O incêndio da catedral evoca mais solidariedade que a tragédia de um ciclone ou o genocídio negro brasileiro.
“Homem é preso por blasfêmia e subversão e, sem direito de defesa, é crucificado em praça pública.”
A quantidade de tragédias, violências e absurdos no nosso atual cotidiano é tamanha que não é difícil imaginar a frase acima publicada recentemente na capa de algum site de notícias. Transcorridos mais de dois milênios, a passagem bíblica da Páscoa cristã continua não apenas simbólica para pensarmos nossas crenças religiosas. Serve também para refletirmos sobre nossos ideais de justiça, solidariedade e empatia com os semelhantes, mas sobretudo com os diferentes de nós.
O início de 2019 tem mostrado como a comoção e a solidariedade podem ser seletivas. Um carro foi alvejado e o músico negro Evaldo Rosa foi assassinado com 80 tiros por militares no Rio de Janeiro. O ministro da Justiça, Sérgio Moro, disse que esse tipo de crime “pode acontecer”. O governador do Rio, Wilson Witzel, afirmou que não cabia a ele “fazer juízo de valor” sobre a ação. Jair Bolsonaro foi incapaz de emitir uma única palavra de solidariedade à família de Evaldo. Quando pressionado por jornalistas, chegou ao ponto de dizer que o Exército não havia matado ninguém. Chamou a morte de “incidente” e completou: “Lamentamos ser um cidadão trabalhador, honesto”.
Ao escolher lamentar a morte dos considerados “honestos” e comemorar ações policiais que terminaram com dezenas de assassinados, o Poder Público naturaliza e estimula a violência que ele mesmo pratica. Alimenta-se de forma perversa um sentimento de que há “vidas matáveis”, de que tanto faz se esses cidadãos continuarão ou não vivos. Ou, ainda, melhor que morram. “Menos um”, como disse um policial carioca após matar um jovem de 14 anos em julho de 2014. Por outro lado, qualquer um sabe que, se Evaldo Rosa fosse branco, rico e morador do Leblon, a solidariedade do presidente, juízos de valor do governador e críticas mais duras do ministro da Justiça rapidamente apareceriam.
Separados por apenas um mês, o ciclone que atingiu Moçambique e outros países africanos e o incêndio na catedral de Notre-Dame, em Paris, mostram como essa comoção seletiva não está restrita ao que ocorre em nosso país. Atingindo 1 milhão de moçambicanos e com mais de mil mortos até agora, o ciclone Idai destruiu cidades inteiras, que vivem uma tragédia humanitária gravíssima. Há poucos dias, o incêndio na Notre-Dame tomou as redes sociais e ocupou capas de jornais por todo o globo. Era possível perceber, e com razão, a tristeza de ver um monumento histórico destruído pelo fogo. Compartilho da comoção pela catedral histórica. O que choca é pensar por que o desastre na África com milhões de vidas afetadas comove menos nossa sociedade do que uma tragédia na Europa.
De tragédias naturais a massacres étnicos, a história vem sendo contada em letras garrafais nas capas dos jornais quando atinge uma parte do mundo e em notas de rodapé quando acontece fora dela. Essa hierarquia vai se refletindo nos valores que damos à vida de diferentes grupos de nossa sociedade: entre descendentes de europeus e de africanos, entre moradores de bairros nobres e de favelas, entre homens héteros e mulheres transexuais, e assim por diante.
A psicanálise nos ensina que a violência costuma nascer da falta do reconhecimento no outro do que há de humano em nós, e vice-versa. Com ela, pode surgir um ressentimento que exige a invisibilidade e até a eliminação de quem é diferente para retomar uma fantasia de harmonia que acreditava haver anteriormente – o mítico paraíso perdido, que nunca será alcançado. Quando as vozes públicas de uma sociedade estimulam a violência e a intolerância com o diferente, torna-se natural que se seja incapaz de expressar solidariedade com a família de um homem assassinado com 80 tiros ou de uma vereadora negra executada. E não se enxerga qualquer incoerência em quem, ao mesmo tempo que se indigna com uma condenação contra um “humorista”, vibra com a prisão em massa e o extermínio de jovens negros.
Esse ressentimento, o desejo de vingança e a incapacidade de sentir a dor do outro aprofundam a crise em que vivemos e não apontam outra saída senão o ódio e a violência permanentes. Talvez a Páscoa seja um momento para nos perguntarmos quem da nossa sociedade se comoveria, qual seria o tamanho das manchetes de nossos jornais e que governantes se solidarizariam com a morte de Jesus, um defensor da igualdade, que salvou a adúltera do apedrejamento e acolheu os esfarrapados, e foi então acusado de subversão e condenado à pena capital sem direito de defesa. “Um incidente”…
Fonte: Carta Capital
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