Deputado federal prega unidade do campo progressista para as eleições municipais, elogia a parlamentar Tabata Amaral e defende que o debate sobre a Previdência inclua a reforma tributária.
Segundo deputado federal mais votado do Rio de Janeiro nas eleições de 2018, com mais de 342.000 votos, Marcelo Freixo (Niterói, 1967) é uma das vozes mais ativas da oposição ao Governo de Jair Bolsonaro (PSL). Filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), é contrário ao projeto de reforma da Previdência e defende um debate mais amplo que inclua uma reforma tributária para financiar o sistema de pensões. O EL PAÍS conversou com o parlamentar no final de março, durante um café da manhã numa padaria do famoso edifício Copan, no centro de São Paulo. Na entrevista, o parlamentar também elogia a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), por vezes alvo de críticas por militantes da esquerda nas redes, comenta as investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, de quem era amigo e mentor político, e admite que pretende disputar a prefeitura do Rio novamente em 2020, ainda que, segundo garante, sua prioridade seja unificar as forças progressistas.
Pergunta. Pretende se candidatar para a Prefeitura do Rio em 2020?
Resposta. A princípio meu nome está colocado. Na última eleição cheguei ao segundo turno, então meu nome tem força eleitoral. Mas meu objetivo agora é unificar a esquerda.
P. Acredita que ela chegue unida para a disputa eleitoral?
R. Isso é uma construção. Tenho conversado muito com o PCdoB e com o PT, que já disse que vai me apoiar abertamente. Queremos trazer também o PDT, me dou muito bem com os parlamentares do partido. Se conseguirmos ter todas as forças progressistas no mesmo campo, fazemos uma disputa de prefeitura em outro patamar em termos de programa, governança, de poder chamar os melhores quadros. Diante de um governo fascista como esse, a gente tem que estar unificado, não tem cabimento não estar. Se o meu nome for consenso, vou para a disputa. Mas para mim não é uma questão de vida ou morte ou um projeto pessoal. É um projeto de conquista de cidade e de reorganização das forças progressistas. Se no Rio a cabeça de chapa pode ser eu por causa de minha expressão eleitoral, temos que ter maturidade de apoiar outros nomes em outros Estados que tenham mais força política, para buscar essa unidade nacionalmente.
P. Após uma performance elogiada de deputada Tabata Amaral contra Ricardo Vélez [que deixou o comando do Ministério da Educação no início de abril], parte da esquerda preferiu criticá-la nas redes sociais. Não seria hora de estender pontes?
R. Tabata é uma excelente parlamentar, muito preparada e tecnicamente excelente. Nos conhecemos desde que ela estudava em Harvard e ela me chamou para ir lá falar. Depois, eu e Marielle a levamos para conhecer o Complexo da Maré. [...] Você não precisa ser amigo de ninguém, mas você não precisa ser inimigo pessoal dentro de uma disputa política. E o espaço do parlamento é o espaço da diferença, por mais absurda que ela seja. Isso é o que separa o fanatismo da democracia, que tem, na sua razão de ser, o convívio da diferença. É conseguir arrancar da diferença algo que seja importante para a República, com reafirmação de projeto. E não estou falando de uma conciliação que substitua o conflito, estou falando da qualidade desse conflito. Se cada um fica falando para a sua casta, a realidade não se transforma. Isso não significa que a Tabata seja menos de esquerda ou mais de esquerda. Significa que ela dialoga. Ela está certa em fazer isso. Não há outro lugar para a gente resolver as coisas que não seja na política. E é uma maneira de enfrentar esse raciocínio bolsonarista e olavista de que a política não presta, de destruição da política como lugar de se avançar socialmente. Bolsonaro nunca foi antissistema, ele sempre foi subsistema. Sempre viveu no esgoto da política.
P. A esquerda vem desde 2015 falando em "resistência". O campo progressista deve também apresentar alguma alternativa ao projeto que está aí?
