'Atlantique', disponível na Netflix, é uma bela combinação de realismo social, história de amor, investigação policial e conto fantástico.
Por Carlos Alberto Mattos
Atlantique, disponível na Netflix, foi o primeiro filme de uma diretora negra a disputar a Palma de Ouro em Cannes. Levou o segundo prêmio, o Grand Prix, e concorre pelo Senegal ao Oscar Internacional. É também o primeiro longa da francesa Mati Diop, sobrinha do grande mestre senegalês Djibril Diop Mambéty. Uma estreia de grande fôlego pela maneira como entrelaça diversos gêneros num filme coeso e ao mesmo tempo surpreendente.
Tudo começa em chave de realismo social, com os empregados na construção de uma grande torre em Dakar se revoltando contra o atraso no pagamento dos seus salários. Logo em seguida, passamos a uma etérea história de amor entre um dos operários, Souleiman (Ibrahima Traoré), e a jovem Ada (Mame Bineta Sane, uma bela descoberta da diretora). Ada, porém, está prometida pela família a um rapaz rico, a quem não ama.
A história muda novamente de pele quando, sem aviso prévio, o grupo de operários parte num barco de refugiados rumo à Espanha, Souleiman entre eles. Deprimida, Ada submete-se ao casamento, mas eis que na noite de núpcias um estranho incêndio altera o rumo de tudo. Daí em diante, uma investigação policial se mistura com um conto sobrenatural, numa combinação que estaria fadada ao fracasso se não fosse tão bem conduzida.
Mati Diop demonstra, ao mesmo tempo, segurança, ousadia e equilíbrio ao lidar com tantos ingredientes díspares. O clima de irrealismo se insinua desde cedo, primeiramente pela trilha sonora quase subliminar da kuwaitiana Fatima Al Qadiri. Depois, pela introdução de um mal estar que afeta alguns personagens. O resto fica por conta da fabulação africana com suas variações de possessão fantasmática.
Na esfera social, além de aludir à exploração da mão de obra popular, Atlantique expõe os reflexos da divisão religiosa do Senegal no comportamento dos jovens, colocando Ada entre os rigores muçulmanos e a liberalidade dos jovens laicos. Em nenhum momento esses temas são sublinhados desnecessariamente, ficando antes à mercê de uma história que se desenvolve de maneira orgânica, apesar do componente fantástico.
Outra beleza do filme é a presença do oceano, que fornece o título e o mote deflagrador, mas limita-se a aparecer como uma sugestão, uma força mística que atrai e expulsa. O mar está sempre à vista, a condição dos refugiados é uma latência permanente, mas tudo o que sabemos é através dos que ficaram em terra, à espera de um milagre.
Fonte: Carta Maior
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