Relatório do Roosevelt Institute demonstra: crítica ao neoliberalismo já se espalha muito além da esquerda. Desmoralização do projeto no Equador e Chile, e sua próxima queda na Argentina, poderão acordar a esquerda brasileira?
Novas regras do jogo[4]
Uma iniciativa importante me parece ser o estudo do Roosevelt Institute, New Rules for the 21st Century, novas regras para o século 21. Uma constatação forte dá o tom: “Entregamos os nossos governos aos mercados, e entregamos os mercados às corporações”. (p.8)
Um choque impressionante de realismo caracteriza esta excelente síntese dos novos caminhos que os Estados Unidos precisam trilhar para que a economia volte a servir a sociedade, não o contrário. Aqui também temos um aporte propositivo, uma sistematização dos principais desafios e medidas a tomar. O Roosevelt Institute se caracteriza pela seriedadade das suas pesquisas e o bom senso das propostas: “O presente relatório vai ilustrar a necessidade crucial de se reduzir o poder corporativo e resgatar o poder público. Mostraremos que ambos são necessários para mover nossa nação para um futuro que se apoia no que houve de melhor na nossa história, corrige erros cometidos e se adapta aos tempos modernos.”(10)
O relatório impressiona também por fugir de simplificações ideológicas, buscando claramente as medidas cuja utilidade já foi comprovada. E ajuda muito a clareza ao mostrar as dimensões políticas, de poder de decisão efetivo sobre o uso dos recursos, que temos de enfrentar. O problema não está na falta de recursos, e sim no seu desvio por corporações que em vez de fomentar a economia a drenam, apropriando-se para este fim das próprias políticas públicas. Ou seja, o relatório enfrenta a questão central. E esta questão, evidentemente, não se limita aos Estados Unidos. “As generalizações sobre a ineficiência do governo e sua pouca efetividade são exageradas (overblown), enquanto as consequências negativas das soluções baseadas no mercado têm sido muito frequentemente desconsideradas…A América deixou de lado um poderoso instrumento de governo: a provisão pública direta de bens e serviços. ” (47/48)
Ou seja, o que sentimos no relatório, é que finalmente a onda neoliberal está refluindo já não em rincões da esquerda, mas em instituições de grande peso. “Nos últimos 50 anos, temos desinvestido (disinvested) do poder público e nos temos dito que o governo é o problema. Sabemos que isso está errado. Sabemos também que o governo é a base para as instituições e os bens tangíveis que constituem o tecido das nossas vidas cotidianas–escolas e segurança pública; estradas e pontes; alimentos e medicamentos mais saudáveis; ar e água mais limpos. ”(63)
Fugindo das polarizações, o relatório mostra que o fortalecimento da capacidade de governo é central inclusive para o funcionamento da economia em geral. “O efeito combinado de poder corporativo concentrado e do poder público corrompido tem sido devastador para o nosso país…O governo não está investindo na população, nos programas públicos, na tecnologia ou na infraestrutura física–o tipo de investimentos que uma economia forte e em expansão exige. ”(21) Lembremos que no Brasil ‘investir na população’ é qualificado de ‘gasto’.
Não se trata aqui de algum flerte com socialismo. Trata-se, na minha interpretação, de um choque de realismo para que o próprio capitalismo volte a funcionar. Tenho qualificado essa busca de ‘capitalismo civilizado’. O próprio documento sugere uma ‘visão de mundo progressiva’ (progressive world-view). Mas as propostas destoam profundamente do neoliberalismo: “A história não tem sido caridosa com o neoliberalismo, esse caótico saco de ideias baseadas na noção fundamentalista de que os mercados se auto-corrigem, alocam recursos com eficiência, e servem bem o interesse público. Aprender a lição de que o neoliberalismo sempre foi uma doutrina política a serviço de interesses especiais pode constituir o fio condutor na nuvem que hoje recobre a economia global. ”(1) Leram bem, um documento assinado entre outros por quem já foi economista chefe do governo Clinton e do Banco Mundial.
Os interesses especiais, obviamente, são as corporações, que se transformaram numa máquina rentista, que extrai da economia em vez de contribuir: “Como tanto poder das corporações é direcionado para “extração de renta” (rent-extraction, aspas dos autores), – tomar uma parte maior do bolo econômico da nação ao tirar vantagens de outros – em vez de criar riqueza, reduzir o poder corporativo vai inclusive fortalecer o conjunto da economia. ”(3) Temos aqui a evidente consequência da financeirização. O processo se agravou com a apropriação da política: “No final, isso permitiu que os muito ricos convertessem o seu poder econômico em poder político concentrado que, por sua vez, permitiu que eles torcessem ainda mais as regras a seu favor e capturassem mais poder econômico. ”(7) É a máquina infernal: poder financeiro que gerou poder político, que por sua vez permite torcer as leis para gerar mais poder financeiro.
