Presidente Bolsonaro resgatou a matéria do esconderijo das latrinas para lançá-lo como questão ambiental.
“Cocô” saiu dos esgotos e foi manchete de jornal no Brasil. Presidente Bolsonaro resgatou a matéria do esconderijo das latrinas para lançá-lo como questão ambiental. Primeiro, sugeriu um disciplinamento do intestino como forma de proteção ao meio-ambiente: “dia sim, dia não” é como se deve defecar para o progresso do país. Segundo, pressionado pelas contínuas investidas em territórios indígenas, ironizou que “cocozinho petrificado” de um índio deixaria a terra inútil para exploração econômica. É certo que é possível entender suas tolices como distrações autoritárias do poder, o “ridículo político”, descrito por Márcia Tiburi: enquanto se discute o inominável na esfera pública, políticas ambientais avançam no desmatamento e espoliação de terras indígenas.
O diversionismo vulgar de Bolsonaro é também discurso espontâneo, pois é como dejeto humano que entende as nações indígenas. Há assim uma metonímia ideológica na repetição tola de “cocô” ao falar de meio-ambiente: é uma forma de desumanização dos indígenas. Mas como a vida política é caótica, os eventos históricos podem ser simplificados e tomados como “causa e consequência” dos abusos do poder. Na mesma semana em que Bolsonaro se deliciava com o palavreado de banheiro, 2 mil mulheres indígenas, de 120 povos, se reuniram em Brasília para a primeira marcha de mulheres indígenas da história do país: “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Como se não bastasse a ousadia da marcha, vieram em aliança com outras 100 mil mulheres trabalhadoras rurais para a Marcha das Margaridas, considerada a maior movimentação permanente das mulheres latino-americanas. Ro’Otsitsina Xavante não se define como líder, mas como uma porta-voz do movimento e assim descreveu o encontro: “Queremos compor com as Margaridas para mostrar aliança”.
A aliança começará por onde o projeto histórico de propriedade do patriarcado nunca deixou de operar na América Latina: mulheres indígenas e rurais estão entre as principais vítimas dos “crimes do patriarcado”, como nomeia Rita Segato. Ao marcharem juntas, elas desafiaram o mandonismo patriarcal que as descreve como resíduo da história e do humano ou mesmo as regras comunitárias restritivas sobre a participação de mulheres no “mundo dos brancos”. Na marcha, as mulheres indígenas elegeram um espaço do “poder branco” para ocupar: o prédio do Ministério da Saúde, onde se definem as políticas de saúde indígena. A ocupação tem um aceno trágico, pois a matança indígena se deu por duas vias na história dos países latino-americanos: pelas doenças dos brancos e pela exploração do meio-ambiente.
A espoliação dos corpos indígenas é uma extensão da desapropriação dos territórios pelo avanço do capital: os territórios indígenas são descritos como “terras inexploradas”, e o imperativo de conquista se alinha à ordem patriarcal do poder. A expressão “colonialidade do poder” se assentou na literatura crítica latino-americana para descrever a interseção entre capitalismo e racismo nas formas de governo de nossos países: um projeto de modernidade se consolidou tendo o racismo como eixo organizador da exploração. Rita Segato prefere nomeá-lo como “conquistalidade do poder”, um mandato masculino de feudalização dos territórios que nunca terminou – é um projeto histórico de propriedade racista e patriarcal. É nesse marco de poder depredatório colonial que líderes fascistas ganham contornos particulares na guerra às mulheres e ao meio-ambiente: os crimes do patriarcado já estavam instalados na América Latina como marco de poder antes do alastramento da ordem global misógina.
Se o patriarcado da conquista se perpetuou pela posse e pelo mandonismo, foi também pela ordem religiosa católica-evangélica e militar de nossos países. Mulheres indígenas e rurais vem sendo testemunhas dessa permanente espoliação da vida, por isso os índices alarmantes de violência doméstica e feminicídio de países tão diferentes quanto México, Bolívia ou Brasil. Se das mulheres indígenas e rurais veio o grito “estamos unidas e não vamos nos calar”, cabe às mulheres do “mundo dos brancos” a escuta e o pedido de licença para participar da união que se inicia. É em torno da “questão de gênero”, segundo Segato, que todas as outras formas de poder gravitam. Será exatamente daí que narrativas inesperadas sobre a perversidade do poder patriarcal racista surgirão para a transformação política.
Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown
Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR
Fonte: El País
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