R. Conversei muito com a bancada do PSOL. Eu particularmente não gosto da ideia de resistência, porque ela nos coloca num lugar de pequeno alcance. A resistência é um movimento para você não perder. E temos que brigar para ganhar. Não só a eleição, mas também a sociedade. Tem disputa de narrativa. Por exemplo, entrar na disputa sobre se houve ou não golpe em 1964 não é uma disputa pelo passado, é pela democracia e pelo futuro. No grupo de trabalho que analisa o pacote anticrime de Sergio Moro, somos 10 deputados. Entre eles a deputada Margarete Coelho, do PP do Piauí, que virou grande uma parceira na luta dentro do Congresso no enfrentamento do crime organizado e do super encarceramento. O Lafayette de Andrada (PRB), que foi secretário do governador Anastasia (PSDB) em Minas, também é amplamente favorável a que não tenhamos um super encarceramento. Criamos no grupo um consenso de que o projeto é inconsistente e inconsequente e não pode ser aprovado rapidamente. Portanto, precisamos dizer também o que queremos e disputar para que outra coisa vá para a votação.
P. A impressão é que existe um apagão de ideias e propostas de políticas públicas na esquerda.
R. Na área de segurança pública eu sempre propus. O relatório da CPI [de 2008] das milícias tem 58 propostas. A CPI do tráfico de armas e munições [de 2011] tem 40 propostas. Moro está propondo a barganha e eu estou propondo aumentar o sistema de defensoria pública, garantir defesa e fazer com que a prisão tenha eficácia, possa ser um lugar para prender quem oferece perigo concreto para a sociedade. É um lugar muito caro para tornar as pessoas piores. Hoje, 42% dos presos brasileiros são presos provisórios que não tiveram acesso ao juiz. Quero provar que quanto maior a população carcerária, maior o poder das facções. Moro diz que vai enfrentar as facções aumentando a população carcerária, e vai piorar. Ele acha que vai resolver isolando os líderes, mas novos líderes surgem! Só 10% de presos estudam e outros 10% trabalham. São prisões de ociosidade máxima que prendem jovens negros e pobres. A gente prende quem a gente vigia, não quem a gente investiga. Ao mesmo tempo, a taxa de crescimento de homicídio é de 4%.
P. O que mais precisa ser mudado no pacote anticrime de Moro?
R. Além de explodir a população carcerária, o pacote entra num projeto de privatização de presídios para levar o Brasil a ser o que os Estados Unidos querem deixar de ser. O plea bargain [mecanismo de negociação em que o acusado, ao admitir o crime, diminui sua pena e evita um julgamento] é outro absurdo. Se 65% das comarcas brasileiras não tem defensores públicos, como vai fazer barganha? Foge da nossa cultura jurídica e é um absurdo diante da realidade social que nós temos.
O projeto de Moro não é só uma disputa de segurança pública. Ele se aproxima do de Paulo Guedes em algum lugar. O sistema de previdência de Guedes, que é criar o sistema de capitalização, acabar com a ideia social de previdência e reduzir o Estado, vai ampliar a desigualdade social e vai gerar uma massa de pessoas sobrantes e supérfluas. Se essa lógica de estado mínimo de Guedes passar, então vamos precisar do estado penal máximo de Moro. Isso é uma disputa de concepção da sociedade.
P. A oposição já fechou questão contra a reforma da previdência. Há alguns pontos vistos como maldades contra os pobres, como a capitalização, as mudanças no BPC [Benefício de Prestação Continuada] e na aposentadoria rural, o aumento no tempo de contribuição de 15 para 20 anos... Ainda assim, considera que deveria haver alguma reforma?
R. Acho que sim. Temos que encarar o debate da previdência dentro de um caráter tributário e fiscal. O problema é tratar como algo separado. Você parte do princípio que a sociedade está envelhecendo e que o Estado tem um problema de arrecadação. Mas utilizam um discurso moral de combate a privilégios para atingir um objetivo social, que é acabar com a previdência e ampliar a desigualdade. Ninguém aqui defende privilégios. Vamos acabar com privilégios? Vamos. Mas é isso que vai resolver a questão previdenciária? Não é. Existe hoje uma dívida ativa que o Estado não consegue cobrar e um processo de exoneração fiscal sem qualquer controle. A melhor reforma da previdência é garantir que ela seja social, garantir o sistema de repartição, garantir um sistema onde Estado, empresário e trabalhador contribuam... É isso o que eles rompendo, ao colocar só na conta do trabalhador a partir da capitalização.
P. Hoje existe um regime duplo em que as pessoas se aposentam ou por idade ou tempo de contribuição. A idade mínima deveria ser estabelecida para todos?
R. Acho que o debate é importante, não temos que nos negar a fazer o debate. Mas, a expectativa de vida no Leblon é uma e em Acari é outra... Embora a expectativa de vida seja uma...