Assim, “este vale-tudo do setor privado prejudicou o bem-estar dos indivíduos e das comunidades pelos Estados Unidos afora, mas também travou o crescimento econômico, já que permitiu que os super-ricos retirem lucros do rentismo e de outras atividades que aumentam a sua riqueza sem fazer a economia crescer. ” (7) O sistema descolou claramente das contribuições produtivas: “Markups, ou seja, o montante que a companhia cobra acima dos custos, aumentaram de 18% acima do custo marginal em 1980, para 67%. Isso sugere que os lucros corporativos compreendem não retornos produtivos sobre o capital e o trabalho, mas rentas. ”(10)[5] Ou seja, remuneramos essencialmente aplicações financeiras, não investimentos: “Antes de 1970, as corporações americanas pagavam 50% dos seus lucros aos acionistas e o resta era reinvestido no negócio. Hoje, o pagamento aos acionistas está na ordem de 90% dos lucros declarados (Mason 2015a).” (17)
O relatório tira as consequências em termos de resgate da produtividade do setor financeiro. “Para assegurar que a função das finanças seja socialmente benéfica, a reforma do setor financeiro devera buscar, acima de tudo, reduzir os riscos macroeconômicos e limitar as práticas predatórias. Além disso, as reformas deveriam buscar o aumento do crédito produtivo, que poderia estimular pequenos negócios que atualmente enfrentam limitações de capital, facilitar impréstimos simples eficientes e a baixo custo, e servir as famílias não bancarizadas ou insuficientemente bancarizadas que atualmente estão sendo exploradas por financeiras de alto custo. ”(39)
No nosso caso brasileiro, evidentemente, os próprios bancos fazem o papel de agiotas, em escala incomparavelmente mais nociva. Mas é útil ver que o problema do resgate da utilidade social e econômica dos intermediários financeiros seja colocada com clareza. “Apesar dos avanços tecnológicos que deveriam ter tornado a indústria das finanças – um serviço de ‘intermediação’– menos caro e mais competitivo com o tempo, o custo unitário das finanças hoje é tão caro como era em 1900, porque o setor financeiro não repassa essas economias para os consumidores e sim para aumentar os lucros. ” (24)
Os autores slientam inclusive o fato que a existência de um forte sistema financeiro público é essencial para estimular a qualidade dos serviços prestados pelos mercados: “O provimento público de serviços financeiros básicos não constitui um defeito, mas precisamente o objetivo. Essencialmente, haver uma alternativa pública tende a disciplinar os mercados para assegurar o acesso, qualidade e quantidade de bens e serviços essenciais. ” (54) Ou seja, precisamos não só de regulação, mas de empresas públicas que forneçam diretamente bens e serviços para servir de contrapeso, abrindo alternativas para a população e colocando limites à agiotagem e rentismo financeiro. Para nós, que estamos atolados em negociatas de privatização, é importante esta compreensão de que a existência do setor público provedor de serviços é essencial para tornar o setor privado mais performante.
O documento no seu conjunto buscar resgatar o papel do setor público. “Os agentes políticos (policymakers) deveriam expandir o poder do governo, ao prover diretamente as políticas, com dois objetivos na linha de frente de uma nova visão de mundo progressiva: acesso universal aos bens e serviços e investimentos transformadores na busca de objetivos nacionais. ” (51) Invertendo as narrativas neoliberais, o texto mostra a maior produtividade sistêmica alcançada quando o governo assume um papel de provedor direto de políticas. E mostra a falácia da chamada austeridade: “Na realidade, está comprovado que gastar pouco demais leva no fim das contas a custos muito mais elevados (em termos de prejuízo para a vida das pessoas e para o crescimento econômico) do que gastar demais. ” (13)
No Brasil, sentimos isso na pele, na medida em que o travamento do acesso às políticas públicas força as pessoas a recorrer a serviços privados muito mais caros, resultando em perda de produtividade sistêmica. É bom lembrar que durante os anos 2003 a 2013, que o Banco Mundial qualificou de “década dourada” (Golden Decade) da economia brasileira, houve forte expansão de renda e de acesso a bens e serviços públicos, o que dinamizou o a economia e limitou o déficit, pois gerou aumento de receitas. O déficit se torna significativo a partir da era da austeridade de 2014 em diante. Para o detalhe, veja o capítulo 12 do meu A Era do Capital Improdutivo,disponível em http://dowbor.org .
