Por Ricardo Machado
A forma da democracia representativa liberal desvelou seu esgotamento com Junho de 2013. De quebra, a política de conciliação com as elites e de pactos por cima veio à dança como uma bailarina descompassada. “O grito que mobilizava, o dos 20 centavos, tinha a ver com um desejo de retomar o controle sobre as nossas próprias vidas, uma rejeição ao lugar de ‘consumidores’ da política”, propõe Alana Moraes, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Eu gosto de pensar Junho, ao menos em sua pulsão inicial, como um desejo de destruição da ordem tal como ela estava apresentada, um esforço de desordenamento, portanto. Não tinha a ver com uma rejeição ao PT, mas talvez com um último chamado: ‘de que lado vocês estão?’”, complementa.
Como bem lembra Alana, ao citar o historiador E. P. Thompson, “quem faz revolução é a classe, não o ‘conceito’ de classe”. A entrevistada recorda que “em junho a ‘classe’ aparece em toda sua diferença: precários, estudantes, favelados, jovens, mulheres”. Impulsionadas também pelas disputas narrativas em torno da Guerra Fria, as categorias políticas do século 20 produziram um acirramento das polarizações entre mercado e Estado, de modo que haveria a necessidade de um Estado forte em contraposição ao chamado “Estado mínimo”. A esquerda, contudo, produziu, por meio da obsessão pela institucionalidade, uma espécie de estado máximo alheia aos gritos das ruas.
“Nesse tempo fomos também assistindo ao crescimento do ‘estado máximo’: a explosão do encarceramento, a arbitrariedade da justiça, a atuação genocida da Polícia Militar, a militarização das favelas e periferias. É óbvio que temos que continuar lutando por políticas distributivas, pela ampliação dos direitos sociais, não podemos deixar tudo para eles”, convoca Alana. “Não acho que temos que abandonar a democracia representativa, mas ela só poderá se reoxigenar coexistindo com outras possibilidades democráticas: mais diretas, mais autônomas e que levem em conta uma politização permanente da vida. Uma política da vida e na vida contra a necropolítica do Estado neoliberal”, afirma.
Alana Moraes, antropóloga, doutoranda no Museu Nacional-UFRJ. É coorganizadora dos livros Junho: potência das ruas e das redes (F. Ebert, 2014) e Cartografias da emergência: novas lutas no Brasil (F. Ebert, 2015). Pesquisa novas formas de politização no Brasil a partir da experiência das ocupações urbanas do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST na periferia de São Paulo. Estuda os cruzamentos entre política, gênero e classe e epistemologia feminista. É parte do cursinho popular Dandara na ocupação povo sem medo do Capão Redondo e da rede de pesquisa-luta Urucum.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Passados cinco anos de Junho de 2013, que respostas conseguimos construir para o movimento?
Alana Moraes – Nada ficou no lugar depois de Junho. Se pensarmos a história como uma resultante de forças que se movem em diversos sentidos (não necessariamente do jeito que desejamos, como diria Marx [1]), não há dúvida de que a resultante de junho produziu deslocamentos. Para falar de um jeito simples e direto, Junho foi a primeira onda de protestos no Brasil a expressar o esgotamento completo da democracia representativa liberal. O grito que mobilizava, o dos 20 centavos, tinha a ver com um desejo de retomar o controle sobre as nossas próprias vidas, uma rejeição ao lugar de "consumidores" da política. Por que não podemos decidir se queremos Copa e Olimpíadas? Por que não podemos decidir sobre nossa política de mobilidade? Por que a representação se transformou nesse jogo de cartas marcadas que despreza a soberania popular? Temos hoje toda uma geração que se formou politicamente pelas movimentações de Junho de 2013.
Eu não tenho dúvidas de que uma das principais estratégias do neoliberalismo é nos convencer de que as decisões políticas são parte de um universo técnico, de especialistas, de interesses que não conseguimos compreender. Nisso o Movimento Passe Livre - MPL teve um papel fundamental: eles e elas mostraram nas ruas que a gestão dos transportes não tinha a ver com planilhas; tinha a ver com disputa, com relações de força, ou seja, com política. Uma nova geração foi às ruas para retomar o controle dos fatos e ao fazer isso revelou também que o caminho da história é tortuoso, cheio de encruzilhadas: um estado autoritário e violento entrou em cena para nos lembrar que as forças da ordem são ainda freios decisivos. No entanto, eu gosto de pensar Junho, ao menos em sua pulsão inicial, como um desejo de destruição da ordem tal como ela estava apresentada, um esforço de desordenamento, portanto. Não tinha a ver com uma rejeição ao PT, mas talvez com um último chamado: "de que lado vocês estão?"
