top of page

Precisamos falar sobre cocô

No oitavo capítulo do diário de bordo na Antártida, a jornalista mostra como grandes belezas e animais gigantescos dependem de pequenas criaturas, algumas delas com uma cara muito esquisita.

Por Eliane Brum

Pinguins em Hannah Point, Antártida.CHRISTIAN ASLUND/GREENPEACE

Só na Antártida percebi quanta poesia há no cocô. Pinguins, baleias e focas são o que os cientistas e ecologistas chamam de “fofofauna”. Mas nenhum filme da Disney sobre pinguins, por exemplo, mostra seu assombroso cocô cor de rosa. E esta é a segunda coisa que a gente percebe sobre os pinguins. Eles estão sempre cercados por muito cocô, fazem cocô o tempo todo e também cheiram a cocô. Seus filhotes estão sujos de cocô e ainda assim são irresistíveis. Os pinguins são tão poderosos, contava um dos cientistas, que é possível ver seu cocô do espaço, já que eles formam uma enorme mancha cor de rosa. Quando acampamos em Low Island, a atriz francesa Marion Cotillard comentou ao despontar na barraca coletiva para o café da manhã: “A primeira coisa que senti ao acordar foi o cheiro de cocô de pinguim”.


A cor do cocô é a chave para compreender a vida na Antártida. O rosa do cocô é o krill. E o krill é tudo. A questão é que o krill não é fofo. Pelo menos não no sentido convencional. Ele parece um camarão esquisito e só por isso não estrelou nenhuma animação da Disney ou da Pixar. Seu ápice no showbusiness foi uma ponta como respiro cômico no desenho Happy Feet, produzido no estúdio da Animal Logic. Mas o krill deveria ser a Scarlett Johansson do cinema de animação, porque ninguém merece mais. Esse bichinho estrombótico salva não só a Antártida, mas o mundo, todos os dias. E na Antártida essa cadeia perfeita de acontecimentos que produz e mantém a vida é tão visível quanto um iceberg.


O krill é o prato predileto de todos aqui. Não necessariamente predileto, porque para muitas espécies é também o único. Mas, claro, o krill também precisa comer. E o que ele come? Fitoplâncton. Se nós tivéssemos uma visão de microscópio, enxergaríamos o mar coberto por uma colcha verde. É o fitoplâncton. Esse organismo faz algo maravilhosamente importante: a fotossíntese. Captura dióxido de carbono da atmosfera e libera oxigênio.


Meu mais novo herói, o krill, vai até a superfície e come o fitoplâncton. Agora, o carbono está dentro do krill. E ele segue a sua viagem com zilhões de outros companheiros que cumprem a mesma rotina. Em seguida, as baleias, os pinguins, as focas, quase todas as espécies de vertebrados da Antártica comem uma porção dos krill. Agora, o carbono está dentro destes seres bem maiores. Em especial, a baleia azul, que pode medir mais de 30 metros e pesar até 200 toneladas, maior inclusive do que qualquer um dos dinossauros que há milhões de anos habitaram a Terra.

Vamos seguir uma destas baleias em sua viagem pelos mares antárticos. Ou melhor, vamos seguir o seu gigantesco cocô líquido. O carbono que ela engoliu em forma de krill vai estar ali. Parte dele vai permanecer “trancada” no fundo do mar, onde não nos causa nenhum mal. Outra parte vai subir à superfície e nutrir o oceano, alimentando os fitoplânctons, que serão então mais numerosos. As baleias, estas maravilhosas criaturas viajantes, são as grandes fertilizadores dos oceanos. Elas sobem e descem, indo de grandes profundidades à superfície e vice-versa, fazendo um papel semelhante ao das minhocas na terra. E assim vão fertilizando todo o caminho e abrindo espaço para mais vida. Mais fitoplânctons, mais fotossíntese, mais oxigênio para a atmosfera, mais comida para o krill, mais krill para a baleia, o pinguim, a foca e todos os outros. O ciclo se encerra ―e se repete.


Na terra, o cocô também tem destaque. Os pinguins comem o krill nas águas, mas fazem cocô em terra firme. Este cocô cor de rosa serve de nutrição para a terra e é o alimento de outras espécies, como o Snowy, um pássaro branquinho como o nome sugere, muito simpático e curioso, que adora o krill que sobrou no cocô do pinguim. É assim que o krill que estava no mar vai servir de alimento para espécies de terra e para a própria terra.


E é assim que, mais uma vez, tudo recomeça.


Nunca pensei que me emocionaria diante de ilhas de merda cor de rosa. Mas me descobri profundamente comovida e agradecida a todo esse cocô. Quando a gente compreende o processo da natureza consegue ouvir a sinfonia. Todo esse ecossistema antártico é perfeitamente ―e o perfeitamente aqui é exato― sustentável. Mas não só.


Esse ciclo não só mantém toda a vida num território de extremos como também mantém a nossa vida. Os oceanos são responsáveis por pelo menos 50% da captura de dióxido de carbono. Dizendo de outro jeito, isso significa que, não fossem os oceanos, haveria 50% a mais de carbono na atmosfera e o planeta já estaria tão quente que seria bem difícil, talvez impossível, viver nele. Sendo ainda mais direta: não fossem essas outras gentes que chamamos fitoplânctons, krill e baleia, tocando a vida, o planeta seria um forno.