“A política pública, executada com cuidado relativamente às dinâmicas de mercado subjacentes, deveria constituir o mecanismo básico (default mechanism) para prover bens e serviços que são essenciais para a dignidade e atuação humanas, tais como acesso à habitação, cuidados de saúde, e serviços bancários. O provimento público direto dos serviços é essencial em casos em que o público tem um forte interesse em ter acesso universal, e em que os setores privados têm como exercer um poder de mercado sobre os que buscam acesso. Há justificações econômicas para utilizar o poder do governo para prover bens e serviços essenciais. Uma vasta literatura mostra os benefícios econômicos de se assegurar um nível básico de serviços que incluem o cuidado infantil, a educação inicial e aposentadorias. Particularmente significativo é o fato que um maior investimento nas pessoas assegura uma maior produtividade econômica no conjunto. ” (52)
As mudanças, na visão dos autores, não se darão sem uma transformação do processo decisório nas próprias corporações, na chamada governança corporativa. “Para se criar um sistema que sirva aos interesses de todos os atores interessados (stakeholders), e não só dos executivos e da comunidade de aplicações financeiras, deveria ser exigido dos conselhos de administração das corporações a inclusão, no mínimo, de uma proporção substantiva de trabalhadores bem como de representantes de outros stakeholders que não sejam acionistas.” (37) O texto mostra como isso funciona na Alemanha e outros países.
O relatório recomenda inclusive o reforço dos próprios mecanismos de regulação. Em particular, explicita como funciona o sistema de proteção do consumidor de serviços financeiros (Consumer Financial Protection Bureau: CFBR) ”que materializou a visão de um governo federal que serve e reforça a democracia, e é fortemente apoiado pela população. ”(43). E explicita as necessidades de uma transformação da política tributária: “Elevar as alíquotas tributárias maginais no topo e taxar rendimentos de capital permitiria extrair mais recursos que as firmas usam para pagar aos acionistas e executivos (CEOs).” (60). Não custa lembrar aqui que o CEO da Disney embolsou um salário equivalente a cerca de 1500 vezes o salário médio dos seus empregados, provocando inclusive indignação de uma das netas do Disney. O executivo em questão não tem 1500 vezes mais filhos para criar. Aqui não trata de exageros pontuais, mas de uma deformação patológica do sistema.
Igualmente interessante é a proposta de uma política pro-ativa de inclusão produtiva. “Uma política de garantia federal de emprego (Federal Jobs Guarantee – FJG) constituiria uma fonte direta de empregos com poder público de literalmente terminar com o desemprego involuntário e pobreza de trabalho. ”(57) Tal política poderia assegurar que “independentemente de falhas de mercado – tais como choques econômicos, acordos comerciais mal planejados, discriminação estrutural – cada americano teria o direito a um emprego e à renda e dignidade associadas com o trabalho. Uma garantia de emprego poderia funcionar como uma opção pública que coloca uma regra básica para benefícios, compensações e práticas equitáveis que formatariam o mercado de trabalho no seu conjunto. ”(61)
Claramente, na visão dos autores, o enfoque econômico não é suficiente. Para as necessidades básicas humanas, temos de nos voltar para o ‘argumento dos direitos’. Mas mesmo em termos macro-econômicos, temos de inverter o raciocínio: “É muito mais provável que o problema que temos de enfrentar seja de demanda agregada inadequada e desemprego elevado, do que sobreaquecimento e inflação. ”(58) Expandir a demanda agregada, evidentemente, melhora a situação das famílias e reduz o desemprego. Nada de radicalmente novo aqui, mas sim muito bom senso. Adeus austeridade.
Volto a mencionar que não se trata, nesta análise do Roosevelt Institute, de propor rupturas sistêmicas, e sim de civilizar o processo. Para nós, que nos debatemos no primitivismo ideológico e em narrativas absurdas de que sacrificar a população é “ao fim a ao cabo” bom para ela, vejo este documento como extremamente útil. Qual que seja o realismo das propostas, o desmonte do sistema por uma instituição que está no coração dele, com argumentos muito bem organizados, ajuda muito. Não é crítica externa por opositores, é um choque interno de lucidez, por parte de quem conhece o sistema em profundidade. Francamente, são sessenta e poucas páginas que constituem um excelente custo-benefício. Só para não esquecer: a bibliografia é ótima, com artigos e estudos disponíveis online, de acesso aberto e imediato. Para quem quer aprofundar, uma ferramenta.
