Por Natalie Hanman
A jornalista, escritora e ativista canadense Naomi Klein nos concedeu essa entrevista, durante sua turnê mundial para promover seu livro “On Fire: The Burning Case for a Green New Deal”, e também para apoiar as mobilizações contra a crise climática. Por que ela escreveu este livro agora? Essa e outras respostas você poderá conferir nas próximas linhas:
Por que publicar este livro agora?
Naomi Klein: Ainda tenho a impressão de que o modo no qual falamos sobre a crise climática é disperso demais, e não sabemos como aproximar essa luta de todo o contexto que enfrentamos de luta contra o capitalismo. Um dos temas mais importantes que discuto no livro é o dos vínculos entre a crise climática, a ascensão do supremacismo branco e das diversas formas de nacionalismo, o fato de tanta gente está sendo obrigada a deixar seus territórios de origem, a guerra que existe contra os nossos direitos, entre outras. Essas são crises que estão interconectadas, e as soluções para elas também devem ser assim.
O livro reúne ensaios da década passada. Você mudou de opinião de lá para cá?
Klein: Se analiso de forma retrospectiva, creio que enfatizei bastante o desafio que a crise climática impões à esquerda. Fica mais evidente se vemos a partir da forma como a crise climática ajuda a questionar o discurso dominante da direita, o culto a um grave centrismo que nunca quer fazer nada para mudar. Mas isso também leva a um desafio ao discurso da esquerda que só está interessada em redistribuir os despojos do extrativismo, e não em calcular os limites de um consumo desenfreado.
O que é que impede a esquerda de fazer isso?
Klein: No contexto da América do Norte, o maior tabu é o de reconhecer que tem que haver limites. Basta ver o discurso da Fox News contra o projeto de “new deal verde”: “eles querem acabar com nosso direito ao hambúrguer!”. Se trata de um princípio que toca o coração do sonho norte-americano, de que toda geração deve ter mais que a anterior, sempre há uma nova fronteira que prolongar, um conceito claramente colonialista. Ao propor a ideia de há limites e que é preciso tomar decisões difíceis, é preciso impulsar também a de que esses recursos limitados devem ser compartilhados de forma equitativa… e isso cria um ataque de pânico. E a resposta a esse pânico tem sido a de tentar evitá-lo, explicar que não queremos tirar nada de ninguém, que todos podem continuar tendo benefícios, mas que para que ainda existam esses benefícios precisamos cuidar melhor dos recursos, ter um ar menos contaminado, diminuir o uso de veículos poluidores, promover um estilo de vida mais agradável, e há muitas formas de fazer isso. É preciso combater o consumo infinito, a dinâmica de usar e jogar fora, e não se preocupar com o resultado dessa cultura do desperdício.
Você está animada com o debate sobre o “new deal verde”?
Klein: Sinto uma grande emoção, e uma sensação de alívio, de finalmente estar falando sobre soluções em proporções adequadas à crise que enfrentamos, de que já não estamos falando de um pequeno imposto, ou de um programa de direitos de emissão, mas sim de transformar verdadeiramente a nossa economia. De qualquer forma, o sistema ainda é quem impõe o seu discurso à maioria das pessoas, e por isso nos encontramos nesse período de profunda desestabilização, impulsado por Trump, Johnson e todos esses líderes perigosos, e diante disso, por que não propomos uma mudança de cabo a rabo, e tentamos encarar todas essas crises de uma só vez? Temos todas as possibilidades de errar o tiro, é verdade, mas cada nova fração de grau do aquecimento que pudermos evitar constitui uma vitória, e cada medida política que sejamos capazes de estabelecer torna as nossas sociedades mais humanas, e nos farão entender melhor as inevitáveis comoções e tormentas, sem cair na barbárie. Porque o que verdadeiramente me assusta é o que estamos vendo em nossas fronteiras na Europa, na América do Norte e na Austrália, com a questão da migração, e não creio que seja uma coincidência que os países que são motores desse neocolonialismo estejam na primeira linha desse problema. Estamos assistindo o início da era da barbárie climática. Vimos as consequências disso em Christchurch, em El Paso, onde houve o matrimônio do supremacismo branco com o racismo contra os imigrantes.
Essa é uma das partes mais assustadoras do seu livro. Creio que é uma relação que muita gente não estabelece.
