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“Outra América” nas origens de Trump e Bolsonaro

Cientista político e ativista norte-americano mostrou como a “camuflagem da pobreza” criava, desde os anos 1950, uma legião de ressentidos. Quando as dificuldades se espalharam, explodiu a desagregação social e de afeto — e abriu-se espaço para os demagogos.

Por Roberto Moll, no Boletim Lua Nova

Por Roberto Moll, no Boletim Lua Nova


Nos longínquos anos 1960, Michael Harrington (1928 – 1989) publicou um livro crucial para entender a América de Donald Trump e, talvez, o Brasil de Jair Bolsonaro. Pouco conhecido por aqui, Harrington foi um ativista político socialista e professor de Ciência Política no Queens College da City University (CUNY), onde em sua homenagem está o The Michael Harrington Center for Democratic Values and Social Change. Em 1962, publicou sua obra prima: “A Outra América: Pobreza nos Estados Unidos”. No Brasil, a Editora Civilização Brasileira publicou uma versão traduzida no ano seguinte.  A atualidade do “A Outra América” é impressionante sob, ao menos, dois aspectos: a conformação de um novo tipo de pobreza, camuflada no consumismo, que provoca rejeição às instituições políticas e, em última instância, à democracia como via de transformação social; e o surgimento do Socialismo Democrático.


No início dos anos 1960, o sonho americano parecia estar ao alcance de todos. Era o ápice do que John Kenneth Galbraith chamou de “Sociedade Afluente”. Entre 1945 e 1970, os Estados Unidos da América (EUA) experimentaram um grande crescimento econômico, expansão da classe média, uma economia regulada, pleno emprego e políticas públicas de Bem-Estar-Social e Seguridade. Mesmo no setor privado, o famoso Pacto de Detroit entre os barões do setor automobilístico e os sindicatos garantiu recomposição salarial, seguro saúde e outros benefícios sociais para quase todos os estadunidenses. Em paralelo, a crescente industrialização exacerbou a qualidade de vida das famílias com a expansão dos automóveis, a construção dos subúrbios de classe média e o uso de máquinas para auxiliar os serviços domésticos, como lavadoras e geladeiras. Consequentemente, diminuiu o tempo de deslocamento entre o trabalho e a casa e as horas destinadas ao serviço doméstico, aumentando a produtividade e a disposição para passar horas em frente ao televisor, onde as propagandas alimentavam novos sonhos de consumo.


O mito da “América Afluente” resiste até hoje. Mas, em meio ao encantamento, Michael Harrington contou a história real de uma “Outra América”. Viu e descreveu um país com 50 milhões de pobres. Uma “Outra América” quase invisível habitada por operários não especializados de fábricas pequenas e improvisadas, trabalhadores rurais e minorias, que não tinham acesso adequado à habitação, educação, assistência médica e alimentação balanceada. Os mitos e as belezas naturais camuflavam a pobreza da “Outra América” para turistas, estadunidenses ou estrangeiros. Os guetos escondiam os negros pobres, que raramente frequentavam outros bairros. As casas ocultavam idosos solitários na “Outra América” com pouquíssima ou nenhuma assistência. As novas rodovias contornavam a pobreza da “Outra América” para levar os moradores dos subúrbios ricos para os escritórios nos centros das cidades. O consumo de roupas e alimentação barata mascarava as famílias pobres da “Outra América” sob indumentária da moda e gordura pouco saudável. E, assim, as famílias de classe média nutriam uma ignorância bem-intencionada sobre os pobres da “Outra América”.


A pobreza da “Outra América” tinha causas sociais enraizadas na “América Afluente”. Os pobres estavam naquela condição há muito tempo porque não trabalhavam nas fábricas sindicalizadas e não atendiam aos requisitos mínimos para acessar nem os programas de seguridade, nem as políticas públicas e os benefícios advindos dos acordos trabalhistas. Estavam em regiões esquecidas, sem investimento público ou privado, e não conseguiam embarcar na sociedade de consumo e no fluxo de mobilidade social. Ou estavam retornando à “Outra América” porque não tiveram a chance de aprender a manipular as novas máquinas.


