A fusão das gigantes Monsanto e Bayer levanta uma questão vital - que tipo de agricultura realmente queremos?
A menos que surja um grande obstáculo nos próximos dias, uma empresa incrivelmente poderosa obterá, em breve, licença para dominar a agricultura mundial. Após um aceno positivo de Donald Trump, um poderoso lobby na Europa e muita persuasão política em vários continentes, o caminho foi liberado para que a Monsanto, a maior empresa de sementes do mundo, seja comprada pela Bayer, o segundo maior grupo mundial de pesticidas, por estimados 66 bilhões de dólares.
A fusão foi chamada tanto de “casamento celebrado no inferno” como de “importante acontecimento para a segurança alimentar”. Através de suas muitas subsidiárias e de seus braços de pesquisa, a Bayer-Monsanto terá um impacto indireto para todos os consumidores e um impacto direto para a maioria dos agricultores na Grã-Bretanha, na União Europeia e nos EUA. O grupo controlará efetivamente quase 60% do suprimento mundial de sementes, 70% dos produtos químicos e dos agrotóxicos usados %u20B%u20Bpara cultivar alimentos e a maioria dos traços genéticos de culturas transgênicas do mundo, bem como grande parte dos dados sobre o que os agricultores cultivam e onde, e os resultados da produção.
A empresa será capaz de influenciar que alimentos a maior parte do mundo cultivará e como, afetando o preço e o método como serão cultivados. Mas a aquisição é apenas a última de uma trinca de grandes fusões de empresas de sementes e pesticidas. Com o apoio dos governos, e respaldadas pelas leis do comércio mundial e pelas leis de propriedade intelectual, a Bayer-Monsanto, a Dow-DuPont e a ChemChina-Syngenta foram autorizadas a controlar grande parte do suprimento mundial de sementes. Alguém poderia pensar que essas fusões deixariam o governo em alerta, mas os partidos políticos na Grã-Bretanha são muito voltados para dentro, e como a maioria dos agricultores nos países ricos já compra suas sementes das multinacionais, os movimentos de oposição mal foram ouvidos.
Em vez disso, a contestação vem de nomes como Debal Deb, um pesquisador indiano que planta culturas esquecidas e é a antítese da Bayer e da Monsanto. Enquanto elas se concentram no desenvolvimento de um pequeno número de espécies e variedades de sucesso, Deb cultiva o máximo de espécies possível e distribui as sementes.
Este ano ele está cultivando o impressionante número de 1.340 variedades tradicionais de arroz “do povo” indiano em terras doadas a ele em Bengala Ocidental. Mais de sete mil fazendeiros em seis estados receberão as sementes, com a condição de cultivá-las e distribuir algumas.
Esse compartilhamento de sementes crioulas, ou variedades locais, não é filantropia, mas a extensão de um antigo sistema de agricultura mutualizada que proporcionou estabilidade social e diversidade alimentar a milhões de pessoas. Ao selecionar, cruzar e depois trocar suas sementes de forma contínua, os agricultores desenvolveram variedades por seu aroma, sabor, cor, propriedades medicinais e resistência a pragas, secas e inundações.
O banco de sementes comunitário de Deb é um dos últimos repositórios vivos de centenas de variedades indianas de arroz. É também um ato de resistência ecológica e política contra o imenso alcance e concentração de grupos como a Monsanto e a Bayer.
As empresas argumentam que somente a consolidação pode levar ao desenvolvimento de melhores variedades de sementes e às inovações necessárias para evitar a fome global e a desnutrição, enquanto a população mundial se prepara para chegar a 10 bilhões em algumas décadas.
Por inovação elas se referem às novas tecnologias de bioengenharia “avançada”, como transgenia, Crispr, edição genética e bio-fortificação. A história, no entanto, é eloquente em apontar justamente o oposto. É muito mais provável, dizem ambientalistas e grupos agrícolas dos países em desenvolvimento, que a competição seja limitada e que o controle legal e biológico das empresas de sementes sobre a agricultura global se torne mais rigoroso. O pequeno agricultor, que tradicionalmente alimentou o mundo e deu às sociedades suas ricas culturas alimentares, ficará ainda mais ameaçado.