Klein: Esse padrão ficou claro há tempos. A supremacia branca não surgiu só porque havia gente aceitando essas matanças, mas também porque essas ações bárbaras passaram a ser enormemente lucrativas. A era do racismo científico surgiu junto com o tráfico transatlântico de escravos, é uma racionalização da brutalidade. Se vamos enfrentar a crise climática fortificando nossas fronteiras, então as teorias que justificam isso precisam criar uma nova lógica de hierarquia na humanidade. Temos visto sinais a esse respeito há anos, e agora é cada vez mais difícil negar o problema, porque há assassinos postados até em cima dos telhados.
Uma crítica que se escuta muito a respeito do movimento ambiental é que há um predomínio de pessoas brancas. Como você vê isso?
Klein: Esse enfoque acaba aparecendo pois aqueles que tem muito o que perder têm mais medo das mudanças, e quem tem o que ganhar tender a lutar mais por seus objetivos. Essa é a grande vantagem de ter um discurso sobre o clima que vincule o tema às chamadas questões de direito ao pão, de como ter empregos melhores, moradia para todos, meios sustentar as famílias. Tive muitas conversas com ambientalistas ao longo dos anos, nas que sentia que eles pensavam que unir a luta contra a crise climática com a luta contra a pobreza, ou a luta pela justiça racial, torna mais difícil a sua tarefa. Temos que sair desse paradigma de que “a minha crise é maior que a sua”, ou que “primeiros salvemos o planeta, depois lutamos contra a pobreza e o racismo, e contra a violência contra as mulheres”. Isso não funciona. Isso nos afasta daqueles que lutariam mais decididamente conosco pelas mudanças se a luta fosse mais ampla. Esse debate é visto muito fortemente nos Estados Unidos devido às líderes do movimento pela justiça climática, que também são congressistas que defendem o “new deal verde”, e que formam o “Esquadrão” de mulheres progressista: Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib. Elas são mulheres provenientes de comunidades que receberam um tratamento injusto durante os anos de surgimento do neoliberalismo, e estão decididas a representar verdadeiramente os interesses dessas comunidades. Elas não têm medo dessas mudanças mais profundas, porque suas comunidades precisam disso desesperadamente.
Você diz no livro que “a dura verdade nua e crua é que a resposta à pergunta `o que posso fazer como indivíduo, para lutar contra a crise climática?´ é simples: nada”. Ainda pensa assim?
Klein: Em termos de carbono, as decisões individuais que tomamos não vão gerarão uma mudança no volume que necessitamos. Creio que muita gente, é mais cômodo falar do nosso consumo pessoal do que falar de uma mudança sistêmica, porque somos produto de um neoliberalismo que nos formou para que nos vejamos primeiro como consumidores. Essa é, para mim, a vantagem de usar essas analogias históricas com o New Deal ou o Plano Marshall, que nos trazem de volta a uma época na que podíamos pensar em mudanças a grande escala. Nós fomos preparados para pensar em escala muito pequena. O fato de que Greta Thunberg tenha transformado sua vida numa emergência viva tem um significado incrível.
Sim, ela viajou por via marítima à cúpula do clima nas Nações Unidas em Nova York, em um veleiro de zero emissões de carbono…
Klein: Exato! Mas não se trata do que Greta está fazendo Greta como indivíduo, e sim do que ela está difundindo com as decisões que toma como ativista, e isso eu respeito de um modo absoluto, creio que é magnífico. Ela está fazendo uso do poder que tem para difundir a ideia de que se trata de uma emergência, e tenta motivar os políticos para que também tratem essa questão como uma emergência. Ninguém está isento da necessidade de reavaliar suas próprias decisões e comportamentos, mas creio que é possível destacar algumas escolhas individuais. Eu mesma fiz minha opção, e tenho tentado evidenciar isso desde que escrevi o livro “No Logo”, quando começaram a me fazer perguntas sobre o que devemos comprar, onde devemos comprar, que tipo de roupa é mais ética, entre outras. Minha resposta é que não sou uma assessora de moda, não sou guru das compras de ninguém, e tomo as minhas decisões em minha própria vida, mas sem ter a ilusão de que essas decisões serão determinantes para a grande mudança que eu espero que faça a diferença.
Algumas pessoas decidiram fazer uma “greve de ventres”. O que você acha disso?
