Nascido em 1931 em Paris, Samir Amir morreu em 12 de agosto, aos 87 anos, após uma vida consagrada como intelectual (neo)marxista que se destacou pelas suas análises brilhantes das modalidades reprodutivas do sistema político - economia global nas diversas fases de sua formação e funcionamento histórico.
*Diante de sua perda, publicamos um artigo do eminente pensador chamado: “Economia de mercado ou capitalismo financeiro oligopólico?". Foi publicado originalmente pela revista semestral da Boitempo, a “Margem Esquerda”, pode-se conferir em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/08/13/samir-amin-1931-2018/
Economia de mercado ou capitalismo financeiro oligopólico?
Por Samir Amin.
Mitologia de mercado e realidade capitalista
“Capitalismo” e “economia de mercado” não são sinônimos, como o discurso político dominante e economistas convencionais teriam um dia acreditado. A característica específica do capitalismo, como um sistema, é a de que se baseia na propriedade privada dos meios de produção; uma propriedade que por definição é de uma minoria privilegiada. Essa propriedade privada (diferentemente da propriedade da terra) tomou a forma de direitos exclusivos sobre equipamentos importantes ligados às modernas tecnologias de produção, da primeira revolução industrial do final do século XVIII aos dias atuais. A maioria dos não-proprietários é obrigada a vender a sua força de trabalho: o capital emprega trabalho; o qual não tem livre-arbítrio sobre os meios de produção. A divisão burguesia/proletariado define o capitalismo; o mercado é somente a forma administrativa da economia social do capital.
Essa definição coloca a especificidade do capitalismo não “dentro do mercado”, mas “além do mercado”, no “monopólio” que a propriedade privada representa. Para Marx, e, após dele, Braudel e até Keynes em alguma medida, isso era um fato totalmente notório. Entretanto, hoje, a ideologia dominante pretende ignorar essa importância decisiva, ideologicamente substituindo-a pela noção abstrata de “mercado”.
A burguesia se modificou no curso do desenvolvimento do capitalismo. Embora essa classe sempre tenha exercitado coletivamente o poder dominante econômico, social e político em todos os períodos da história moderna, facilitando sua reprodução e desenvolvimento, também tem sido fortemente hierarquizada internamente. Sempre existiram facções que governaram as esferas dominantes do sistema econômico, capazes de exercer o poder hegemônico sobre a classe durante algum tempo e que, em tais casos, cobram uma taxa sobre o lucro coletivo produzido pela exploração do trabalho; uma decisiva “renda monopolista”. Aparentemente, essa cobrança tem se dado por mecanismos de mercado. Mas isso é só uma aparência, sendo o próprio monopólio social e político a verdadeira forma pela qual a apropriação dos recursos se apresenta.
Em certas condições, o poder desse monopólio foi reduzido pela intervenção política dos estratos de “médios” (e até de “pequenos”) proprietários, com a conseqüente emergência de uma ampla aliança burguesa – necessária, entre outras coisas, pelo imperativo de enfrentar as classes populares. Esse tem sido o caso em alguns períodos no qual a busca por uma ampla aliança para estabilizar o sistema tem surgido em bases momentâneas para um “compromisso social capital/trabalho” menos desconfortável aos trabalhadores. Tal foi o caso do capitalismo do Estado de Bem-Estar Social, após a Segunda Guerra Mundial. Isso é ainda importante para situar os conflitos sociais e políticos nas específicas condições relativas à cada uma das fases da história concreta do capitalismo atualmente existente. As características intrínsecas de uma determinada fase são produtos complexos das transformações internas do sistema produtivo (tecnologias, grau de descentralização do capital etc.) e da correlação de forças sociais e políticas do momento em consideração.
O estrato dominante do capital deveria ser caracterizado como “capital financeiro oligopólico”, não no sentido de se referir aos capitalistas operando no setor financeiro do sistema (bancos e outros), mas no sentido dos capitalistas que têm acesso privilegiado ao capital necessário para o desenvolvimento de suas atividades, algo que pode se referir a vários setores da economia (produção industrial, comercialização, serviços financeiros, pesquisa e desenvolvimento). Esse acesso privilegiado lhes dá uma autoridade poderosa e particular no delineamento dos mercados que eles regulam para o seu lucro. São especificamente esses grupos oligopolistas da burguesia que, na presente fase, dominam o mercado financeiro (principalmente, as taxas de juros) e a economia global (especialmente, a taxa de câmbio). Eles comandam os instrumentos decisivos nos setores dominantes da economia: investimentos externos, o grande comércio internacional das commodities, pesquisa de alta tecnologia e fusões.