Quarenta anos atrás, agricultores e grupos de consumidores podem ter recebido bem as potenciais oportunidades oferecidas pela agrociência e pelas grandes fusões empresariais. Hoje, porém, não há mais sentido para o agro-otimismo. O rendimento da maioria das culturas de bases aumentou muito pouco nos últimos anos, sementes e os herbicidas estão cada vez mais caros, e os benefícios prometidos pelas novas safras industriais para a saúde, a segurança e a nutrição não se concretizaram.
Em vez disso, a poluição agrícola aumenta, a perda de biodiversidade agrícola continua e, quase 30 anos e muitos bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento depois de a Monsanto ter chegado à Europa prometendo alimentar o mundo, ainda há cerca de 800 milhões de pessoas desnutridas, nenhum entusiasmo público pela agroindústria e cinismo aberto acerca das motivações corporativas.
Os governos do Reino Unido e dos Estados Unidos, juntamente com alguns grandes agro-filantropos, como a Fundação Gates, ainda gastam bilhões de dólares por ano em agricultura de alta tecnologia, mas a maré pode estar virando em direção a soluções mais simples e tradicionais.
Quase 10 milhões dos agricultores mais pobres usam hoje o sistema de intensificação do arroz (SIA – ou SRI em inglês), que vem confirmando aumentar drasticamente a produção de arroz, trigo, batata e outras culturas, estimulando as raízes das plantas. Técnicas agroflorestais que cultivam árvores e arbustos entre as plantações se mostram mais produtivas, assim como a restauração do solo. Grupos de produtores na Índia e na América Latina estão desenvolvendo suas próprias cooperativas de sementes para evitar os novos monopólios corporativos.
Se fracassarem, o futuro da alimentação parece estar nas mãos de três empresas gigantes atreladas, de uma forma ou de outra, à modificação genética. As empresas podem dizer que isso não é um problema. O presidente da Bayer, Werner Baumann, prometeu recentemente “fortalecer seu compromisso na área de sustentabilidade”, acrescentando: “A agricultura é importante demais para que se permita que diferenças ideológicas paralisem o progresso”.
Ainda assim, cegos pela promessa de novas tecnologias, governos e órgãos de pesquisa têm prestado pouca atenção ao conhecimento tradicional dos agricultores. Eles estão perdendo esse vasto acervo, necessário para que o mundo consiga se adaptar às mudanças climáticas e ao crescimento populacional. Debal Deb, que vive com pouco dinheiro e depende de amigos para conseguir um financiamento mínimo para sua pesquisa, publicou pesquisas sobre variedades de arroz capazes de crescer em solos alagados com mais de 3 metros de profundidade, outras submersas entre de 1,2 a 1,5m, dezenas de variedades tolerantes à seca, e muitas ainda capazes de crescer em água salobra.
Algumas variedades seriam muito mais ricas em nutrientes como ferro, zinco, magnésio, ômega 3 e riboflavina do que qualquer alimento desenvolvido pelas gigantes de sementes. Mas a falta de confiança e financiamento é tanta que Deb mantém em segredo a localização exata de sua fazenda e só dá suas sementes para pessoas que respeita. Ele afirma que já foram enviados espiões para roubar suas sementes, que as empresas querem patentear, suprimir ou reivindicar como propriedade delas.
Em vez de trabalhar em um instituto de pesquisa com acesso a um bom financiamento, como seria de esperar de um estudioso de biotecnologia da Fulbright, Deb hoje faz parte do movimento mundial dos agricultores que luta para limitar o controle das corporações e redefinir o que é conhecimento, e a quem ele pertence. Como tantos outros, ele descobriu que a melhor maneira de preservar o conhecimento agrícola tradicional é plantar e distribuir sementes. Ele acredita que este é o futuro. Oremos para que ele esteja certo.
John Vidal é ex-editor de meio ambiente do The Guardian
*Publicado originalmente no The Guardian | Tradução de Clarisse Meireles
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Quem-deve-alimentar-o-mundo-pessoas-de-verdade-ou-multinacionais-sem-rosto-/4/40506
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