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Lula, o humano

Compreender as contradições do ex-presidente e do PT no poder é mais importante e urgente para o país do que construir um mito




“Eu não sou mais um ser humano. Eu sou uma ideia.” A frase do discurso de Luiz Inácio Lula da Silva antes da prisão, no palanque do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, já se tornou célebre, como estava programado. Mas o símbolo deste momento para a história não foi o discurso, e sim a imagem feita de cima, em que aquele que acabara de se lançar não como candidato, mas como lenda, parece se transubstanciar na multidão: “Esse país tem milhões e milhões de Lulas”.


O problema daqueles que querem ser mitos em vida é a própria vida. A vida atrapalha o mito.

A vida lembra o mito, dia após dia, que ele é humano. Demasiado humano. E isso é perigoso para um mito. Consciente desse risco, Getúlio Vargas (1882-1954) se suicidou tendo o cuidado de deixar uma carta-testamento impecável para a história, num último lance de genialidade política. O “Pai dos Pobres” do Brasil do século 20 sabia que a vida atrapalhava a lenda.

Lula acredita que pode ser mito em vida, o corpo preso na cela da Polícia Federal da República de Curitiba, como uma morte simbólica, enquanto o mito atravessa o corpo da multidão. Foi nesse sentido os melhores esforços de Lula desde que a prisão se tornou uma possibilidade cada vez mais certa e mais próxima. As frases foram muitas nas últimas semanas, a mais messiânica esta aqui: “Eles estão lidando com um ser humano diferente, porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.


Que a foto histórica tenha sido feita de cima não é um dado qualquer: de cima, há mito; embaixo, no contato dos corpos, há realidades e sentimentos mais humanos


O fato de que aquela que já se tornou a imagem histórica do momento ter sido a foto feita de cima não é um dado qualquer. De cima há mito. De baixo, nos interiores da multidão, há realidades e sentimentos mais humanos. Mas a foto já marca um ponto, mostrando que de política Lula entende bem mais do que Sérgio Moro, que apostava na foto de Lula preso, vencido pela Operação Lava Jato. E terá que lidar com a foto de um mito nos braços do povo. Não é um peso qualquer para um homem tão vaidoso quanto Moro, que também aspira a um lugar bonito na história. E ninguém quer o lugar de um Carlos Lacerda.


A história, porém, é um ponto de interrogação, porque o passado é construído no futuro. E nada parece mais incerto do que o futuro no Brasil. A memória de Lula ainda está em disputa.

O futuro é imprevisto também na forma como a memória será construída no mundo que virá. Ainda não somos capazes de compreender como a internet repercute e muda o que chamamos de memória. O futuro do Lula histórico não será determinado pelos livros de história escritos por acadêmicos ou biografias feitas por jornalistas – ou pelo menos não só por eles – como aconteceu com Vargas e outros ícones da trajetória do Brasil. E isso já é um dado novo deste momento. Só saberemos mais adiante se um mártir de esquerda na cadeia tem a força que teve no futuro do passado, quando a internet não estava posta na construção das narrativas.

Lula está preso, não morto. Lula ainda está no jogo do presente.


1) O dia mais triste


7 de Abril de 2018 é talvez o dia mais triste da história recente. Para Lula, o humano, e para todos os brasileiros. Qualquer pessoa que não teve seus neurônios infectados pelo ódio – e uma das características do ódio é ser burro – é capaz de perceber a gravidade representada por um político que encarnava o projeto de pelo menos duas gerações de brasileiros, um projeto que de forma nenhuma pertencia apenas a ele, ser acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. E ser preso por isso sem provas convincentes no momento em que está em primeiro lugar nas pesquisas para a eleição de 2018.


Qualquer brasileiro sério é capaz de perceber o abismo que isso representa para o Brasil. A dureza desse momento não para Lula, mas para o que chamamos “nós”, o que de fato não existe, ou só existe em alguns momentos de síntese.


As panelas batendo com fúria nas janelas dos bairros “nobres” é o som da nossa vergonha como país: o ódio mascarado de alegria é obsceno


As panelas batendo com fúria nas janelas dos bairros “nobres” de São Paulo é o som da nossa vergonha como país. A de que as pessoas que tiveram o privilégio de estudar, num Brasil tão desigual, sejam incapazes de compreender a gravidade do momento histórico. Esse ódio mascarado de alegria é o rosto contorcido de uma distorção. Esse ódio mascarado de alegria é obsceno.


Mas estas são as pessoas do alto, as pessoas que podem olhar e interferir no mundo sem sair da janelinha. O fato de que batam panelas nos edifícios, em vez de irem às ruas lutar pelo Estado de Direito, num país tomado pelo Cotidiano de Exceção, é a expressão do fracasso do projeto de conciliação que Lula representou na prática, embora não tenha sido este o projeto que muitos que o elegeram acreditavam.


Publicação original: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/09/politica/1523288070_346855.html

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