P. Mas o que importa, segundo economistas, é a expectativa de sobrevida quando se chega a uma determinada idade. A expectativa de vida ao nascer tem outras variáveis.
R. Isso é verdade. Mas, mesmo entendendo isso, você tem uma capacidade de envelhecimento com vida saudável em algumas áreas que não são comparáveis. O Brasil é um país muito desigual territorialmente. No nordeste uma parcela da população vai se aposentar com uma condição muito precária de vida. São pessoas que começam a trabalhar com 15 anos.
P. Mas os dados indicam que os mais pobres já se aposentam por idade, seja via BPC ou contribuindo o mínimo de 15 anos...
R. E vai aumentar muita gente no BPC com essa lógica que eles estão colocando. E aí o que eles fazem com o BPC? Jogam para 70 anos. Os 400 reais que eles colocam a partir de 60 anos não tem previsão de correção. Qual é a pessoa que vive com isso hoje? Para mim, existe um grande problema de fundo que é a desconstitucionalização do debate previdenciário. Essa é a grande questão. Estão lançando uma PEC que toca em alguns pontos, com vários bodes na sala que vão sendo tirados... Mas eles aprovam a reforma e depois, por lei complementar, empurram o que mais interessa a eles, que é o sistema de capitalização. Para mim esse é o grande eixo do debate. Acho importante debater idade mínima e tempo de contribuição, em todos esses campos vamos fazer um debate profundo e dizer por que somos contra ou a favor desses pontos.
P. O que deveria ser proposto então no campo previdenciário e tributário?
R. Temos que fazer um debate sobre que forma a tributação pode enfrentar a desigualdade social. Você tem que tirar a tributação do consumo e jogar para a renda e grandes fortunas.
P. Mas de que forma isso pode aumentar a arrecadação e sustentar a previdência? Ao tirar do consumo e passar para a renda, o efeito não pode ser neutro?
R. Mas nesse caso você aumenta a capacidade de consumo da sociedade, o que aumenta a capacidade de arrecadação do Estado. A economia cresceu na era Lula por causa de uma série de fatores, mas também porque houve investimento no consumo. Capacidade de consumo dos setores populares gera crescimento econômico. Então, refazer a lógica tributária sobre renda e retirar do consumo é fundamental para que o Estado tenha capacidade de garantir uma previdência social. Aí podemos discutir vários outros pontos...
P. A partir disso admite então o debate sobre a idade mínima, por exemplo?
R. Talvez ela [idade mínima] não seja necessária. Agora, aumentar tempo de contribuição da população rural é uma maldade. Colocar professor para contribuir 30 anos? Da onde tiraram isso? Fiquei em sala de aula durante 20 anos. Não é brincadeira ficar 30 anos. Dizer que homens e mulheres professores podem contribuir da mesma maneira, desconsiderando que mulheres tem jornada dupla? Eu conseguia dar mais aula que minhas companheiras, porque elas tinham afazeres outros. As mulheres são as mais atingidas de uma maneira geral... Mas acho que precisamos ser propositivos e temos condição disso. Tem que ter ação pedagógica, bons materiais...
Caso Marielle e combate a milícia
P. Como vê o encaminhamento do caso Marielle?
R. Acho que foi um mérito importante ter chegado ao atirador [o sargento reformado da PM Ronnie Lessa]. Não era fácil, foi um crime muito planejado, de profissionais, o que evidentemente leva a certeza de que o matador não agiu sozinho. Não há a menor hipótese de crime de ódio. A entrada do GAECO e da Polícia Federal foram decisivas, assim como a pressão da sociedade civil e dos jornalistas contra aquela testemunha inventada [que acusou o vereador Marcello Siciliano e o miliciano Orlando Curicica de serem os mandantes do crime]. A Polícia Civil vai ter que fazer uma reflexão profunda sobre por que insistiu em uma linha que todos sabiam que não era verdade. O delegado Giniton Lages cumpriu um papel importante, mas acho que ele deveria, sim, ter sido trocado. Acho que houve um desgaste, um ciclo que se encerra. Tecnicamente o novo delegado [Daniel Rosa] é muito bom. As informações que tenho dele são as melhores. Vamos precisar de alguém com coragem de chegar onde tiver que chegar. Porque, seja lá quem for, é alguém poderoso.