É lindo. Plantas e animais apenas vivem e tornam o clima do planeta essa maravilha que fez da Terra o que ela foi durante a trajetória de nossa espécie. Qual é o problema, então? Nós, é claro.

No passado quase acabamos com as baleias, convertemos pinguins em óleo, fizemos coisas que hoje nos horrorizam, ou pelo menos horrorizam muitos. A questão é que no presente temos muito para nos horrorizar. Estamos colocando a população de krill em risco e comprometendo todo o ecossistema antártico. Pesquisas mostram que a crise climática está dificultando que os jovens krill cheguem à vida adulta. Para piorar o cenário, a pesca de krill está crescendo, especialmente com barcos pesqueiros do Chile, Noruega e China. Em 2018, uma investigação do Greenpeace na região de Discovery Bay, exatamente onde estamos neste momento, mostrou que mesmo a pesca supostamente regulamentada trapaceia para acabar pescando mais krill do que é permitido.


O krill está em vários produtos onde lemos aquela palavra mágica ―ômega 3. Fique atento. Busque outras fontes de ômega 3. É também usado em comida de peixe de aquário ou como isca de pesca desportiva, assim como em produtos da indústria farmacêutica. Parece óbvio para um animal humano do século 21 que matar baleias é algo monstruoso. Faz parte de nossa sensibilidade contemporânea, depois de muitas campanhas e debates e de levar algumas espécies de baleias a muito perto da extinção. Mas quem está preocupado com um bichinho pequeno e esquisito, pelo qual não sente nenhuma empatia?


Em 2015, segundo um relatório do Greenpeace, a pesca de krill movimentava mais de 200 milhões de dólares. Com a sua experiência sobre a espécie humana, você acha que aquela minoria que lucra, parte dela abrigada em países que posam de defensores do meio ambiente, vão parar de arrancar krill da Antártida e de todos os lugares? Pois é.


Assim, só a mobilização de cada um, junto com outros, pressionando as autoridades para criar políticas públicas de proteção na Antártida e em todos os oceanos, pode mudar esse cenário. Parar de consumir produtos com krill é também uma decisão de sobrevivência mais ampla. Se você não comprar, não há mercado para os produtos feitos com krill. Sem mercado, não há pesca. E o krill pode tocar a sua vida. E salvar a nossa.


A redução da população de krill está reduzindo a população de algumas espécies de pinguins, como os pinguins de barbicha (chinstrap), e pode colocar em risco todas as espécies de animais que tem o krill como base da sua alimentação. Mas, se você não se importa com baleias e pinguins, precisa se importar com seus próprios filhos ou com os filhos dos outros animais humanos. Sem krill, o processo de captura de dióxido de carbono da atmosfera promovido pelos oceanos está comprometido.


“A pesca de krill na Antártida não é suficientemente regulada, o que faz com que baleias e pinguins tenham que competir com a indústria pesqueira pela sua principal fonte de alimento, colocando em risco a sobrevivência desses animais”, diz a brasileira Helena Spiritus, bióloga e chefe da expedição do Arctic Sunrise que acompanho como jornalista convidada. “Regiões como a Antártida precisam ser protegidas de atividades tão destrutivas, que colocam em risco o frágil equilíbrio dessa ecossistema único.”

Helena é uma daquelas raras pessoas em que os olhos brilham quando pronuncia a palavra “krill”. Quando menciona fitoplânctons, as pupilas dessa mulher bonita de Ribeirão Preto que hoje trabalha no escritório de Hamburgo do Greenpeace fazem um duplo twist carpado. Ela me mostra várias fotos de fitoplânctons em um instagram do celular como alguns mostram seus cachorros ou bebês. E se enternece com suas criaturas. Seria bom se o mundo tivesse mais Helenas. E fico pensando o quanto sua família deve se orgulhar dela.


Cientistas e organizações ambientais como o Greenpeace defendem a criação de uma rede de santuários marinhos que cubra pelo menos um terço dos oceanos. “Esses santuários são essenciais para garantir a recuperação da biodiversidade marinha, o que beneficiaria inclusive a pesca em áreas designadas devido à volta dos estoques pesqueiros”, diz Helena. Essa é uma causa na qual todos nós devemos nos engajar de imediato, ainda que seja por egoísmo. Nosso futuro depende disso. Desse bichinho esquisito chamado krill e de todos os outros que movimentam essa cadeia de acontecimentos como notas na partitura de uma sinfonia que nem Mozart seria capaz de escrever.


A Antártida é algo grandioso, muito mais do que sou capaz de contar, muito mais do que qualquer foto ou vídeo é capaz de mostrar. Toda a beleza superlativa desse continente maior do que a Austrália existe por causa de seres muito pequenos como os fitoplânctons e os krill. Nossa vida no planeta é possível por causa desses seres diminutos, e em especial desta coisica com cara esquisita que finge ser camarão. Depois de 10 dias testemunhando a comovente complexidade da natureza, tudo o que eu peço é: deixem as baleias, as focas e os pinguins fazerem seu cocô em paz.


Fonte: El País Global

3 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page