O papel do Estado[6]
O melhor antídoto para a farsa da privatização é a leitura do livro de Mariana Mazzucato, que mostra, no seu O Estado Empreendedor, que o reforço das capacidades de gestão pública constitui a melhor garantia de um desenvolvimento equilibrado. Primeiro temos de equilibrar o imenso deslumbramento com as estrelas mundiais dos avanços tecnológicos. Os imensos avanços na bio-tecnologia, por exemplo, surgem sobre a base de décadas de pesquisa fundamental desenvolvida no quadro do setor público: “Em biotecnologia, nanotecnologia e internet, o capital de risco chegou 15-20 anos depois que os investimentos mais importantes tivessem sido feitos com fundos do setor público.” (29)
Estamos muito acostumados a glorificar por exemplo a eficiência da Apple, sem levar em conta o processo global de avanço científico-tecnológico gerado por meio dos sistemas públicos de ensino e pesquisa: “A genialidade e “loucura” de Steve Jobs levou a lucros e sucesso massivos, em grande parte porque foi possível a Apple navegar na onda que sustentou o iPhone e o iPad: a Internet, o GPS, a tela de toque e as tecnologias da comunicação. Sem essas tecnologias financiadas pelo setor público, não teria havido onda para surfar loucamente (foolishly).”(94) Assim, a tão importante inovação nos processos modernos de desenvolvimento dependem vitalmente de um equilíbrio entre pesquisa fundamental e aplicações diretamente comerciais, gerando o que Mazzucato chama de “ecosistema de inovação”.(194)
Mas esta complementariedade se deforma radicalmente quando se constata que as grandes corporações se aproveitam das inovações desenvolvidas com fundos públicos, mas se recusam a pagar impostos. Com a globalização, as amplas facilidades geradas pelos paraísos fiscais, o fato dos recursos financeiros circularem como sinais magnéticos – tornando portanto o dinheiro imaterial – e a guerra fiscal entre países ou até Estados de um mesmo país, o fato é que as grandes corporações com os maiores lucros simplesmente não pagam impostos, ou pagam valores simbólicos. A constatação que a Apple pagou na Europa 0,05% de impostos sobre os seus lucros acendeu um sinal vermelho no mundo, e hoje a OCDE perepara um conjunto de medidas no quadro do programa BEPS (Base Erosion and Profit Shifting). Mazzucato traz dados sobre “os esquemas globais de remanejamento de impostos (tax-shuffrling schemes), “que certamente não concernem apenas a Apple. Na realidade, outras empresas de tecnologia como Google, Oracle e Amazon também se beneficiam da adoção de esquemas de impostos semelhantes”. (189) A General Electric também é um dos campeões de evasão fiscal, pagando apenas 1,8% sobre os seus lucros entre 2002 e 2011.
O estudo mostra o papel fundamental desempenhado pelo sistema público na pesquisa de base que permite a inovação em medicamentos, que por sua vez frequentemente são vendidos a preços exorbitantes, aproveitando infindáveis patentes renovadas sobre a base de pequenas inovações cosméticas. Mostra também o papel fundamental do financiamento público, em setores não imediatamente rentáveis, como infraestruturas, mas que são essenciais para a produtividade empresarial e a qualidade de vida da população, enquanto os bancos privados desenvolveram um sistema basicamente extrativo, e não multiplicador de riqueza.
No conjunto, o resgate do papel do Estado, e em particular a sua melhor compreensão, são essenciais para pensarmos para o futuro um desenvolvimento sustentável. Temos aqui uma análise muito convergente com as propostas do Roosevelt Institute.
Corrigir as contas da economia
Kate Raworth é uma das participantes diretas da Economia da Francesco. O aporte fundamental dela é uma revisão radical de como fazemos as contas na economia, ultrapassando as profundas deformações do cálculo do PIB, que calcula apenas a velocidade dos fluxos econômicos, mas não nos informa sobre os resultados para a sociedade, que é precisamente o que queremos de uma economia que funcione. George Monbiot, do Guardian, não exagera: “Eu li este livro com a excitação com que as pessoas do seu dia devem ter lido a Teoria Geral de John Maynard Keynes. É brilhante, entusiasmante e revolucionário. Com um poço profundo de aprendizagem, sabedoria, e pensamento profundo, Kate Raworth redesenhou e redefiniu os marcos da teoria econômica. É completamente acessível, mesmo para pessoas sem conhecimento do assunto. Eu acredito que Doughnut Economics vai mudar o mundo”. Comentário forte, mas perfeitamente adequado.[7]
De forma simples e direta, Raworth faz um tipo de “reset” de como vemos o mundo econômico, e a nova visão faz todo sentido. Consciente de que precisamos hoje, mais do que do detalhe, de uma imagem de referência sobre o que queremos da economia, a autora substitui os nossos tradicionais gráficos de fluxos por uma imagem, o doughnut, a nossa familiar rosquinha. Vale a pena se apropriar de uma ideia básica, de que estamos produzindo algumas coisas em excesso, como poluição do ar, e outras de forma insuficiente, como educação e saúde. Os excessos aparecem com explodindo para além da rosca, e as insuficiências como que não chegam à rosca, ficam no vazio interno.
