Com dois terços da população abaixo da linha da pobreza, país caribenho assolado pela corrupção está paralisado em meio a protestos e greves. Oposição exige renúncia do presidente Moïse e uma mudança radical no sistema.
André Michel chega uma hora atrasado para a entrevista em seu escritório no centro da capital haitiana, Porto Príncipe. Evitar bloqueios de ruas e possíveis emboscadas se tornaram parte do cotidiano do advogado, que há um ano vem sofrendo ameaças de morte.
A razão está em um grosso dossiê sobre sua mesa, entre as capas de papelão amarelo: o caso Petrocaribe, provavelmente o maior escândalo de corrupção da história recente, que levou Michel a entrar com um processo na Justiça contra o presidente haitiano, Jovenel Moïse.
Desde então, o Haiti vive em estado de emergência. A população se levantou contra o governo e paralisou o país com manifestações e greves, às quais, por vezes, a própria polícia se junta. "Pays lock", ou "país bloqueado": assim é chamada a situação no idioma local.
Criminosos bloqueiam estradas e exigem pedágio ou roubam os passantes. Até mesmo a ONU, que alerta sobre a emergência humanitária no país, distribui ajuda apenas por via aérea. Mais de 40 pessoas morreram nos protestos. "O Estado fracassou, o presidente está preso em seu palácio", diz Michel em entrevista à DW.
No centro do escândalo de corrupção está uma aliança petrolífera entre a Venezuela e países caribenhos, a Petrocaribe. Desde 2009, Caracas já enviou mais de 4 bilhões de dólares em ajuda ao Haiti sob o programa.
Dezenas de projetos, incluindo uma nova sede do Parlamento, um novo mercado em Fontamara, um hospital e escolas, foram financiados, mas ficaram pela metade ou sequer foram construídos. O escândalo envolve ao menos quatro presidentes e membros de seus respectivos governos.
Após pressão da população, o Tribunal de Contas concluiu que o dinheiro sumiu. Segundo o relatório de Michel, as verbas estariam nos bolsos de políticos e empresários haitianos e estrangeiros, especialmente do ramo da construção e da importação da vizinha República Dominicana.
Também aparecem no dossiê as empresas Agritrans e Comphener, do atual presidente Moïse, implicadas, entre outros casos, na instalação de lanternas solares superfaturadas.
Moïse, popularmente conhecido como "homem banana", é apadrinhado político do ex-presidente Michel Martelly, que governou o país de 2011 a 2016 como protegido dos Estados Unidos e que supervisionou a maior parte da ajuda financeira para a reconstrução do país após o terremoto de 2010.
Martelly é cantor profissional, e uma de suas canções mais antigas e populares descreve o Haiti como um clássico Estado saqueado, ferido impunemente por uma elite que se apossou de todas as suas instituições.
Os limites entre a legalidade e o crime, entre a violência e a política, estão cada vez mais nebulosos. O Haiti importa quase tudo – de cimento e móveis até alimentos essenciais como ovos e arroz.
Muitas empresas de importação são controladas ou protegidas por políticos. A maioria dos produtos é contrabandeado pela alfândega, de acordo com uma investigação do think tank Centro de Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS). "Isso prejudica não apenas as finanças públicas, mas também a autoridade e o controle do Estado", afirmou Mark Schneider, do CSIS, em entrevista à DW.
O advogado Michel se aventurou em um campo minado de redes políticas mafiosas. Mas ele não está só: estudantes, artistas e músicos iniciaram uma campanha nas redes sociais chamada #Petrocaribechallenge (Desafio Petrocaribe), através da qual as informações se espalham com enorme rapidez. Foi a faísca que fez explodir o barril de dinamite.
Protesto em Porto Príncipe pedindo a renúncia do presidente Jovenel Moïse
Abismo social
"O sistema já estava em crise devido a um forte crescimento populacional e à falta de modernização econômica. O descontentamento era grande com a inflação, o desemprego e o aumento da pobreza", afirma o ex-ministro Paul Gustave Magloire.
Dois terços dos haitianos vivem abaixo da linha da pobreza, enquanto as classes mais altas viajam em jatos particulares para fazer compras em Miami.
"A corrupção e a impunidade aprofundaram as divisões sociais", afirma Velina Charlier, de 39 anos. Ela estudou marketing no Canadá e agora administra uma empresa de gás de cozinha, além de liderar a organização Nou pap domi (Nós não dormimos), uma das principais forças por trás dos protestos.
Moïse fez repetidas ofertas para abrir negociações ou formar um governo de unidade nacional, mas ele não conta com a confiança da oposição. "Pedimos sua renúncia, um processo anticorrupção e uma mudança radical no sistema", diz Charlier, listando o conjunto de exigências acordado pela oposição fortemente fragmentada.
Ainda assim, o governo americano permanece ao lado do desacreditado Moïse. Segundo Schneider, isso ocorre, por um lado, porque Washington subestima o caráter explosivo da situação e, por outro, porque o presidente haitiano se mantém diplomaticamente em defesa dos interesses americanos. Mas também por não haver clareza sobre o que poderá acontecer no país caribenho.
Em janeiro terminam os mandatos de cerca de um terço dos membros do Congresso, o que significa que não haverá um Parlamento em exercício, permitindo teoricamente que Moïse governe por decreto. "A população não vai aceitar isso", afirma Charlier, que prevê uma piora na crise. Ela defende a instalação de um governo interino coletivo.
Cada vez mais membros do partido Tèt Kale, que serviu como plataforma para Moïse e Martelly, dão as costas para o atual presidente na tentativa de tirar as cordas de seus próprios pescoços.
A comunidade internacional, que nas últimas décadas reagiu com rapidez oferecendo soluções práticas e ajuda humanitária, adotou o silêncio. O fracasso do Haiti também é o fracasso da comunidade internacional. A justificativa da "fadiga haitiana", suposto esgotamento com o tema Haiti, circula nos meios diplomáticos.
Para Charlier, é até melhor que isso ocorra. "A ONU nos fez mais mal do que bem. Nós, haitianos, temos de resolver nossos problemas sozinhos."
Fonte: DW Notícias
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