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Renda Universal, nova aposta do feminismo?

Invisível e sem remuneração, trabalho doméstico consome tempo e liberdade das mulheres. Para se livrarem do “patrão de casa”, elas precisam superar um sistema que flerta com o desemprego em massa e o fascismo.

Por Nuria Alabao | Tradução: Rôney Rodrigues | Imagem: Tarsila do Amaral

Todas sabemos: a crise continua. Crise econômica, mas também ecológica, política e de cuidados. Alguns falam de crise civilizatória. (Já não acreditamos que tudo melhorará amanhã na História). Dessa crise, conhecemos as consequências mais obscuras: a emergência da ultradireita em todo o planeta, o anoitecer do século está apenas começando. Uma ultradireita que diz oferecer uma saída radical, uma saída violenta e reacionária a essa crise sistêmica, e à indeterminação e ao medo de nossas vidas por um fio. Precisamos de propostas ousadas. Estamos obrigadas a criar meios que nos levem a outro modelo de sociedade, mas também a incorporar os movimentos tornem isso possível. Decrescer redistribuindo recursos e dinheiro; frear as mudanças climáticas que ameaçam toda a vida; reduzir a jornada de trabalho e reparti-lo; vencer batalhas contra o capital que nos permitam conquistar novos direitos — como uma Renda Básica Universal (RBU), que nos dê mais poder e mais liberdade…


Nesse anoitecer do século que se aproxima, o feminismo desponta como o movimento mais capacitado para fazer essa luta: por seu nível de mobilização e de penetração social, por sua capacidade discursiva. Mas por que nos dias de hoje, entre as demandas do feminismo mais autônomo, não se encontra a Renda Básica Universal? Lembremos, todas e todos, incondicionalmente – sem nenhum requisito de emprego ou obrigatoriedade em buscá-lo – teriam um mínimo necessário para viver. Uma medida que permitiria à maioria das pessoas respirar — e sem dúvida ampliaria a autonomia de todas as mulheres, principalmente as mais precárias. O fato é que no feminismo há algumas reticencias a respeito dessa proposta. Têm a ver com com a configuração das lutas pela emancipação das mulheres desde os anos 1960.


Salário é emancipação?

Nos anos 60 e 70, o feminismo – tanto o liberal como boa parte do marxista clássico – lutou para que as mulheres pudessem trabalhar fora de casa com um salário. É que em nossa sociedade renda equivale a independência e liberdade, assim como também a visibilidade e o poder social. As conquistas desses feminismos, e a onda de que fizeram parte, foram importantes porque mostraram a recusa das mulheres a seguir trancadas dentro de casa. Suas reivindicações acentuavam nosso “direito a trabalhar”. Para as liberais, porque significava o direito a “ascender socialmente” – por isso se concentravam, e ainda se concentram hoje, em política com teto de vidro. Igualdade, para elas, era igualdade de oportunidades – no trabalho –, não de condições e possibilidades de vida.


Muitas marxistas ortodoxas inseridas em organizações de esquerda acompanhavam as liberais, na viagem ao mundo do trabalho remunerado. Para elas, o âmbito laboral foi sempre um espaço de organização política por excelência – onde se constituía a classe trabalhadora – e, por isso, muitas viam o trabalho assalariado como única possibilidade para as mulheres promoverem conflitos verdadeiramente comparáveis com os que reivindicavam os homens nas fábricas. Nem sempre entendiam outras formas de enfrentamento ao capital, nem localizavam os numerosos conflitos desencadeados pelas limitações que o capitalismo impõe à reprodução da vida: lutas por moradia, contra a escassez ou os preços elevados dos alimentos, por serviços públicos ou urbanos, etc…


Muitas mulheres da classe trabalhadora, organizadas à época, contestavam ambas tendências empregocêntricas: “Nós já trabalhamos fora de nossas casas, muitas vezes limpando as suas”, mas o que fazemos em nossas casas também é trabalho. Por exemplo, as Welfare Mothers nos EUA dos anos 60. Construíram um movimento de afrodescendentes que se organizaram para melhorar os auxílios estatais para famílias monoparentais chefiadas por mulheres de baixa renda. Diziam: “Vocês nos dão subsídios como esmolas, nos chamam de parasitas sociais, mas ignoram o trabalho que fazemos em nossas casas e os benefícios que proporcionamos ao Estado para a manutenção da força de trabalho nacional”. Denunciavam, por exemplo, o paradoxo de reconhecer o cuidado infantil como trabalho só quando se tratava dos filhos de outras e não dos seus. (Ou seja, quando se pagava um salário). Ou o absurdo de que, se lhes retiravam a tutela de seus filhos por não poderem mantê-los, as mães adotivas recebiam mais ajudas do que as que o Estado teria destinado a elas mesmas, para o manter as crianças que lhes foram tiradas. Denunciavam o inferno surrealista em que, às vezes, se convertia o sistema de ajudas sociais.