IHU On-Line – Em que medida o discurso que clama por uma “unidade da esquerda” trai o movimento autonomista de Junho de 2013 e em que medida ele faz justiça às suas demandas?
Alana Moraes – A esquerda 'organizada' foi um dos campos mais deslocados por Junho. Por um lado, parte do PT tomou Junho como uma ofensa, uma "desobediência", uma petulância juvenil. Havia até um desejo de "dialogar" com a revolta, mas os espaços que o PT apresentou para isso eram espaços já viciados, uma cultura participacionista que não consegue ser verdadeiramente afetada por proposições mais radicais. O PT assumiu um lugar de "gestão do pacto democrático", mas o outro lado do "pacto" logo mostrou que nunca teve compromisso com a "estabilidade democrática". É que democracia não se faz com estabilidade, mas o contrário. A radicalização da democracia nos exige estar do lado da indignação, da mobilização dos mais fracos. A gente precisa entender que a "luta de classes" não se dá só na dimensão do trabalho pelo antagonismo ao capital, mas também se dá contra o Estado, contra as forças conservadoras que os constitui.
Por outro lado, parte da esquerda organizada ainda nutria um desejo por dirigir as mobilizações, por fazer política para as pessoas e não com as pessoas. Esse tipo de disposição também foi deslocado. Precisamos pensar a política a partir desses momentos críticos de revolta descentralizada, eles nos dão muitas pistas. Não vejo como uma nova esquerda pode se constituir sem estar aberta para essas conexões com a indignação que muitas vezes aparece sem forma pronta, sem receita definida. É como dizia o historiador E. P. Thompson [2]: quem faz revolução é a classe, não o "conceito" de classe. E em junho a "classe" aparece em toda sua diferença: precários, estudantes, favelados, jovens, mulheres.
Sempre que escuto esse apelo de "unidade" da esquerda penso que pode ser mais uma armadilha para os homens dirigentes continuarem dirigindo as lutas. Eu gosto de pensar em alianças. As alianças nos exigem disposições práticas: como podemos fazer uma aliança para barrar o patriarcado, o racismo, o etnocídio presentes na nossa sociedade? Os homens estão dispostos a ceder lugar para candidaturas feministas, por exemplo? A esquerda está disposta a encarar a pauta do genocídio da juventude negra e da violência policial como as pautas mais urgentes dos nossos tempos? As alianças para a ação são muito mais eficazes do que unidades programáticas e eleitorais.
IHU On-Line – Que processos políticos e subjetivos ocorreram nesses últimos anos que transformaram a “biodiversidade” das pautas, sobretudo dos movimentos autonomistas, em uma espécie de deserto da imaginação política?
Alana Moraes – Depois da abertura produzida por Junho, veio também a reorganização tática das forças conservadoras. Eles tiveram mais disposição e inteligência para canalizar o campo de forças gerado por Junho em ações mais concretas como foi o anti-petismo, o golpe e todas as medidas conservadoras operadas depois disso. Nós ficamos na defensiva, um pouco congelados pela polarização PT versus antipetismo, e não sei se, de fato, havia outro caminho a não ser lutar contra o golpe – nos deixamos encurralar, passamos a reagir em vez de pautar mais ativamente a disposição antissistêmica.
Mas o campo das lutas é também cheio de tangentes. Em 2015 veio a onda de ocupações nas escolas em São Paulo – que, em grande parte, beneficiou-se muito do passe livre estudantil conquistado em 2013, era bem mais fácil circular pela cidade, costurar a articulação entre escolas. Em grande parte, também conseguimos colocar em outro patamar a denúncia contra a violência policial. Os presos da Copa em 2014, a campanha pela liberdade de Rafael Braga [3], tudo isso foi ajudando a compor uma geração política que tem muito mais certeza da luta contra a violência de Estado como uma luta inegociável. O movimento negro ganhou muita força e conseguiu também deslocar a pauta antirracista para lugares muito mais visíveis no debate político. O papel da Rede Globo e dos grandes canais de comunicação também foi desestabilizado por novas formas de documentação e transmissão das lutas, dos relatos, pela proliferação do midiativismo. Não podemos esquecer o pedido de "desculpas" da Globo, em pleno Jornal Nacional, pela participação no golpe de 1964. O feminismo também conquistou outros patamares. Acho que novas imaginações estão sendo compostas, a grande mobilização dos caminhoneiros é um outro bom exemplo, mas nesse momento elas estão sendo produzidas em outros lugares, não mais nos espaços da esquerda mais tradicional.
