Falta de planejamento urbano e modelo de prevenção esgotado explicam destruição deixada
após temporais amplificados pela emergência climática.
Não faltaram anúncios. Desde a semana passada, os meteorologistas prenunciavam uma forte chuva para Belo Horizonte e região metropolitana. A Defesa Civil alertava que as pessoas evitassem as áreas que sempre se alagam, ficassem em casa ou que abandonassem suas residências em qualquer sinal de movimentação de solo ou aumento de água. Na última sexta-feira, quando a capital mineira registrou o dia mais chuvoso dos últimos 110 anos, Elisangela da Silva, de 39 anos, foi uma das pessoas que tiveram que sair correndo, quando a água e a lama invadiram sua residência. “Eu perdi tudo naquele barro, só salvei mesmo os documentos. Corri para a casa de um amigo, mas quando o tempo de chuva passar, vou ter que voltar mesmo com medo e recomeçar”, conta ela que vive em uma área de risco, com sete filhos.
Assim como Elisângela e sua família, mais de 8.157 pessoas ficaram desabrigadas e outras 38.703 foram desalojadas em Minas Gerais. Nesta quarta-feira, 54 mortes foram confirmadas, a maioria na capital mineira. Uma pessoa ainda está desaparecida. Na noite desta terça-feira, mais um temporal provocou estragos e inundações em diversos pontos da cidade, principalmente, na zona Centro Sul. O número de municípios mineiros em situação de emergência ou de calamidade pública chegou a 136. Uma tragédia anunciada que, em tempos de mudanças climáticas, pode se tornar cada vez mais comum se ações de prevenção e planejamento não forem tomadas, de acordo com especialistas ouvidos pelo EL PAÍS.
Na avaliação de Roberto Andrés, urbanista e professor da UFMG, as cidades que hoje mais sofrem com as consequências das chuvas foram as que em seu planejamento urbano desconsideraram o curso da água. “É do ciclo natural que os rios se encham. Foi problema de concepção acreditar que seria possível ocupar as áreas próximas aos córregos e rios. É preciso deixar uma área, fazer parques, deixar espaços para que os rios possam subir. Mas essa ideia equivocada de planejamento está internalizado em várias cidades brasileiras”, explica.
Outro motivo apontado por Andrés é a ocupação desordenada em morros e encostas, ocupadas geralmente pela população de baixa renda, e a ausência do Estado. “Nesses casos, falta uma política de habitação, de retirar essas pessoas desses locais e levá-las para uma região segura. Estamos vivendo uma época de chuvas mais intensas e esses eventos serão cada vez mais comuns. Porém, não adianta culpar a natureza, as mudanças climáticas só tornam mais complexas as situações de planejamento equivocado e a ausência do Estado”, afirma.
Em 2016, o estudo Análise de vulnerabilidade às mudanças climáticas do município de Belo Horizonte já apontava dados alarmantes sobre a intensificação dos impactos das mudanças climáticas na capital, como inundações, ondas de calor, deslizamentos e dengue. O estudo indicava que 207, ou 42% dos 486 bairros da capital mineira, já se encontram em situação de alta vulnerabilidade. E prevê que, em 2030, se nada for feito, o número de locais em situação de risco de deslizamento e inundações pode dar um salto, atingindo mais da metade dos bairros (68% do total atual). Neste ano, o orçamento da Coordenadoria Estadual de Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais para as ações emergenciais, como os casos de municípios atingidos pelas chuvas, é de mais de 6 milhões de reais.
O arquiteto e urbanista Sergio Myssior, ex-conselheiro do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Belo Horizonte, ressalta que há mais de uma década a cidade também conta com uma carta de inundações, onde 80 pontos já tinham sido identificados. “O diagnóstico já é conhecido há mais de dez anos e o prognóstico já deveria estar sendo enfrentado. As pessoas nas áreas de risco não estão sendo realocadas, convivendo com o risco de morrerem”, explica.
Na avaliação de Myssior, é preciso mudar o modelo de gestão. "O poder público está reproduzindo um modelo esgotado, baseado em grandes obras, custosas para os cofres públicos de alargar canais, que não são uma solução para o longo prazo. Não atacam os problema na sua raiz", explica.
Para o urbanista, as cidades que mundialmente têm avançado no tema apostam em corredores ecológicos, parques e áreas verdes, jardins drenantes para facilitar a drenagem da água. “Uma cidade urbanizada, em que várias áreas são impermeabilizadas, pode aumentar em até 7 vezes o escoamento da água”, afirma.
Uma medida sugerida por Myssior é colocar nas antigas e novas edificações caixas de retenção de água de chuva que vão acumular a água de chuva e irão retardar o escoamento para a rede pluvial, fazendo com que esse volume não contribua para o momento de pico com as enchentes.
Andrés concorda que é preciso criar um sistema para que nem toda a água caia no fundo dos vales. “É preciso de uma política pública para incentivar que as pessoas façam projetos de captação, telhados verdes, reuso de água para que a chuva seja absorvida de alguma forma, que tenham locais de retenção. Já há muitas tecnologias disponíveis”.
O cientista, Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, avalia que, com os eventos climáticos se tornando mais fortes e frequentes em todo o mundo, cada poder local precisa ter uma estratégia para lidar com as mudanças. “O Brasil, por exemplo, possui um plano nacional de mudanças climáticas que, em tese, a União deveria orientar ações de gestão de risco e prevenção de danos às pessoas e a economia. Mas esse ele está engavetado, o país não tem feito muito”, critica.
O cientista afirma ainda que não é aceitável tratar as mudanças climáticas como um tema de segunda ou terceira importância. “Ele é fundamental para a política de desenvolvimento brasileira. É o maior desafio do século XXI, porque afeta a disponibilidade de água, a produção de alimentos, geração de energia e a saúde humana”, diz Rittl, que acredita que hoje vivemos um momento político delicado no país. “Nós temos negacionistas no Governo. Parlamentares que apoiam negacionistas do clima, que não produzem ciência nenhuma”.
Rittl ressalta que não são apenas as pessoas diretamente atingidas pelas chuvas, as que tiveram suas casa destruídas, as únicas afetadas. “A qualidade de água também é fortemente alterada de forma geral, como vimos no Rio de Janeiro. Claro que também há problemas de gestão e tratamento do esgoto, saneamento básico. Temos poucos municípios com políticas corretas”, afirma.
Tragédias como as de Minas Gerais poderiam ter sido facilmente evitadas se o tema fosse prioritário. “A responsabilidade quando temos perdas de vidas humanas é da negligência do poder público que não soube ouvir o que os cientistas estão alertando há muito tempo e tomar medidas”, conclui Rittl.
Fonte: El País Global
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