Com esse desenho simples estamos saindo da síntese quantitativa do PIB, em que a destruição ambiental como desmatamento ou vazamentos de petróleo aparecem como positivos, pois aumentam as atividades e logo o PIB. Evoluimos para uma conta completa, permitindo identificar o que tem de ser controlado, por exemplo a contaminação química, e o que tem de ser expandido, por exemplo o acesso aos alimentos. Entramos assim na economia do bom senso. Só lembrando a tão bela frase que encontrei num banner de estudantes de economia: “Crescer por crescer, é a filosofia da célula cancerosa”. Portanto, temos aqui um ponto de partida sobre o qual podemos construir as políticas, organizar estímulos ou regulação, e repensar as nossas teorias.
O bom do Donut, como todos sabem, é o concreto, aquela rodinha onde tem a massa e o açúcar em cima. No limite interno da rosca, para dentro do vazio, ficam as insuficiências, que devem ser sanadas: 12 itens como alimento, saúde, educação, emprego e renda, paz e justiça, voz política, equidade social, igualdade de gênero, habitação, redes, energia e água. No corpo da rosca, é o espaço onde devemos nos situar, dimensão justa e segura para a humanidade. No limite externo da rosca, fica o teto ecológico que não deveríamos ter ultrapassado: são 9 itens, envolvendo mudança climática, acidificação dos oceanos, poluição química, sobrecarga de nitrogênio e de fósforo, extração de água doce, conversão do solo, perda de biodiversidade, poluição do ar, e destruição da camada de ozônio.
Ou seja, no vazio interno da rosca, temos as insuficiências, shortfall, o que tem de melhorar para entrar no espaço seguro da própria donut. E no vazio externo, temos os excessos, o overshooting, que temos de reduzir. Não muito diferente de como cuidamos da casa, em que temos de complementar as insuficiências, e controlar os excessos. A economia deixa de ser um mistério para amadores de modelos matemáticos, e passa a fazer sentido para os comuns dos mortais. Ao mesmo tempo, temos uma imagem simples e desafios que são coerentes com o que foi decidido nas grandes conferências de 2015, com o Acordo de Paris e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a Agenda 2030, em Nova Iorque. (38-39)
A simplicidade e facilidade de leitura, inclusive de visualização mental, dos desafios econômicos, é essencial, pois enquanto a imensa maioria da população não entender a lógica de como usamos os nossos recursos, as farsas irão continuar. Inclusive a farsa maior, de que precisamos dos ricos pois eles investem e geram empregos, e de que precisamos de pobres pois a pobreza os leva a trabalhar. Na realidade os ricos hoje fazem aplicações financeiras em vez de investir, colocam os recursos em paraísos fiscais e, portanto, pouco investem, e mal pagam os seus impostos. Num mundo que funcione, impostos sobre o capital improdutivo levará os rentistas a buscar fazer algo de útil com os seus capitais. E como constatamos em qualquer iniciativa que assegurou mais recursos para a população, o resultado é maior demanda, multiplicação de pequenas e médias empresas e expansão do emprego. O que aliás gera maior massa de impostos e equilíbrio de contas públicas. Veja-se o sucesso do New Deal, do Welfare State, da fase dinâmica da economia brasileira entre 2003 e 2013, e até mais recentemente da “geringonça” portuguesa.
Aqui, ao vermos em que setores e com que atividades estamos por um lado dilapidando os recursos naturais do planeta por excessos de uso, e por outro que insuficiências existem em diversas partes da população, podemos, setor por setor, canalizar os esforços e recursos financeiros para onde irão gerar maior equilíbrio.