IHU On-Line – Se, por um lado, Junho de 2013 foi o primeiro tremor do edifício da nova república, pós-1988, por outro a direita e os movimentos mais conservadores parecem ter capturado esse “vazio” político com soluções simplistas. Como
Alana Moraes – Parte da esquerda também interpreta de modo simplista, dizendo que Junho foi responsável pelo golpe e pela reação conservadora. Mas também existe uma outra parte disposta a procurar novas alternativas de organização. Existe uma crise econômica e políticaem todo o mundo, uma crise que tem a ver também com o esgotamento das formas tradicionais de organização. Isso não quer dizer que não temos mais que nos organizar, mas precisamos entender que a tradicional resposta da "participação" não vai dar conta de conter essa insatisfação.
É preciso estar aberto verdadeiramente para novos processos de politização (mais do que uma “nova política”), e esses processos têm a ver com a reconstrução de espaços vinculares e territoriais, com novas experiências de auto-organização, com "coisas simples, palpáveis e que se possam medir", como diz a canção do Negro Leo. Precisamos ser capazes de construir outras relações e também novas inteligências para a vida coletiva. Grande parte da esquerda vai ter que decidir se quer salvar o sistema ou produzir novos tecidos políticos de produção de formas de vida, vai ter que decidir se quer mandar, dirigir, ou se está disposta a se abrir para espaços sem comando.
IHU On-Line – Como a prisão de Rafael Braga e a do ex-presidente Lula são ilustrativas de como a esquerda enfrenta a crise de representatividade em seu sentido mais profundo?
Alana Moraes – Lula [4] foi vítima do sistema de justiça arbitrário, racista e autoritário do qual a população negra e pobre é vítima já faz tempo. Acontece que a arbitrariedade e o autoritarismo estão alcançando agora outros lugares, estão também atuando como atores políticos, procurando hegemonia e legitimidade popular. O punitivismo, as práticas de linchamento estão presentes em todos os lugares, estão infiltradas em nossa sociedade. As pessoas desejam mais prisão, mais punição, mais extermínio. Esse é um lugar dificílimo de atuar. Passados três meses da execução de Marielle [5] e ainda assistimos paralisados os rumos de uma investigação que, no fundo, sabemos fazer parte também das negociações de um Estado feito por forças legais e ilegais.
A milícia tem assento na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, como lidar com isso? Temos que seguir as pistas de Marielle. Sua militância, sua vida era perseguir outros caminhos de politização que tinha a ver com os laços, com o posicionamento, com afetos fortes que se produzem quando compartilhamos o sofrimento, quando nos cuidamos. Mas ela também sabia que o nosso grande problema estava nessa disseminação das práticas punitivistas, nas relações cada vez mais íntimas entre Estado e crime, entre poder militar e a desdemocratização da nossa sociedade.
IHU On-Line – Como Junho de 2013 despertou um ponto de interrogação sobre o que é ser de esquerda? De que maneira as esquerdas institucionais tendem a interpretar as lutas autonomistas?
Alana Moraes – Eu acho que tem a ver, sobretudo, com a concepção de Estado que a esquerda tem elaborado. Passamos anos dizendo que o inimigo era aquele que defendia o "estado mínimo", que a luta era entre mercado contra Estado. E nesse tempo fomos também assistindo ao crescimento do "estado máximo": a explosão do encarceramento, a arbitrariedade da justiça, a atuação genocida da Polícia Militar, a militarização das favelas e periferias. É óbvio que temos que continuar lutando por políticas distributivas, pela ampliação dos direitos sociais, não podemos deixar tudo para eles. Mas precisamos entender que não basta mais ganhar eleições para dirigir esse Estado. Precisamos pensar formas de atuação autônomas que fortaleçam experiências outras de organização da vida coletiva (algo que aliás já se faz em quilombos, territórios indígenas, ocupações de sem-teto, espaços de vizinhanças), mas também novas formas de disputar esse Estado, que seja também contra ele próprio, uma política ativa de dissolução desse Estado para a construção de outras formas de governo mais amparadas na democracia direta, na autonomia de territórios, na desmilitarização da vida. Não acho que temos que abandonar a democracia representativa, mas ela só poderá se reoxigenar coexistindo com outras possibilidades democráticas: mais diretas, mais autônomas e que levem em conta uma politização permanente da vida – a produção permanente de tempo livre! Uma política da vida e na vida contra a necropolítica do Estado neoliberal.
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Movimentos-Sociais/Junho-2013-O-ultimo-chamado-de-uma-geracao-que-desejava-apenas-fazer-politica/2/40624
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