Filme sobre emblemático caso julgado pela Suprema Corte americana mostra a pressão que a política pode exercer sobre o chamado espírito das leis.
A maior luta de Muhammad Ali* é um título de mentira do filme Muhammad Ali's Greatest Fight dirigido pelo competente diretor inglês Stephen Frears – que se tornou famoso para as grandes platéias quando lançou o fascinante 'Ligações perigosas', em 1988. Foi produzido pelo canal HBO e lançado diretamente na TV sem passar pela telona. Nele, não há qualquer traço biográfico do maior boxeador que já pisou nos ringues americanos. Exceto o episódio retratado no qual não é ele o protagonista convencional, mas sim os juízes que vão condená-lo ou absolvê-lo.
Apesar da sua mensagem moralista à moda de Washington o filme de Frears vale a pena ser visto para nos perguntarmos mais uma vez: a objetividade e a frieza das leis se sobrepõem mesmo à medida humana e às emoções e aos valores aculturados dos indivíduos? E será real a venda da Justiça, essa vestal teórica, inatacável e irrepreensível diante das circunstâncias e dos eventos políticos que estão sempre a assediá-la?
Até onde interferem as ideologias dos ministros supremos; em qualquer parte do mundo? E esse tipo de tribunal supremo que se pergunta, ''se a Corte não protege os direitos do povo, quem o fará?''. Uma das grandes perguntas do filme de Frears.
A história é esta: em 1967, em plena virada do mundo ocidental se deslocando numa direção mais aberta, mais solidária e menos injusta, o boxeador e campeão peso pesado Muhammad Ali (Classius Clay, antes de se converter ao Islã) se recusa a entrar para o exército americano e ir para a guerra do Vietnã quando convocado. Invoca um obstáculo de consciência. Segundo a sua religião, ele não poderia participar de conflitos armados.
Por causa da recusa, Ali seria preso durante cinco anos. Antes, teve cassados o título de campeão mundial e a licença para lutar nos Estados Unidos Seus advogados apelaram e o caso, de intensa repercussão mundial na época, foi parar na Suprema Corte americana onde a idade média de seus nove ministros era de 71 anos.
Egressos de um mundo em vias de desaparecer - repressor, ultrapassado, racista e conservador – esses ministros, todos homens, um negro (o progressista e irreverente Thurgood Marshall, nomeado por Lyndon Johnson, primeiro afro-americano a fazer parte do tribunal) e oito colegas brancos, se dividiam entre democratas e republicanos.
No dizer corrente da época, eram ''nove escorpiões dentro de uma garrafa''.
Avaliavam o chamado ''espírito da lei'' com um olho, mas tinham o outro nas políticas de Richard Nixon, amigo pessoal do presidente da Corte, Warren Burger, como mostra o filme, com quem trocava telefonemas íntimos.
O insubmisso Muhammad Ali é o símbolo e a representação maior de um mundo em mudança.
No meio desse embate de escorpiões (opa!, de profissionais) o filme de Frears brilha quando entra nos bastidores das reuniões do grupo dos nove ministros supremos alguns deles interpretados por gigantes da arte cênica. Christopher Plummer, Frank Langella, Dany Glover, Barry Levinson, Ed Begley Jr.
O roteiro da escritora Shaw Slovo é outro trunfo da produção. Rápido, bem humorado, crítico, o trabalho de Slovo acerta quando não vê limites em observações que coloca na boca de seus personagens (reais).
Quando os supremos discutem a independência do tribunal: ''Nós contornamos certas questões quando queremos certos resultados"... Ou: ''... (o caso Muhammad) é muito complexo... não queremos que saiam por aí dizendo que houve uma base política para decidirmos ... ele deve ter toda proteção de um processo legal...''.
Nos intervalos das reuniões, vemos discretas sessões de filmes pornôs para distrair os ministros no porão do vetusto edifício da Suprema Corte. Ou filigranas apontadas pelo decano chief justice Warren Burger/Frank Langella: ''A nossa mesa de audiências está errada. Vamos mudar o desenho dela para que possamos nos ver e ouvir melhor''.
Enquanto isto, jovens assessores dos gabinetes, progressistas ou filhos da casa grande, egressos das universidades de primeira, segunda ou terceira classe americana, em começo de carreira, se estapeavam, defendendo posições políticas, nos corredores da Suprema.
Enquanto isto, lá fora o Vietnã transformava o mundo.
*Filme completo e legendado em HBO GO.
Fonte: Carta Maior
Comments