P. O caso Marielle expõe um estado de coisas no Rio que uma reportagem da revista Piauí definiu como metástase. O que mudou desde o relatório da CPI das milícias? E como resolver?
R. A CPI vai fazer 11 anos e foi muito vitoriosa. Ela leva a prisão de mais de 200 milicianos poderosos. Todos os chefes foram presos, deputados, vereadores, e mudou a opinião publica. Até aquele momento era visto como um mal menor. Na conclusão do relatório dizemos o seguinte: crime, polícia e política não se separam mais do Rio de Janeiro. Depois disso, eles mataram a juíza Patricia Accioly e Marielle. Quem foi, A B ou C, não interessa. Vem desta relação crime, polícia e política, que envolve território, projeto de poder e cria um esquema mafioso que nada tem a ver com poder paralelo. Isso é o Estado leiloado. Crime organizado não acontece fora do Estado, acontece onde tem dinheiro e poder. O dinheiro do crime não está escondido num colchão da favela, está na bolsa de valores, no mercado imobiliário, no circuito do capitalismo promíscuo. Essa disputa que temos que fazer não é só de segurança pública, não é só um caso de polícia. Essa metástase é um caso de política. É uma disputa de concepção de representatividade e de Estado. É aí que está o enfrentamento ao crime. Existe uma lógica econômica de funcionamento da sociedade que alimenta grupos criminosos. O Cabral está aí para provar. De lá pra cá, as milícias se aproximaram da prática do trafico. Hoje tem tráfico nas milícias. E o tráfico absorveu práticas como controle do gás e da internet, que eram exclusivas da milícia. O número de milícias aumentou e as práticas se tornaram mais rentáveis. Das propostas que fizemos eles só prenderam os caras.
P. E o que poderia ter sido feito?
R. A Agência Nacional de Petróleo é quem fiscaliza o comércio de gás. Sabe quantos fiscais tinham naquela época? Cinco. Controle de gás é uma das fontes de renda da milícia e agora é do tráfico. Não aumentaram o número de fiscais, não levaram gás encanado onde a milícia atua... Porque não interessa chegar. No caso de transporte, o caos promovido pela Fetransport [Federação de Transportes de Passageiros do Rio] para garantir seus lucros absurdos sempre alimentou a milícia através do controle do transporte alternativo. O Estado não é ausente, é leiloado.
P. Por que leiloado?
R. Porque você entrega a governança do local para a milícia, que te elege. A milícia tem controle eleitoral do seu controle territorial. É leiloado porque tem leilão, tem lances a serem dados. Crime organizado é com grana. Quer investigar crime organizado, investiga a grana. Não é o cara que está de sandália Havaiana, desdentado e com fuzil na mão.
P. Como vê a proximidade da família Bolsonaro com pessoas ligadas a milícias e o fato de que Ronnie Lessa era seu vizinho?
"O número de milícias aumentou e as práticas se tornaram mais rentáveis. Das propostas que fizemos eles só prenderam os caras"
R. A relação de Bolsonaro com Fabrício Queiroz [ex-assessor do hoje senador Flavio Bolsonaro] é algo que precisa ser investigado. O papel que ele exercia, que relações tinha com esses grupos milicianos... Bolsonaro sempre foi um defensor de setores criminosos como os grupos de extermínio. Quem mais defendeu bandido recentemente na República foi Bolsonaro, não foram os militantes dos direitos humanos. Foi ele que defendeu execução sumária e a legalização da milícia abertamente. Isso é defender pessoas que matam, extorquem, fazem agiotagem, controlam as vans... O que pessoas ligadas a um escritório de matadores estavam fazendo no gabinete de seu filho? Que relação era essa? Eram pessoas que não trabalhavam, mas sim funcionários fantasmas indicadas por Queiroz, que tem relações com Rio das Pedras [bairro do Rio dominado por milicianos]. Isso é concreto. Flavio Bolsonaro entrega uma homenagem a Adriano Nóbrega [miliciano do Escritório do Crime, hoje foragido] quando ele já estava dentro da prisão. Temos também que perguntar para Bolsonaro por que ele nunca se incomodou com Ronnie Lessa [morando em seu condomínio]. Era um sargento que ganhava 7.000 reais e tinha uma das melhores casas, lancha e casa em Angra... A ABIN não verificou isso? Ou não era problema? Ele não era problema porque ninguém sabia quem era ou porque todo mundo sabia quem era?
Fonte: El País Global
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