Klein: Gosto de ver que esses debates estão chegando ao domínio público, que não sejam mais assuntos furtivos entre os que têm medo de falar. Senão passa a ser algo isola muito as pessoas. Comigo também foi assim. Uma das razões pela qual esperei para encarar uma gravidez, e sempre conversava sobre isso com meu companheiro, é o pensamento de “para que trazer ao mundo alguém que terminará sendo mais um desesperado em um mundo estilo Mad Max, tendo que lutar com seus amigos pela comida e pela água?”. Antes de formar parte do movimento pela justiça climática, não conseguia me imaginar tendo um filho. Mas nunca diria a alguém como ela deveria responder essa pergunta, que acho que tem que ser mais íntima. Como feminista, por conhecer a brutal história da esterilização forçada e dos modos em que os corpos das mulheres se transformam em zonas de batalha, nas quais os responsáveis políticos impões suas políticas de controle de natalidade, creio que a ideia de que há soluções regulatórias quando se trata de ter ou não ter filhos tem sido historicamente catastrófica. Temos que lutar juntos, com nossas aflições e nossos temores pelo clima, qualquer que seja a decisão que tomemos, mas o debate que nos falta é sobre como construímos um mundo para que essas crianças tenham uma vida próspera e com carbono zero.
Recentemente, você recomendou a leitura da novela de Richard Powers (“The Overstory”). Por quê?
Klein: Para mim, ela teve uma importância incrível, e estou adorando que muita gente tenha me escrito depois de eu dizer isso. O que Powers escreve sobre as árvores: que elas vivem em comunidades e se comunicam, fazem planos e reagem juntas, e nós completamente equivocados em nossa forma de entender isso. É o mesmo diálogo que temos sobre se vamos resolver isso como indivíduos ou se vamos salvar o organismo coletivo. Também é pouco usual ver a boa ficção valorizar o ativismo, trata-lo com verdadeiro respeito, com seus fracassos e tudo, e reconhecer o heroísmo daqueles que colocam seu corpo em risco. Creio que Powers fez isso, e de uma forma verdadeiramente extraordinária.
Qual a sua opinião sobre os resultados do movimento Extinction Rebellion?
Klein: Uma cosa que eles fizeram muito bem foi tocar uma campanha que saiu do modelo clássico que seguimos durante muito tempo, baseada em falar sobre um medo, destacar alguns elementos e tentar fazer com que todos sintam juntos esse mesmo medo, e processem da mesma forma, que é o resultado que eles conseguiram, mas agindo de outra forma. Ouço muita gente dizer que as pessoas nos Anos 30 e 40 podiam ser organizar bairro por bairro, ou em seus lugares de trabalho, mas nós não temos como fazer isso. Pensamos que fomos tão degradados como espécie que somos incapazes disso. A única coisa que vai mudar essa ideia é fazer com que nos vejamos cara a cara, em comunidade, ter experiências fora das telas dos nossos celulares, uns com os outros, nas ruas, com a natureza, triunfar em algumas coisas e sentir esse poder.
Você fala muito de resistência em seu livro. Como faz para manter esse otimismo? Ainda se considera uma esperançosa?
Klein: Tenho sentimentos complicados no que se refere à questão da esperança. Não há um dia em que eu não tenha a sensação de puro pânico, de terror mesmo, uma completa convicção de que estamos condenados, e logo depois tento me livrar desse pensamento. Então me sinto renovada, especialmente graças a essa nova geração, tão decidida, tão enérgica. Me sinto motivada pela vontade deles de se comprometer com a política eleitoral, porque a minha geração, quando tinha 20 ou 30 anos, suspeitava muito da política eleitoral, a via como um meio onde se sujam as mãos, e por isso perdemos muitas oportunidades. O que me dá más esperança hoje é ver que finalmente temos uma visão do que queremos, ou pelo menos um primeiro rascunho disso. É a primeira vez que acontece isso na minha vida. Por isso decidi ter um filho. Tenho um menino de sete anos, que está completamente obcecado e apaixonado pelo mundo natural. Quando penso nisso, depois de ter passado um verão inteiro falando do papel do salmão na alimentação dos bosques onde nasceu, na Columbia Britânica, e de que forma isso está ligado à saúde das árvores, e ao solo, e aos ursos, e às orcas, e a este magnífico ecossistema em conjunto; penso no que seria ter que dizer a ele que já não há salmões. Seria horrível. E isso me motiva, mas também me mantém apreensiva.
*Publicado originalmente no Sin Permiso | Tradução de Victor Farinelli
Fonte: Carta Maior
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