Ou seja, podemos calcular onde devemos nos restringir, onde podemos expandir, em que setores há prioridade e assegurar o básico para a população. A economia passa a fazer sentido. Tim Jackson, que comenta o livro, lembra o absurdo de termos sido “persuadidos a gastar dinheiro que não temos em coisas que não precisamos para causar impressões que não irão durar sobre pessoas que não nos importam.” Já era tempo que alguém dêsse um pouco de sentido na visão geral da economia realmente existente. No centro das respostas, não estão modelos complicados, e sim a “capacidade do século 21 de criar formas muito mais efetivas de governança, em cada escala, do que as que têm sido vistas anteriormente. ”(51) E corrigir as contas, em economia, é fundamental.
Resgatar a utilidade dos recursos financeiros
As boas intenções, proclamações e declarações de elevados princípios éticos não irão resolver se não enfrentarmos o problema central do dinheiro para financiar o que devemos priorizar. É essencial lembrar, como vimos acima, que a conferência de Paris em 2015, que com pompa e circunstância firmou o compromisso mundial de levantar 100 bilhões de dólares ao ano para enfrentar o desastre ambiental, é uma soma ridícula quando comparada aos 20 trilhões de dólares que se escondem em paraísos fiscais, 200 vezes mais. Lembrando ainda que praticamente todas as grandes corporações e grandes fortunas hoje têm filiais ou contas em paraísos fiscais, essencialmente fruto de evasão fiscal, corrupção e lavagem de dinheiro. O sistema econômico realmente existente está atolado em ilegalidades. E são recursos em gigantescos volumes.
Um segundo ponto essencial é que o mundo não é pobre. Como vimos, o PIB mundial, atualmente da ordem de 85 trilhões de dólares. Este volume de bens e serviços produzidos no mundo representa 3700 dólares por mês por família de 4 pessoas, cerca de 15 mil reais. Não há nenhuma justificativa para termos 820 milhões de pessoas passando fome, das quais mais de 150 milhões de crianças. Nosso problema não é econômico, é essencialmente ético e político. No caso do Brasil, estamos exatamente na média mundial em termos de PIB por pessoa. Não há nenhuma razão econômica para a pobreza.
Um terceiro ponto é que as fortunas que hoje se acumulam são essencialmente baseadas em remuneração de papéis financeiros. A partir de estudos de Thomas Piketty, Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Ellen Brown, Michael Hudson, François Chesnais, Marjorie Kelly, Paul Dembinski e tantos outros, formou-se hoje uma sólida base teórica e clara explicitação dos mecanismos especulativos que multiplicam fortunas e extraem os recursos que são indispensáveis para evitar os desastres que temos pela frente.
Lembremos o mecanismo básico do enriquecimento especulativo: um bilionário que aplica um bilião em papéis que rendam modestos 5% ao ano está ganhando 137 mil dólares ao dia. No dia seguinte a fortuna dele irá render sobre um bilhão mais o ganho do dia anterior e assim por diante, sem precisar produzir nada. O mecanismo, conhecido como snowball effect, efeito bola de neve, levou ao absurdo de 1% mais ricos que dispõem de mais patrimônio do que os outros 99%. Sem produzir. No Brasil 6 famílias têm mais riqueza acumulada do que o patrimônio da metade mais pobre da população. Isso, evidentemente, não funciona.
Jared Bernstein, que foi conselheiro econômico do vice-presidente dos EUA Joe Biden, constata hoje este deslocamento geral das análises econômicas, com o título expressivo do seu estudo: “Nova economia – Uma geração de economistas ajudou a nos colocar nesta bagunça (mess): uma nova geração pode nos tirar. ” Segundo autor, “Qualquer forma de análise social que vise ser útil para a sociedade precisa evoluir de maneira a estimular o bem-estar social, a equidade, a justiça racial e de gênero, e a sustentabilidade ambiental. Durante demasiado tempo, grande parte da ciência econômica foi reprovada neste teste – e, no entanto, a sua interação com a classe dirigente a elevou para o nível do poder…O mal causado de maneira penetrante por esta interação abriu caminho para um número crescente de economistas que estão derrubando a velha escola do seu patamar privilegiado. Frente a que eu digo: já era tempo. ”
A revista Forbes, na sua edição brasileira, lançou em 2019 uma lista detalhada dos 206 bilhonários do país. Jorge Lemann está em primeiro lugar, com patrimônio de 104 bilhões de reais. Atividade bancária, naturalmente, dinheiro ganho intermediando dinheiro dos outros. Em segundo lugar Joseph Safra, também dono de banco, com 95 bilhões, sendo que entre 2018 e 2019 aumentou a sua fortuna em 19,31 bilhões, numa fase de paralisia geral da economia brasileira. A família Marinho, com fortuna de 34 bilhões, teve um aumento de 9,3 bilhões no mesmo período. Cândido Pinheiro Koren de Lima, dos serviços de saúde Hapvida, tem um patrimônio de 13,82 bilhões, fortuna que no último ano aumentou em 6,22 bilhões. Especular com saúde rende muito.
