônicos, atualmente coordena junto com a Profª. Esp. Maria Lúcia Ohana o Programa Interdisciplinar Trópico em Movimento - Fomentando a Criação de uma moderna Civilização da Biomassa na Amazônia e é Professor do Núcleo de Meio Ambiente.



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