O poder do capital financeiro oligopólico é tamanho que compete e contrapõe seus próprios interesses aos do Estado – o representante coletivo do capital e o administrador do bloco social hegemônico. É esse bloco social hegemônico, sob a direção do Estado, que assegura a valorização e acumulação do capital. Foi esse bloco que, sob algumas circunstâncias (de Bem-Estar Social), chegou tão longe a ponto de considerar as necessidades do compromisso capital/trabalho.
Em algumas circunstâncias, o Estado intervém para restringir os poderes das altas finanças. Isso pode lhe dar os meios para regular os mercados financeiros. O banco central, então, exerce decisiva autoridade para determinar taxas de juros, controlar relações internacionais através do poder de variar a cotação da taxa de câmbio etc. O Estado algumas vezes vai além e impõe sua tutelagem sobre pesquisa e decisões acerca dos grandes investimentos. Essas práticas podem ultrapassar as meras regulamentações dos gastos públicos e do endividamento, assim como das chamadas políticas monetárias. O “velho” Keynes lutou para encorajar tais práticas.
Todavia, em outras circunstâncias, como no atual neoliberalismo, as altas finanças conseguem domesticar o Estado e reduzi-lo à condição de instrumento a seu serviço. As privatizações sem limites, a “desregulamentação” de mercados (entendida como a abolição das intervenções reguladoras do Estado, abdicando do controle dos mercados em benefício das altas finanças) e a retirada do Estado são então orquestradas e organizadas em um efetivo cluster doutrinal e ideológico.
Nós estamos vivendo esse tipo de era. A razão para tal evolução não reside nas transformações objetivas do sistema produtivo relacionadas à concentração e à centralização do capital, às revoluções tecnológicas correntes etc. Essas transformações são reais e expressam seu poder na forma pela qual a autoridade de comando das altas finanças é exercida. No entanto, essencialmente as causas sociais e políticas são as origens da reviravolta na correlação de forças que tem permitido o controle direto do Estado pelas altas finanças. Nesse ponto, nós temos que olhar a erosão e exaustão das formas de regulação da reprodução social e econômica típica do período pós-Segunda Guerra. Essas formas – o Estado de Bem-Estar no Ocidente desenvolvido, o socialismo atualmente existente no bloco oriental, nacional-populismo no terceiro mundo – ditaram as relações sociais no interior das três constelações geopolíticas em consideração e suas relações internacionais. Esse capítulo da história ficou para trás. A exaustão – ou mesmo o colapso – dos sistemas do pós-guerra reverteu a correlação de forças, e resultou em vantagens diretas para o capital. As altas finanças encontraram-se capazes de agarrar os postos de comando.
Financeirização e poder
A “financeirização do sistema” é nada menos que a expressão da nova política econômica governada pelos interesses do capital financeiro oligopólico. Nós devemos a melhor análise dessa estratégia – porque é uma estratégia e não uma “necessidade objetiva” das altas finanças – a François Morin (ver: Le nouveau mur de l’argent, Seuil, 2006). Eu apresentarei a seguir os pontos essenciais da sua análise.
Há um grandioso oligopólio composto de cerca de dez bancos internacionais (seguidos por cerca de vinte outros com menor capacidade), uma rede de investidores institucionais (fundos de pensão e fundos de investimentos coletivos, entre outros) administrados por subsidiárias ou associadas a esses bancos, companhias de seguro e grupos de grandes firmas, também em grande medida ligadas aos bancos dominantes. Esse oligopólio financeiro é o chefe efetivo dos cinqüenta ou cem maiores grupos financeiros, industriais, do agronegócio, comércio e transporte.
O oligopólio não é governado pelas leis da “competição”, mas por uma combinação de competição e acordos oligopolistas – freqüentemente chamados de “consensos” – que são por si próprios instáveis no sentido de que um momento dominado por consenso (o uso do “nosso”) pode ser seguido por umoutro de competição feroz. Isso tomaria a forma de conflito entre Estados já que, embora cada uma das unidades que compõe o oligopólio opere na base transnacional da economia mundial, cada um deles continua nacional pela aderência ao seu comando superior à burguesia de um Estado particular.