Sim, o trabalho de casa, também ele o não remunerado, é trabalho. O feminismo marxista de tendência autonômica – gente como Silvia Federici, Mariarosa Dalla Costa ou María Míes – se encarregou de teorizar amplamente essa questão. O capitalismo conseguiu criar uma hierarquia laboral – trabalho remunerado fora de casa acima do trabalho gratuito “por amor” em casa – que lhe permitiu ocultar áreas inteiras de exploração – naturalizando-as e invisibilizando-as. Estas feministas descobriram que o salário é um mecanismo de regulação não somente no âmbito da produção, mas também do mundo assalariado, como acontece com o trabalho de casa, que fica subordinado ao salário do marido – o patrão da casa. (Isso estava na base da divisão sexual do trabalho sobre a qual se ergueu o restante das desigualdades).


Dinheiro é autonomia

Hoje o salário familiar – o do marido que sustenta toda a família – já mal existe. São necessários mais dois – ou mais – para sobreviver. Em casa também nos esperam, muitas vezes, as mesmas tarefas que queríamos evitar. Vivemos asfixiadas. Além disso, é cada vez mais difícil conseguir boas condições de trabalho ou, na realidade, qualquer trabalho. Já sabemos que o “pleno emprego” – que nunca existiu realmente – hoje simplesmente se apresenta como um utopia, ou talvez seja só uma mentira que permite ir buscando entre “trabalhos de merda“. (Assim os chama David Graeber). Empregos que, cada vez, ocorrem em condições mais degradantes e instáveis — e, claro, os piores são feminizados. É verdade que a saída maciça das mulheres dos lares por um salário nos deu certa independência em relação aos homens que dormem conosco, mas nos acorrentou a outros patrões, com quem não dormimos. No capitalismo, o trabalho não é uma questão de emancipação, mas de exploração — e não há prazer, orgulho ou criatividade alguma em ser explorada. Ao menos não para a maioria, a de trabalhos feminizados e precários.


Assim, ainda que existam muitas dúvidas a respeito da Renda Básica, a obra das feministas pós-marxistas serve para pensar de novo essa questão. O trabalho não remunerado para o sustento da vida, de “reprodução da força de trabalho”, é trabalho e, por isso, deveria ser remunerado enquanto exista um capital que extraia benefícios dessa mesma mão de obra que ainda segue sendo necessária. (O capitalismo ainda depende do trabalho reprodutivo não assalariado para conter o custo da mão de obra). Ou seja, temos que encontrar mecanismos de redistribuição de todas as riquezas que produzimos coletivamente, tanto nos lares quanto fora deles. Há que levar em conta que cada vez maiores os trabalhos e a produção social não-assalariada – desde a criação da informação, significados e cultura nas redes, até as bolsas de estudos ou o trabalho informal ou marginal. A Renda Básica poderia ser um mecanismo que, somado à defesa e ampliação dos serviços públicos – salários indiretos –, contribuiria para dar-nos mais poder, mais tempos e mais liberdade.


O feminismo mais clássico, o empregocêntrico, critica a Renda Básica porque considera que uma medida só pode ser considerada feminista se contribui para a igualdade no quesito laboral. No entanto, deveríamos dizer que será feminista ou não na medida em que proporcionar mais autonomia às mulheres, para a maioria de nós. E por acaso não é isso que faz o dinheiro em nosso mundo? Talvez em um futuro sejamos capazes de criar outro tipo de sociedade — mas, no momento, renda é autonomia. No caso das mulheres, dispor de recursos também implica em menor dependência em relação aos machos: mais possibilidades de sair de uma situação de violência machista em suas relações, por exemplo, ou de não ter que aguentar trabalhos de merda ou abusos sexuais no âmbito laboral por medo de serem despedidas.


“Queremos dinheiro, trabalho nos sobra”, bradavam as mães e pais do bloco infantil na manifestação espanhola do 8 de Março assim como nos anos 70 algumas feministas reclamavam: “Queremos ter os filhos que desejamos e não só o que podemos manter”. A rejeição ao trabalho do lar não implica uma rejeição à reprodução — mas à reprodução nos termos do capitalismo, uma rejeição à forma de subordinação dessas tarefas dentro de uma forma de organização já determinada, apontavam Selma James e Maria Rosa Dallacosta. Não é que não queiramos criar, mas que não queremos fazê-lo nas condições que nos impõe esse sistema. Que esse cuidado seja também mais igualitário entre homens e mulheres, e entre o público e o “familiar”, dependerá de diversas lutas que ainda temos que levar em frente.


Porque nenhuma medida de política institucional que possamos imaginar vai transformar completamente a sociedade, e tampouco vai conseguir automaticamente a igualdade total. Nenhuma estratégia é definitiva, nenhuma vai acabar com o capital ou o patriarcado. Servem ou não na medida em que permite mudar as relações de poder e lutar com maior capacidade. A Renda Básica Universal pode contribuir para isso, e também nos proporcionar tempo a mais, para impulsionar as lutas necessárias para transformar a sociedade — ou, ao menos, para frear essa saída violenta à crise sistêmica que chamamos de pós-fascismo.


Fonte: Outras Palavras

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