É preciso buscar muito na lista para encontrar alguém que efetivamente produza algo. Preferem deter a gestão dos recursos financeiros, ou gerir fundos de ações. No conjunto, em 8 anos de descontrole do sistema financeiro, passamos no Brasil de 74 bilionários em 2012 para 206 bilionários em 2019. As fortunas aucumuladas passaram de 346 bilhões de reais para 1205,8 bilhões no mesmo período. (p.108) A tentativa da Dilma freiar a especulação reduzindo juros, em 2012/2013, aparece hoje com toda sua fragilidade. E o travamento da economia torna-se óbvio. Trata-se do coração do poder.
As fortunas mencionadas, evidentemente, não pagam impostos, já que lucros e dividendos distribuídos são isentos, por lei, desde 1995. Não é novo o processo, a expressão pecunia pecuniam parit nos vem dos antigos. Mas com o dinheiro hoje imaterial, essencialmente emitido pelos próprios bancos, e surfando no planeta com pouco controle, o resultado é o desastre planetário. No Brasil, é o sexto ano em que estamos parados, drenados por lucros exorbitantes e improdutivos.
A questão dos paraísos fiscais aparece regularmente na agenda das últimas reuniões do G20, bem como a evasão fiscal generalizada por parte dos grandes grupos e grandes fortunas mundiais. A OCDE prepara uma primeira proposta de regulação financeira internacional, no quadro do BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), que deve ver a luz em 2020. Mas a inoperância dos governos e a lentidão dos processos justificam plenamente a indignação de tantos jovens pelo planeta afora, e a perda de paciência de bilhões de pobres que hoje são privados do essencial enquanto os recursos são desviados da sua utilização produtiva, constituindo o que Marjorie Kelly e Ted Howard qualificam adequadamente de ‘capitalismo extrativo’. Uma mudança sistêmica em como vemos a economia está na ordem do dia.
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Até o tradicional distanciamento e frieza das análises científicas está perdendo espaço. Não podemos senão concordar com esta declaração de Joseph Stiglitz:” O experimento neoliberal — impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização — tem sido um fracasso espetacular. O crescimento é menor do que era no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte acumulou-se no topo da escala de renda. Depois de décadas de renda estagnada ou mesmo em queda para aqueles abaixo dos mais ricos, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado. ”
Uma evidência começa a chegar até as pessoas mais desinformadas ou ideologicamente mais deformadas: as imensas fortunas especulativas têm de passar a pagar impostos, e o resultado desses impostos deve ser investido no resgate da sustentabilidade do planeta e na redução da desigualdade. E o básico para a sobrevivência dos mais pobres deve ser garantido desde já. Hoje enfrentamos o absurdo de conhecermos os desafios, de sabermos o que deve ser feito, e de termos os recursos financeiros e tecnológicos correspondentes, ao mesmo tempo que simplesmente adiamos as ações a serem tomadas.
Ladislau Dowbor é professor titular de economia da PUC-SP, consultor de várias agências da ONU, e autor de numerosos livros e estudos técnicos disponíveis em http://dowbor.org em regime Creative Commons (livre uso não-comercial). Contato ldowbor@gmail.com
[2] Released: August 19, 2019 Updated with New Signatures: September 6, 2019 file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf
[3] Banking Principles – UNEP – 23 sept. 2019 – Ativos de 47tri$ https://www.unepfi.org/banking/bankingprinciples/ The Principles for Responsible Banking – See also: https://www.unepfi.org/news/industries/banking/130-banks-holding-usd-47-trillion-in-assets-commit-to-climate-action-and-sustainability/
[4] Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 – 77p. https://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2019/04/Roosevelt-Institute_2021-Report_Digital-copy.pdf
[5] Estou aqui traduzindo rent por renta, pois não é possível que não tenhamos a palavra correspondente em português. Temos sim rentismo, mas falamos que alguém “vive de rendas” quando se trata de rendimentos improdutivos. Em inglês “rent” e “income” são claramente diferentes, como também em francês, “rente” e “revenu”.