O quase-monopólio que isso representa permitiu que as altas finanças da tríade (EUA, Europa e Japão) tomassem o controle do mercado financeiro global, privando os ministros das finanças e bancos centrais de suas funções como autoridades capazes de fixar taxas de juros, segundo seu julgamento. Na fase precedente do capitalismo (o pós-guerra), políticas de Estado, via bancos centrais, determinaram que as taxas de juros fossem geralmente negativas em termos reais (abaixo da inflação). Decisões de investimento, amplamente livres das estruturas de endividamento financeiro, foram administradas diferentemente e de outras formas: a expansão do volume de atividades e produção de uma firma por autofinanciamento, acesso aos empréstimos bancários (em sua maioria públicos) e auxílio estatal. Hoje dizem que aquelas formas não permitiam a “ótima alocação” do capital. O que as autoridades econômicas deliberadamente não disseram é que o sistema que o substituiu – o controle dos mercados pelas altas finanças – não é mais capaz de garantir essa “ótima alocação”. Invariavelmente, é um conceito falso, uma dedução de uma doutrina (disfarçada de teoria) que afirma as propriedades atribuídas a um “mercado” abstrato. A teoria daquela abstração generalizada de mercado é de um capitalismo imaginário que substitui o existente.
As altas finanças dominantes, então, definiram como objetivo determinar as taxas de juros em um nível alto (positivo) – o que têm conseguido. A meta é, por meio do controle do mercado financeiro exercido pelo oligopólio, impor uma significativa taxa no lucro (o ganho de valor – grosseiramente o PIB menos salários e outras remunerações do trabalho) para beneficiar as altas finanças. Essa taxa não garante minimamente uma alocação de capital como economistas convencionais fazem acreditar. Tampouco propicia um crescimento elevado. O que ocorre é exatamente o oposto: trata-se da fonte primária da relativa letargia da economia produtiva. Nós sabemos que as taxas de crescimento atual estão em níveis que dificilmente atingem metade daquelas do Estado de Bem-Estar.
Por outro lado, a crescente intervenção das altas finanças nos países do Sul foi imposta a Estados mais ou menos relutantes pelo FMI [Fundo Monetário Internacional] e pela OMC [Organização Mundial do Comércio], entre outros, como instrumentos do imperialismo coletivo da tríade. Os meios das conquistas eram: dívida, promessas (raramente cumpridas) de abertura dos mercados do Norte aos produtos do Sul, e a abertura das contas de capital nacional para as altas finanças, além da submissão aos mercados de câmbios pseudoflutuantes. As intervenções das altas finanças nesses mercados de câmbios eliminaram, praticamente, os recursos dos Estados nacionais no Sul e permitiram que as finanças transnacionais determinassem as taxas de câmbio, as quais elevaram ao máximo suas taxações sobre a produção da periferia.
Alguns poucos indicadores, tomados de François Morin, fornecem uma idéia da extensão da dominação da nova plutocracia financeira da tríade sobre a economia mundial.
Os números acima obviamente não são rigorosamente comparáveis. (Essa é a razão da linha separando o PIB mundial das transações financeiras mundiais.) Transações internacionais (das quais apenas uma pequena porção se refere ao comércio internacional) e transações de instrumentos derivativos financeiros são apresentadas em termos nominais. Elas não têm clara relação com o cálculo do PIB mundial. Entretanto, o encolhimento das transações associadas ao PIB mundial em relação às transações financeiras mundiais é, ao menos intuitivamente, óbvio.
As transações de bens e serviços (PIB mundial) representaram 3% das operações monetárias e financeiras em 2002. Transações referentes ao comércio internacional, dificilmente, chegaram a 2% das operações internacionais. Negociações de compras e vendas de cotas e ações em mercados organizados (operações que supostamente demonstrariam a excelência dos mercados de capitais) totalizam apenas 3,4% das negociações monetárias! São as transações de produtos securitários – demandados para cobrir os riscos do operador – que “literalmente explodiram”. Morin, acertadamente, chama nossa atenção para esse fato importante.
