Diante da automação e da inteligência artificial, é preciso ampliar as lutas pela redução radical da jornada e para assegurar, a todos, os bens indispensáveis à vida digna
Por Júlio Fisherman | Ilustração: Diego Rivera, Detroit Industry, afresco (1932-33)
“O paraíso terrestre fora desacreditado exatamente no instante em que se tornara praticável” (George Orwell, 1984)
Um dos maiores desafios que se coloca para os que lutam e desejam o crescimento humano, não o econômico, é superar o discurso já sem fundamento da criação de mais postos de trabalho como agenda para o desenvolvimento e mesmo o enfrentamento de crises.
Há muito tempo que a dinâmica industrial/gerencial (tecnologias do automatismo, racionalização econômica) tornou supérflua a necessidade do trabalho em larga escala no processo produtivo e já não haverá, num mundo globalizado capitalisticamente, processo de reestruturação produtiva e expansão de mercados que consiga (re)absorver a quantidade de desempregados estruturais no planeta.
O sociólogo alemão Robert Kurz, que incansavelmente apontou para este problema-limite do capitalismo, certa vez expressou assim a dimensão da questão:
O capitalismo, na verdade, nada mais é que um sistema industrial “bola de neve”, que converteu a transformação contínua e crescente de energia humana abstrata em dinheiro num fim em si mesmo. A revolução tecnológica microeletrônica põe fim a essa dinâmica, pois torna supérfluo, de maneira perene e absoluta, mais trabalho do que pode ser reabsorvido pela produção ampliada. Por isso os mercados financeiros se desvincularam, de modo estrutural, da economia de bases reais. A criação de moeda sem substância contradiz, entretanto, a lógica capitalista. Este é o verdadeiro nó da crise. Mas, enquanto não houver uma crítica prática, a agonia desse sistema pode arrastar-se sem prazo e criar novos surtos de pobreza e desespero.
É preciso assim assumir o poder da observação cristalina sumarizada por Oscar Wilde há mais de 100 anos:
Atualmente, as máquinas competem com o homem. Em condições adequadas, servirão ao homem.
O que a esquerda deve, portanto, é empunhar a bandeira da apropriação coletiva e global do que é sim socialmente produzido e não individual/particularmente realizado simplesmente porque alguns poucos, cada vez um grupo mais reduzido, detêm o poder sobre os meios técnicos da produção. Todos estes meios de produção são frutos históricos do principal, do realmente indispensável meio de reprodução da vida social, que é e sempre será o esforço e zelo humano em suas diversas manifestações.
Com isto claro, faz-se necessário atacar firmemente a irracional lógica privatista e excludente que beneficia a plutocracia e financia apenas o consumismo obsceno (bombardeado ainda a ideal de felicidade) de castas privilegiadas que sequer estão interessadas em resolver o problema da fome, numa era de abundância produtiva. A dita escassez é um mito, só existe como resíduo ideológico, misticismo vulgar.
Via maior cooptação nos parlamentos e intervenções jurídicas – o Brasil é um ótimo exemplo -, o capital vem parasitando cada vez mais o aparelho de Estado a fim de dominar tudo e todas as brechas, elevando à enésima potência sua capacidade de sugar o máximo dos trabalhadores que ainda conseguem participar do jogo da solvência econômica. Aqui, ali e acolá, lubrificam-se com suor, lágrimas e sangue as engrenagens nefastas de sua permanência enquanto guia da produção e reprodução da vida.
Mesmo que insuficientes, palavras de ordem elementares para os progressistas em todo globo deveriam ser já há muito tempo pela redução radical da jornada de trabalho e oferecimento universal e gratuito de condições inegociáveis de estruturas, serviços e bens.
Hannah Arendt já destacava no prólogo de umas das suas mais importantes obras, “A condição humana”, porque dialeticamente segue-se cultuando o trabalho mesmo quando ele já deveria passar a ceder lugar a novas práticas:
A era moderna trouxe consigo uma glorificação teórica do trabalho, e resultou numa transformação factual de toda a sociedade em uma sociedade trabalhadora. (…) É uma sociedade de trabalhadores a que está para ser liberada dos grilhões do trabalho, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais significativas em vista das quais essa liberdade mereceria ser conquistada.
Enquanto não se enfrentar decididamente o enraizado e autoritário mito do “trabalho que dignifica o homem” – dignifica seja lá que trabalho for, o que revela a completa falta de atenção com o conteúdo sensível das atividades humanas – não se estará enfrentando a crise de frente, fazendo muito pouco pela transformação das relações sociais.
Vale destacar que esta cantilena do trabalho ganhou novo vigor e frescor com a pregação diuturna neoliberal de que toda existência precisa agora ser justificada não apenas pelo trabalho, mas pelo trabalho bem sucedido na competição. Aliás, quando não há mais perspectiva de emprego para todos e numa atmosfera de concorrência totalitária temperada pelo individualismo exacerbado, não é de se surpreender que o fascismo se reforce.
Dia após dia agigantam-se os poderes destrutivos de um status quo sufocante que não emancipa, que não libera as energias criativas, desinteressadas e generosas dos seres humanos. Um arranjo societário que prefere promover a autofagia, que é mesquinho porque infunde o egoísmo, pobre porque destila avareza contra o bem estar geral, estúpido porque insustentável, genocida uma vez que assassino em massa.
Redistribuição e compartilhamento do que se produz, solidariedade, cuidado, cooperação, generosidade, fraternidade, ócio, bem viver, não devem ser tomados como conceitos abstratos, distantes, desbotados, mas como verdadeiro projeto de governo alternativo ao estado atual não apenas das coisas, senão que principalmente dos homens, mulheres e crianças.
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