População enfrenta, nas ruas, o Estado de Emergência. O incrível caso do país que recorreu ao FMI sem precisar. O que ele revela sobre as duas direitas do século XXI, sua articulação em favor dos retrocessos e os caminhos para enfrentá-las.
Por Antonio Martins
O Equador está em chamas e agora qualquer prognóstico sobre o futuro imediato do país é incerto. Na quarta-feira (2/10), o governo anunciou abruptamente um conjunto de medidas impopulares, adotadas em sintonia com o FMI, e cujo item mais visível (mas não o mais importante) é o aumento de 123% nos preços dos combustíveis. A população, enfurecida, foi às ruas. Os transportes públicos pararam, por revolta tanto dos trabalhadores quanto dos empresários. A atividade nas escolas foi suspensa.
Ontem, sob intensa pressão, o presidente Lenin Moreno decretou Estado de Emergência. Mas a presença da polícia e do exército nas ruas não fez refluírem os manifestantes. À tarde, em Quito, eles rumaram para o Palácio Carondelet e enfrentaram as forças encarregadas de reprimi-los. O asfalto das ruas coalhou-se de pedras (veja no vídeo abaixo), usadas pela população (especialmente os muito jovens) para se defender da cavalaria e balas de borracha. Moreno deslocou-se a Guayaquil, no litoral, a pretexto de acalmar a maior cidade do país, onde houve saques. Mas, à noite, reconheceu que não fora capaz de chegar a um acordo com os transportadores. Classificou os que protestavam de “golpistas” e prometeu encarcerá-los. Mais ou menos à mesma hora, surgiram os primeiros sinais de que o movimento indígena, muito capilarizado, poderia somar-se à resistência. A dificuldade de prever os desdobramentos aumenta devido ao passado recente de instabilidade política no Equador. Entre 1997 e 2005, quatro presidentes foram depostos, após protestos populares desencadeados por medidas semelhantes às atuais. O país tranquilizou-se apenas em 2007, com Rafael Correa – que reverteu parte das políticas anteriores, foi reeleito com grande popularidade e governou por dez anos.
Por que seu sucessor arrisca-se tanto agora? Em inúmeros países, no passado recente, a adoção de medidas antipopulares tem sido apresentada como fatalidade – algo que os governantes veem-se constrangidos a fazer, na impossibilidade de manter a situação anterior. No Equador, sequer este argumento é possível. O acordo com o FMI, fechado em março e revisto em junho, não é o resgate doloroso em meio a uma crise. Expressa um acordo entre a elite equatoriana e a aristocracia financeira global para reverter, a seco, as conquistas sociais e a relativa independência econômica conquistadas no período de Correa. Demonstra que o discurso segundo o qual “não há alternativas” aos “ajustes” é apenas um artifício ideológico – pois pode ser dispensado, quando é preciso impor a disciplina sem disfarçá-la. E está sendo executado não por um troglodita, como Bolsonaro – mas por uma tecnocracia de punhos de renda. Nestes aspectos reside seu caráter espantoso e revelador.
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A decisão de submeter o Equador à ditadura dos mercados fica transparente quando se comparam dois momentos, Primeiro, junho de 2009. Num mundo em que a aristocracia financeira ainda se debatia com a grande crise financeira aberta no ano anterior, uma renegociação forçada da dívida de Quito foi vista como um sucesso. “Estratégia vitoriosa do Equador”, considerou um artigo da revista Economist, ao analisar o processo que Rafael Correa acabava de concluir, em tempo recorde.
Seis meses antes, após uma auditoria, ele considerara ilegítimos parte dos débitos externos do país. Mas por não ter forças para simplesmente repudiá-los, decidiu submetê-los a leilão. Os credores foram convidados a oferecer propostas para redução do que supostamente lhes era devido. Ao final do processo, 91% deles aceitaram descontar 65% de seus créditos – um claro sinal de que têm muita gordura a cortar. O Equador resgatou, por US$ 900 milhões, uma suposta dívida de US$ 2,9 bi. Pagou em dinheiro.
O corte da dívida e, em especial, do pagamento de juros, foi parte essencial da “Revolução Cidadã” de Correa. A redução do desembolso aos credores permitiu multiplicar o gasto social – que saltou de 560 milhões de dólares, em 2000, para US$ 4,3 bi, em 2011 – um crescimento de 410%. Todos os indicadores sociais e econômicos melhoraram. Entre 2007 e 2015, o PIB per capita avançou 35% – de US$ 4500 para US$ 6100. O desemprego encolheu de 10,6% para 4,1%. Em 1999, 80% dos equatorianos estavam abaixo da chamada “linha de pobreza”. Em 2012, este percentual caíra para 30%.
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O segundo momento é o que se segue à posse de Lenin Moreno, em maio de 2017. Vice de Rafael Correa em seus dois mandatos, mas personagem político discreto, ele elegeu-se impulsionado pela popularidade de seu antecessor. Mas, poucos meses depois de chegar ao Palácio Carondelet, executou uma guinada radical, cujas motivações exatas ainda resta investigar – mas cujo sentido é claro: obediência, em marcha batida, ao novo programa das elites globais.