Mas a “América Afluente” retratou a pobreza da “Outra América” como resultado de um fracasso individual e perpetuou um ciclo vicioso. Em uma sociedade marcada pela afluência e pelas oportunidades, os pobres da “Outra América” foram considerados responsáveis pelo próprio fracasso porque não tinham caráter, não queriam trabalhar. Portanto, nenhuma política pública poderia acabar com essa pobreza. Esta percepção equivocada promoveu um ciclo vicioso no qual a pobreza era fruto de problemas sociais, mas, era tratada como uma determinação individual; as questões sociais não eram resolvidas; os pobres ficavam ainda mais pobres e as privações eram agravadas. Este ciclo vicioso promoveu insegurança econômica e social com baixos níveis de aspiração e confiança nos outros, doenças psicossociais, obesidade, violência e uso de drogas lícitas e ilícitas. Assim, a pobreza na “Outra América” atingiu diretamente a capacidade de produzir e reproduzir afeto, mesmo com resistências. Provocou instabilidade e desagregação social das famílias e comunidades. Gerou ceticismo e contrariedade sobre organizações sociais coletivas, principalmente o Estado e as instituições políticas diante da paralisia e ineficiência. Tomou as políticas públicas, os programas sociais e a seguridade como inúteis. Em especial, provocou uma decepção enorme em relação à educação.


Para pôr fim à pobreza e aos seus efeitos cíclicos desagregadores na “Outra América”, Harrington propôs genericamente o embrião do que ficaria conhecido como “Socialismo Democrático”, medidas custeadas pela “América Afluente” para consolidar e aprimorar os programas de bem-estar-social de forma profunda, ampla e articulada. Harrington sugeriu que o ponto de partida deveria ser a habitação, com a melhoria dos bairros e da infraestrutura para garantir a execução das políticas públicas e programas sociais nas comunidades pobres. Por exemplo, a construção de clínicas e hospitais nos bairros seria a pedra fundamental para criação de um sistema público e universal de saúde. Com isso, seria possível articular a criação de empregos e provocar a expansão dos salários mínimos. Além disso, Harrington também propôs a universalização da seguridade social e uma legislação para garantir os direitos civis das minorias.


Para Harrington, o governo federal era a única instituição capaz de assumir esta tarefa porque tinha capacidade de investimento, planejamento econômico e coordenação de múltiplas instituições com alcance em todo território. As instituições privadas não tinham recursos suficientes. No máximo, conseguiriam atenuar a pobreza com soluções criativas, mas ineficientes. As grandes corporações não tinham nenhum interesse em acabar com a pobreza na “Outra América” porque preferiam manter uma fração da sociedade no submundo da economia, como fonte de mão de obra barata, alimentando a “América Afluente”. Com eles, os ideólogos reacionários viviam em função de aprimorar e defender ideologias contrárias ao Estado porque sabiam que combater a pobreza é uma tarefa que só pode ser realizada com a ampliação das políticas públicas, dos programas sociais e da seguridade. De acordo com Harrington, os reacionários não sabiam o que é a pobreza. Os ideólogos liberais acreditavam que a pobreza seria solucionada naturalmente, com desenvolvimento econômico. Não levavam em consideração que o crescimento da produtividade e o incremento dos rendimentos monetários não significavam automaticamente e, em todos os casos, o fim da pobreza. Harrington lembrou que mesmo em condições favoráveis, o desenvolvimento econômico promoveu riqueza muito mais rápido e em maiores quantidades para os ricos. Os pobres precisavam esperar muito mais tempo para sair da pobreza.


A obra de Harrington teve impacto significativo sobre os governos de John Kennedy (1961-1963) e Lyndon Johnson (1963-1969), principalmente como estímulo para a Guerra Contra a Pobreza, um projeto amplo para acabar com a pobreza nos EUA através da ampliação do impacto dos programas de bem-estar-social e da seguridade. A partir desse momento, a análise de Harrington virou profecia. As forças reacionárias e liberais deterministas colocaram freios na Guerra Contra a Pobreza. Com isso, no bojo da crise econômica da década de 1970, a “Outra América” cresceu e emergiu junto com a pobreza e a precariedade. O fim do “sonho americano” ficou evidente. A desesperança, a insegurança econômica e social, as doenças psicossociais, a obesidade, a violência, o consumo de drogas lícitas e ilícitas e, até mesmo, chacinas escolares viraram epidemias. E varreram, definitivamente, o afeto e acentuaram a desagregação das famílias e comunidades.