Catástrofe financeira iminente
A “financeirização” da economia mundial descrita anteriormente (tomada de Morim) não é o meio de garantir a melhor alocação de recursos, nem de encorajar o crescimento. Entretanto, seria ao menos “viável” no sentido restrito da vantagem de reduzir o risco de uma catástrofe financeira?
Morim demonstrou que isso é muito ilusório. As altas finanças têm inventado meios que permitem aos operadores de mercados financeiros protegerem-se individualmente de muitos dos riscos em consideração. A invenção dos “instrumentos financeiros derivativos”, dos quais numerosas e complexas técnicas são somente conhecidas por aqueles operadores, responde parcialmente a essa necessidade. Tal invenção tem estimulado fluxos financeiros na escala mencionada acima. A taxa das operações de securitização em relação à produção e ao comércio internacional era de 28 para 1 em 2002 – desproporção que vinha crescendo rapidamente nos últimos 20 anos de forma nunca antes verificada em toda a história do capitalismo. Mas a aparente redução para capitais individuais tem se transformado em um aumento do risco coletivo, que ultimamente atinge as unidades individuais do sistema. O indicador do crescimento daquele risco é dado pela expansão sem fim do setor financeiro, volume que foi multiplicado por dez na década de 1993-2003.
Diante da evidência do crescente risco de uma crise financeira mundial de escala incontrolável, as políticas econômicas e sociais aplicadas pelos Estados, seguindo a linha de dominação das altas finanças, são de transferir o risco do capital para o trabalho. Aqui, novamente, os meios são conhecidos: a reconstrução de um significante exército de reserva de desempregados, insegurança trabalhista, redução dos direitos e dos benefícios sociais dos trabalhadores e substituição das pensões indexadas por vários esquemas de investimentos financeiros. Esses meios são acompanhados por uma política de pseudo-solidariedade entre os setores da classe média, empregadores em geral e as altas finanças. Com o estímulo à poupança na forma de ações privadas e mercado de bônus, esperam criar uma aparente solidariedade. A “teoria” do capitalismo patrimonial – um capitalismo que, de alguma forma, seria propriedade de todos – tem sido construída para dar aparente credibilidade e legitimidade para a transferência desproporcional de risco aos “pequenos acionistas” e trabalhadores.
O sistema sob consideração, visto globalmente, se apresenta como um grande ídolo, mas com pés de barro. Ele certamente vai colapsar. Mas quando? Sob o efeito de quais maiores causas? Para o benefício de qual alternativa?
Instabilidade financeira – cuja ocorrência é sempre inesperada – não constitui, na minha opinião, a maior razão para a insustentabilidade do sistema cujas raízes são de natureza política e social. As políticas que acompanham a dominação das altas finanças levam a um indefinido crescimento da desigualdade na distribuição de renda. Além das conseqüências estritamente econômicas da evolução nessa direção que é estável e permanente – isto é, a tendência à estagnação do crescimento pela falta de demanda efetiva –, o modelo do capital financeiro oligopólico é socialmente intolerável e, provavelmente, será também politicamente intolerável. Em termos globais, o sistema leva a uma polarização acentuada, permanente dependência dos países do Sul ditos “emergentes” (China, Índia, Sudeste Asiático e América Latina) e a destruição (quase genocida) dos países ditos “marginalizados” (África em particular), atingindo os povos que perderam a sua utilidade para o processo de acumulação de capital e onde os recursos naturais (petróleo, minerais, madeira e água) interessam ao capital dominante. São muitos os motivos para acreditar que os conflitos sociais e políticos em todas as regiões do mundo, tanto no Norte como do Sul, e os confrontos internacionais (Norte contra o Sul) devem levar ao fim da atual dominação das altas finanças.
Altas finanças plutocráticas e poder monopolista
O capitalismo atualmente existente não é mais o que conhecíamos há apenas três décadas. Nós atingimos hoje uma fase de centralização do capital sem comparação, com aquela característica do capitalismo histórico durante os cinco séculos de seu desenvolvimento.