Em janeiro de 2018, Moreno adere à perseguição a Julian Assange, exilado na embaixada equatoriana em Londres. O processo terminaria por entregar, às autoridades do Reino Unido e dos EUA, o dissidente político que revelou a vigilância global e os crimes de guerra praticados por Washington. No mesmo ano, tenta encarcerar Rafael Correa, seu antecessor e padrinho político – que se exila na Bélgica. Em março de 2019, retira o Equador da Unasul, embrião de possível unidade dos países sulamericanos. Em outubro, anuncia que deixará a OPEP, união dos exportadores de petróleo. Todos os passos interessam aos Estados Unidos.
Mas de todas, a medida mais bizarra é provavelmente o acordo com o FMI. O empréstimo oferecido pelo Fundo é pífio – apenas 4,2 bilhões de dólares, Ainda mais estranho: o país não necessita de resgate algum, como demonstra o economista Andres Araus, do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, de Washington: o balanço de pagamentos é superavitário, a economia não está em crise, não há fuga de capitais; a dívida externa foi fortemente reduzida, na renegociação forçada de 2009; exportador de petróleo, o Equador não corre, sequer, o risco de ser ameaçado, numa eventual alta dos preços do combustível, vista por muitos economistas como provável, em futuro breve.
O compromisso expressa, muito mais, um conluio entre a elite equatoriana e a aristocracia financeira internacional. Cada uma delas terá seu quinhão, no botim produzido pelos retrocessos que virão. O povo equatoriano pagará a conta – e o aumento dos preços dos combustíveis, embora chamativo, é talvez a medida menos relevante.
No plano interno, haverá uma contrarreforma trabalhista, não submetida ao Congresso. Ela inclui permissão de jornadas de até 12 horas, sem pagamento de extras; extensão do período de “experiência” (no qual há menos direitos) de 3 meses para… 3 anos!; fim dos acréscimos salariais para contratações por tempo limitado; eliminação dos “fundos de contingência” (uma espécie de abono) e da participação dos trabalhadores no lucro das empresas; redução nos salários dos servidores públicos: demissão dos funcionários contratados temporariamente; elevação (de 12% para 16%) do imposto sobre consumo, semelhante ao ICMS brasileiro, com reflexos diretos sobre os preços de todos os produtos e serviços.
Às megacorporações globais, será permitido apoderar-se dos setores cruciais da economia, a preços aviltados. Haverá privatização geral, inclusive do maior banco do país e da operadora nacional de telecomunicações; venda das hidrelétricas ao setor privado; volta da “autonomia” do Banco Central; proibição de financiamentos de bancos equatorianos ao setor público, obrigado a recorrer a financiamentos externos.
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Um texto de Sérgio Halimi e Pierre Rimbert, publicado ontem por Outras Palavras, agrega mais uma peça ao quebra-cabeças que vai aos poucos desvendando o áspero cenário internacional surgido nesta década. A ascensão do protofascismo – os Trump, Bolsonaro, Salvini, Le Pen, Duterte, Orbán e tantos outros – não deve ser vista como resultado da maquinação de personagens como Steven Bannon. Tais tipos são oportunistas espertos, mas totalmente secundários. O grande fenômeno a observar é o imenso espaço político que se abriu, a partir da crise global de 2008. A aristocracia financeira e a quase totalidade dos governos responderam de maneira cínica. As maiorias empobreceram dramaticamente. As classes médias começaram a se desfazer, aceleradamente. Os serviços públicos foram sucateados. Enquanto isso, os Estados transferiram rios de dinheiro aos bancos.
O ressentimento era inevitável. Mas como a esquerda não apresentou alternativas, em quase parte alguma, este sentimento foi capturado por políticos que tiveram farto espaço para uma manobra grotesca. Eles atribuíram a desigualdade abissal que surgiu não ao domínio do capital financeiro, mas a uma suposta ditadura intelectual. Dos que tiveram a oportunidade de estudar. Dos que desejam olhar para o outro – o imigrante, o refugiado, o indígena. Dos que veem gênero e sexo além da genética. Dos que enxergam as religiões como construções simbólicas, não como portadoras de verdades divinas.
Esta “nova” ultradireita irrompeu tão inesperadamente, e provoca danos tão dramáticos, que muitas vezes somos tentados a vê-la como a causa dos grandes dramas contemporâneos. Na verdade, mostram Halimi e Rimbert, ela é sintoma. Prova eloquente é que tanto a “nova” corrente quanto os neoliberais são partidários de um único dogma econômico: a supremacia dos mercados sobre as sociedades – defendida indistintamente por Trump e Emmanuel Macron; Bolsonaro e Paulo Guedes; Steven Bannon e George Soros.
O desastre equatoriano parece demonstrar que não basta reagir aos Bolsonaros – a devastação virá igualmente pelas mãos de Christine Lagarde, a charmosa diretora-gerente do FMI. Falta um projeto de esquerda renovado, capaz de aparecer, às sociedades, como alternativa nítida. Por enquanto, ele existe apenas como pedras, atiradas contra a cavalaria, as balas e o Estado de Emergência de Lenin Moreno. É preciso dar-lhe a forma das ideias perigosas.
Fonte: Outras Palavras
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