[6] Mariana Mazzucato – The Entrepreneurial State – Public Affairs, New York, 2015
[7] Para a resenha feita pelo próprio Monbiot, no Guardian, veja http://www.monbiot.com/2017/04/13/circle-of-life/
Bibliografia
Bernstein, Jared – New Economics: A Generation of Economists Helped Get Us into This Mess. A New Generation Can Get Us Out. https://www.vox.com/policy-and-politics/2019/9/13/20862607/economics-inequality-deregulation-wealth-taxes-policy
Brown, Ellen – Banking on the People – Democracy Collaborative, Washington, 2019
Business Round Table – Statement on the Purpose of a Corporation – file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf
Dowbor, Ladislau – A Era do Capital Improdutivo – Autonomia Literária, São Paulo, 2018 – http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2018/11/Dowbor-_-A-ERA-DO-CAPITAL-IMPRODUTIVO.pdf
Forbes – 200 bilionários brasileiros – Edição Especial – São Paulo, 2019
Kelly, Marjorie and Ted Howard – The Making of a Democratic Economy – Berrett-Koehler Publishers, Oakland, 2019
Kliass, Paulo – Cheiro de mudanças no ar – Outras Palavras, 24/set. 2019 – https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/economia-cheiro-de-mudanca-no-ar/
Mazzucato, Mariana – The Entrepreneurial State: debunking the public vs private myth – Public Affairs, New York, 2015
Pizzigati, Sam – The Case for a Maximum Wage – Polity Press, Cambridge, UK, 2018 – https://dowbor.org/2018/10/sam-pizzigati-the-case-for-a-maximum-wage-polity-press-cambridge-uk-2018-133p.html/
Raworth, Kate – Doughnut Economics: 7 ways to think like a 21st Century Economist – Chelsea Green Publishing, 2017 – (No Brasil: Economia Donut: 7 maneiras de pensar como um economista do século 21) http://dowbor.org/2017/08/kate-raworth-doughnut-economics-7-ways-to-think-like-a-21st-century-economist-chelsea-green-publishing-2017-isbn-a-economia-da-rosquinha-7-maneiras.html/
Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 – https://dowbor.org/2019/04/roosevelt-institute-new-rules-for-the-21st-century-2019-77p.html/
Stiglitz, Joseph – Hora de enterrar um sistema fracassado – Outras Palavras, 6 de jun. 2019 https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/stiglitz-hora-de-enterrar-um-sistema-fracassado/ http://dowbor.org/2019/06/stiglitz-hora-de-enterrar-um-sistema-fracassado-outras-palavras-traducao-jun-2019-3p.html/
Stiglitz, Joseph – Crise Civilizatória – 4 Set. 2019 – https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/poderia-o-capitalismo-ser-menos-brutal/
Wallace-wells, David – The uninhabitable earth – Penguin Books, New York 2019 – https://dowbor.org/2019/07/david-wallace-wells-the-uninhabitable-earth-life-after-warming-tim-duggan-books-penguin-new-york-2019.html/
[1] [1] “To embrace young people, beyond differences in belief and nationality, an agreement to change the current economy and humanize the economy of tomorrow: to make it more just, more sustainable and to give new prominence to excluded people.” https://francescoeconomy.org/wpcontent/uploads/2019/08/PR_EconomyOfFrancesco_08_2019.pdf
A carta convocatória do Papa Francisco está em http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2019/05/11/0399/00815.html
[2] Released: August 19, 2019 Updated with New Signatures: September 6, 2019 file:///C:/Users/Ladislau%20Dowbor/Downloads/BRT-Statement-on-the-Purpose-of-a-Corporation-with-Signatures-1.pdf
[3] Banking Principles – UNEP – 23 sept. 2019 – Ativos de 47tri$ https://www.unepfi.org/banking/bankingprinciples/ The Principles for Responsible Banking – See also: https://www.unepfi.org/news/industries/banking/130-banks-holding-usd-47-trillion-in-assets-commit-to-climate-action-and-sustainability/
[4] Roosevelt Institute – New Rules for the 21st Century – 2019 – 77p. https://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2019/04/Roosevelt-Institute_2021-Report_Digital-copy.pdf
[5] Estou aqui traduzindo rent por renta, pois não é possível que não tenhamos a palavra correspondente em português. Temos sim rentismo, mas falamos que alguém “vive de rendas” quando se trata de rendimentos improdutivos. Em inglês “rent” e “income” são claramente diferentes, como também em francês, “rente” e “revenu”.
[6] Mariana Mazzucato – The Entrepreneurial State – Public Affairs, New York, 2015
[7] Para a resenha feita pelo próprio Monbiot, no Guardian, veja http://www.monbiot.com/2017/04/13/circle-of-life/
Fonte: Outras Palavras
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