Paradoxalmente, a pobreza da “Outra América” conformou uma força política antipolítica. Imbuídos de desconfiança e pessimismo, muitos estadunidenses adotaram uma perspectiva negativa sobre o Estado e as instituições políticas que, por décadas, negligenciaram os problemas da pobreza invisível em nome de interesses privados e específicos. De forma geral, repudiaram os programas sociais, as políticas públicas e a seguridade como investimentos inúteis, inclusive a educação, as escolas e, até mesmo, o conhecimento. Em especial, pobres brancos, em regiões tradicionalmente envoltas em tensões raciais e preconceitos estruturais agudos, aguçaram os ressentimentos contra o Estado e as instituições políticas que, alegadamente, se voltaram apenas para retirar as minorias da pobreza. Em última instância, muitos estadunidenses rejeitaram a política e a democracia como espaço e ferramenta de transformação social. Na prática, esse quadro se traduziu em um arrefecimento das mobilizações sociais, diminuição da aderência aos sindicatos, encolhimento da adesão aos partidos e, principalmente, abstenção eleitoral. E, abriu as portas para políticos e neoconservadores e neoliberais como Reagan, Bushs, Clintons e Trump e seus respectivos ideólogos apresentarem justamente projetos que prometiam o fim da pobreza com soluções mágicas e demagógicas, calcadas na moralidade e/ou na natureza determinista do mercado como chave de superação da pobreza.


Harrington nunca desistiu de combater a pobreza e seus efeitos desagregadores. Em 1973, fundou o Democratic Socialist Organizing Comittee (DSOC), que mais tarde se transformaria no Democratic Socialist of America (DSA). Durante sua vida, Harrington fez centenas de discursos anuais em campi universitários, sindicatos e comícios públicos, oferecendo aos ouvintes um acurado senso do contexto histórico, uma crítica moral ao capitalismo e as vantagens práticas do socialismo democrático. Mesmo muito criticado, sempre propôs uma aliança entre o DSA e o Partido Democrata. Harrington reconheceu que em um sistema político enraizado no voto distrital e calcado no financiamento privado, os partidos precisam de muitos recursos e estrutura para estabelecer candidatos e bases em todos os distritos nacionais. Portanto, a estratégia de Harrington visava conquistar o Partido Democrata de dentro para fora e utilizar a máquina democrata para lançar uma candidatura que fale pela “Outra América” para combater a pobreza e a desigualdade. O próprio Harrington cogitou se candidatar em 1980. Até os últimos dias de vida, Harrington escreveu e militou por um Socialismo Democrático, mesmo nos momentos menos auspiciosos. Trinta anos após a morte de Harrington, Bernie Sanders conseguiu alavancar o Socialismo Democrático como um projeto nacional. O DSA cresceu de aproximadamente 5.000 membros em 2016 para aproximadamente 60.000 membros em 2019. E o Partido Democrata vem se transformando, ainda que com muita objeção.


No Brasil recente, no início do século XXI, as políticas de incentivo ao desenvolvimento econômico e ao consumo geraram um fenômeno parecido, em suas devidas proporções, à conformação da sociedade afluente estadunidense. A expansão do emprego, dos salários e do consumo camuflou uma pobreza persistente, um “Outro Brasil”, negligenciado pelo Estado e pelas instituições políticas. Com a crise global de commodities em 2013, esse “Outro Brasil” ficou maior e mais evidente. Emergiu com todas as suas contradições. De forma muito mais rápida e intensa do que nos EUA e com algumas especificidades periféricas, essa pobreza provocou efeitos desagregadores e aprofundou problemas estruturais históricos. A pobreza do “Outro Brasil” elevou a insegurança econômica e social, o ceticismo sobre a natureza e a capacidade humana varrendo o afeto e a empatia. Provocou rejeição ao Estado e às instituições políticas como motores de superação da pobreza e das desigualdades através de programas sociais e de seguridade. Acentuou um racismo estrutural agudo que alimentou ressentimentos contra o Estado e as instituições políticas, supostamente, voltados para privilegiar minorias.


Promoveu ataques à educação, às escolas e, até mesmo, ao conhecimento. E, em última instância, produziu uma rejeição à política e à democracia. Tal e qual nos EUA, esse quadro se traduziu em rejeição aos sindicatos e aos partidos e, sobretudo, abstenção eleitoral, mesmo em um sistema político de voto obrigatório. Com isso, abriu as portas para políticos e ideólogos reacionários com suas soluções mágicas e demagógicas. Mas, diferente dos EUA, poucos políticos parecem ter compreendido a necessidade de falar e representar esse “Outro Brasil”.


Fonte: Outras Palavras

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