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No Peru, um golpe pela metade

O fujimorismo não destituiu formalmente o presidente Kuczynski, mas tomou o poder de fato


Manifestantes em Lima mostram como Kuczynski caiu nas mãos de Fujimori, enquanto este comemorava a libertação com o filho Kenji, que a negociou

Jogo de aparências à parte, o que aconteceu nas últimas semanas de 2017 é evidente para todos os peruanos. Em 15 de dezembro, os fujimoristas, maioria no Parlamento, tentaram um golpe parlamentar-judiciário com um processo relâmpago, superado em sofreguidão apenas pela destituição em menos de 48 horas do presidente paraguaio Fernando Lugo, em junho de 2012. A votação decisiva seria no dia 21, em menos de uma semana.

Assim como em outros processos similares na América Latina, as bases do pretenso impeachment eram frágeis. Apenas dois dias antes, revelara-se que a Westfield Capital, empresa de consultoria do presidente Pedro Pablo Kuczynski (conhecido como PPK, também sigla de seu partido Peruanos Por el Kambio, sic), recebeu 782 mil dólares da Odebrecht por assessorias de investimento prestadas de 2004 a 2007, quando foi ministro da Economia (2004-2005) e depois primeiro-ministro (2005-2006) do governo Alejandro Toledo. Além disso, a empresa First Capital, de Gerardo Sepúlveda, sócio chileno de PPK, recebeu outros 4 milhões de 2005 a 2013, por outros serviços.

O presidente até então negava relações com a Odebrecht e a empresa de um ministro receber por serviços a uma empreiteira que trabalha para seu governo soa no mínimo antiético, mas, segundo a própria Odebrecht, esses contratos foram administrados apenas por Sepúlveda, os serviços de assessoria e estruturação financeira fornecidos pela First Capital e Westfield Capital foram efetivamente prestados, devidamente pagos, oficialmente contabilizados e seus valores estavam de acordo com as práticas de mercado.


Ela os considerava lícitos e por isso não os havia incluído na documentação entregue ao Ministério Público peruano. Quem os revelou foi a presidenta fujimorista da comissão parlamentar de inquérito da Lava Jato, Rosa Bartra, em clara retaliação a uma busca realizada em 7 de dezembro pela polícia em duas sedes de seu partido, atrás de provas da contabilidade paralela (caixa 2) do financiamento de suas campanhas.

Mesmo se ilícitos em algum grau, os contratos relacionados a PPK foram muito anteriores ao mandato (iniciado em julho de 2016) e seis dias seriam insuficientes para esclarecer os fatos e seu enquadramento jurídico. Sem mencionar que o caso empalidece ante os 29 milhões de dólares em doações e subornos flagrantemente ilegais admitidos pela Odebrecht no Peru de 2005 a 2014, dirigidos não só aos presidentes Alan García, Alejandro Toledo e Ollanta Humala, como também a Keiko Fujimori, principal beneficiária de sua deposição.

Só para ela teriam sido 5 milhões na campanha de 2011, na qual foi derrotada por Humala e mais outro tanto na de 2016, segundo fontes ouvidas pelo respeitado jornal peruano La República. Para justificar a destituição, recorreu-se a uma alínea constitucional que permite ao Congresso declarar a Presidência vaga por “incapacidade moral ou física” de seu ocupante.


Desta vez, porém, não funcionou. À primeira vista parecia fácil: eram necessários dois terços dos 130 deputados, ou 87 votos, mas o partido de PPK e seus aliados contavam apenas 25 deputados. Os três partidos que apresentaram a denúncia, Força Popular (fujimorista, com 71 deputados), Frente Ampla (esquerda, liderada nas eleições por Verónika Mendoza, com 20) e APRA (centro-esquerda, liderada pelo ex-presidente Alan García, com 5), somavam 96 e esperavam apoio de alguns dos demais deputados da oposição.

A crise rachou a Frente Ampla: enquanto dez deputados permaneceram com o líder da bancada Marco Arana e votaram com os fujimoristas, Verónika Mendoza criou um novo partido com outros dez, Novo Peru, e optou pela abstenção e neutralidade entre “golpistas” e “lobistas”. Mas a virada foi decidida pela divisão dos próprios fujimoristas.

Dos quatro filhos e filhas de Alberto Fujimori, Keiko, a primogênita, é a principal líder política, mas Kenji, o caçula, é visto como mais próximo do pai e do “núcleo duro” do fujimorismo. Keiko planejava destituir PPK, vencer as eleições a serem convocadas em seguida e indultar o pai, preso desde 2007 e condenado a 25 anos em vários processos, mas Kenji, provavelmente a pedido do pai, negociou a abstenção de seu grupo de dez deputados em troca do indulto imediato. O resultado foi 78 votos pelo afastamento do presidente, 19 contrários e 33 ausências e abstenções.

O preço foi pago: na véspera do Natal, o ex-ditador, internado um dia antes por uma suposta taquicardia, recebeu o “indulto humanitário” de PPK. Na sexta-feira 5, deixou a clínica onde estava e foi para casa. As reações negativas foram e continuam a ser veementes.

As penas que Fujimori cumpria pelo sequestro e assassinato de um professor e nove estudantes da universidade La Cantuta em 1992 e por desvio de recursos públicos para subornar congressistas, jornais e o ex-assessor Vladimiro Montesinos puniam apenas uma pequena fração de seus crimes, que incluem milhares de civis mortos e desaparecidos a pretexto do combate à guerrilha e a esterilização forçada de 236 mil mulheres para “combater a pobreza”.


Os ministros mais sérios renunciaram e milhares de peruanos participaram de manifestações de protesto contra o indulto, qualificado de “tapa na cara” das vítimas e testemunhas em documento dos chefes dos grupos de trabalho da ONU encarregados de desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais e promoção da verdade e justiça.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos também declarou que o indulto não cumpre com requisitos legais fundamentais, apesar de o governo PPK advertir que não acataria decisões de tribunais internacionais sobre o assunto. Em troca da expectativa de sobreviver formalmente no cargo até 2021, PPK oficializou sua condição de refém do ex-ditador e lhe entregou o poder de fato.


Fonte: https://www.cartacapital.com.br/revista/985/no-peru-um-golpe-pela-metade

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