'Chuva é cantoria na aldeia dos mortos', filme relevante que deve ser visto, conta uma bela história do povo indígena Khraô, do Tocantins, e vem precedido de mais de dez prêmios importantes de festivais estrangeiros; inclusive de Cannes de 2018
Esta semana estreou um dos mais belos filmes brasileiros do ano. Mas Chuva e cantoria na aldeia dos mortos nos chega apenas em meia dúzia de cinemas do Rio de Janeiro e de São Paulo, na véséra da celebração do Dia dos Povos Indígenas no país, data que de fato deveria lembrar e reforçar a identidade do indígena brasileiro – uma das mais fortes origens da nossa formação -, criada por decreto de Getúlio Vargas quase um século atrás, há 76 anos.
O filme do português de Lisboa, João Salaviza, e da brasileira de São Paulo, Renée Nader Messora, interpretado com rara sensibilidade pelos protagonistas Henrique Ihjãc Krahô e Kôtô Krahô, e mais dezenas de outros Krahô, da Aldeia de Pedra Branca, no Tocantins, vem espicaçar a memória nacional e cobrar apresentação menosprezada e tão modesta no calendário dos exibidores de filmes, dessa produção que traz na bagagem o Prêmio Especial do Júri da mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes do ano passado e nada menos do que mais outros 11 premios concedidos por 50 festivais por onde passou e foi aplaudido.
''Tempos perigosos esses que estamos vivendo'', advertiu Sonia Guajajara, líder indígena, ex-candidata a vice-presidente nas eleições do ano passado e formada em Enfermagem, Letras e Educação Especial pela Universidade Federal do Maranhão, durante audiência no Senado, em Brasília, ao ministrar uma aula de indigenismo à petulante senadora que a interpelava, vergonhosamente ignorante a respeito do tema.
''Para nós'', prosseguiu Guajajara nessa mesma semana da estreia de Chuva é cantoria na aldeia dos mortos, ''o território é sagrado; precisamos dele para existir. Vocês olham para a terra indígena e chamam de improdutiva. Nós chamamos de vida''.
Pois vida e morte do indígena é o tema que atravessa esse primeiro longa-metragem de Renée Messora e João Salaviza.
Vida e morte na tela e fora dela, durante essas últimas semanas em que líderes de diversas etnias sofreram atentados, em que aumentam os conflitos violentos e há um alerta ante os discursos alarmistas que prometem re-demarcação (melhor dizendo: invasões ou roubos) de terras para exploração indiscriminada, suspensão de direitos básicos e obrigatórios aos índios – assistência à saúde e educação –, esvaziamento das ações da FUNAI e repressão armada ao acampamento, em Brasília, da Marcha de Indígenas de todas as partes do país, realizada há 15 anos e marcada para esta próxima semana.
''Tudo tem um sentido. Paralisar a demarcação das terras ou rever as terras já demarcadas, para atingir num tiro certeiro na nossa identidade'', discursou Guajajara em paralelo à estreia da produção Portugal/Brasil ora em cartaz.
O roteiro do filme (de Renée e João) do filme é este: Ihjãc, jovem do povo Krahô, é surpreendido pela visita do espírito do falecido pai. Após a experiência, ele se sente obrigado a organizar a festa de fim de luto dele, uma comemoração tradicional da comunidade, ainda não realizada.
A primeira parte do filme, falada em idioma Khraô, transcorre na aldeia e na floresta em um ritmo de tempo ajustado à natureza primária. Respeita seus sons, movimentos e luzes. A câmera respeitosa da co-diretora respira junto com meneios das brisas nas árvores, o barulho discreto das águas e os ruídos de aves e animais. E os silêncios. Os tempos, as atmosferas e as imagens criam pura poesia. É uma janela aberta para o espírito.
A segunda parte, falada às vezes em português e em outras, em khraô, se passa na pequena cidade próxima para onde Ihjãc se refugia para escapar ao seu destino anunciado pelo velho pajé e rejeitando, ou adiando o dever de encerrar, com a festa, o luto de todos, na aldeia, pela morte do pai.
''O que mais aprendemos nessa relação com os Krahô'', afirma Renée em entrevista recente, ''foi respeitar o tempo das coisas. Você não pode controlar tudo. Na aldeia, o nosso filme era tão importante quanto lavar roupa, colher mandioca ou fazer reunião no pátio''.
O que nos ensina o pajé dos jovens Krahô no filme rodado ao longo de nove meses em negativo 16mm, na Aldeia Pedra Branca, Terra Indígena Krahô: a matéria da qual é feita a ''alma das coisas'' como observado.
''O filme é inspirado na história real de um jovem cineasta indígena com quem trabalhamos, '' comenta Renée. ''Ele começou a se sentir fraco e assustado porque um pajé tinha jogado um feitiço nele. Se ficasse na aldeia, achava que iria morrer. Então fugiu para a cidade''.
As filmagens foram precedidas por uma longa relação da diretora com o povo Krahô iniciada em 2009. Desde então, Renée (também fotógrafa do filme) trabalha com a comunidade
Ela participa na mobilização do coletivo de cinegrafistas indígenas Mentuwajê Guardiões da Cultura cujo objetivo é o de utilizar o audiovisual como instrumento para a autodeterminação e o fortalecimento da identidade cultural desse povo.
Todo esse tempo partilhado com os indígenas levou os realizadores à certeza de que não seria possível fazer esse filme no modelo de produção convencional.
O resultado é excelente. A experiência de assistir Cantoria é única, necessária e prazerosa embora seus realizadores sejam um pouco céticos em relação ao interesse e à sua repercussão no Brasil; ao contrário do que ocorre na Europa e entre as esquerdas e os ambientalistas americanos para os quais uma das referências mais fortes de trabalho é a do respeito aos povos originários.
E além do mais, ocorre lembrar a líder Sonia Guajajara, nesta semana de homenagem aos indígenas e aos Khraô, cm este filme. Como ela reitera, ''os indígenas brasileiros, hoje, se encontram na linha de frente como os primeiros a serem atacados porque o projeto do governo é de crescimento econômico com base em destruição''.
''Eles querem tirar a gente da frente. Para isso tudo vale'', ela alerta.
Fonte: Carta Maior
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