Monopólios têm sempre existido, desde sua origem na era mercantilista (companhias de navegação) passando pelo século XIX dominado pela ampla industrialização (no setor financeiro as “200 famílias” na França) e pelo fim daquele século com a emergência dos “monopólios” corporativos gigantes (como descrito por Hobson, Hilferding e Lenin). Todavia, não importa quão decisiva tenha sido a sua intervenção no plano econômico para a evolução global do sistema – e de fato sempre foi –, o capitalismo como um todo foi organizado na forma de milhões de companhias industriais e comerciais de médio porte e camponeses. Os fazendeiros ricos eram regulados por uma variedade de mercados (apesar de não serem “puros e perfeitos”, eram realmente competitivos) que em grande medida escapavam das intervenções dos monopólios. Estes operavam em certos setores reservados – grande comércio mercantilista, financiamento estatal, comércio internacional de commodities básicas, empréstimos internacionais e, mais tarde, alguns importantes setores de massa de produção industrial e comércio, banco e seguros. Essas áreas privilegiadas com monopólio de poder eram em grande maioria nacionais, apesar da sua expansão além das fronteiras. Tal situação deu às políticas de Estado verdadeira eficácia na administração da economia como um todo.
O capitalismo hoje é totalmente diferente. Somente um punhado de oligopólios ocupa todas as esferas dominantes na condução dos negócios nacionais e mundiais. Não são estritamente oligopólios financeiros, mas “grupos” com as atividades produtivas industriais, comerciais, de serviços e agronegócio, evidentemente, agregados pelas atividades financeiras. As finanças governam principalmente no sentido que o sistema é globalmente “financeirizado”, ou seja, dominado pela lógica financeira. São poucos grupos: ao redor de 30 gigantes, uns outros mil, e não mais. Nesse sentido, alguém pode falar sobre uma “plutocracia”, mesmo se aquela palavra pode preocupar aqueles que lembram seu abusivo uso pelos demagogos do fascismo.
Aquele grupo plutocrático domina a globalização corrente, formada (para não dizer “construída”) para servir somente aos seus estreitos interesses. Substituiu a antiga “divisão internacional (desigual) do trabalho”, baseada na contraposição centro/periferia, em uma geografia financeira – uma integração de “territórios” transnacionais. Essa geografia é produto de estratégias dos conglomerados, e não uma realidade externa a eles. Ele, por sua vezMolda o que se mostra como “comércio internacional” assim como o que se tornou realidade e em uma proporção crescente a transferência de riquezas em benefício de alguns grupos plutocráticos. O deslocamento, como analisada em suas várias maneiras por Charles Albert Michalet (ver La mondialisation, la grande rupture; Paris, La Découverte, 2007), constitui as formas de modelar o mundo.
Essa mesma plutocracia governa os mercados financeiros globalizados e é capaz de determinar as taxas de juros mais favoráveis para sua operação, constituindo uma massiva margem sobre o valor produzido pelo trabalho social – como diferenciais na taxa de câmbio também servem aos seus propósitos
Nesse contexto, milhões de companhias privadas ditas de “médio porte” (e até muitas “grandes”) e fazendeiros capitalistas não desfrutam mais de uma verdadeira autonomia em suas decisões. Eles são, de certa maneira, permanentemente forçados a se ajustarem às estratégias determinadas pela plutocracia. Essa situação é nova, qualitativamente diferente daquela que caracterizou o capitalismo histórico nas fases prévias do seu desenvolvimento. O mercado evocado pelos economistas convencionais não mais existe. É agora uma completa farsa.
Essa análise não é apenas minha; é amplamente compartilhada entre aqueles analistas críticos que recusam a se alinhar com o discurso convencional da economia dominante. A questão que mereceria ser colocada no centro da discussão seria saber se essa transformação é “final” ou, ao contrário, “insustentável”. A resposta a essa pergunta determina os pontos-chaves para nós.
Alguns – talvez muitos – consideram essa transformação como final, mesmo se ela é “desagradável”. A única coisa possível é ajustar, ou melhor, submeter esse movimento para dar algum espaço para novas considerações sociais, mas nada mais. A dominação seguida das estratégias desses grupos e o perfil baixo dos Estados no contexto da globalização de mercado devem ser aceitos. Isso está no centro da perspectiva dos socialdemocratas que se tornaram social-liberais. Alguns ainda vêem nessa alteração uma transformação “positiva” que, em si, indica um bom futuro. É discutido se o capitalismo constitui um horizonte insuperável (uma concepção que sublinha a opção social-liberal) ou se ele vai se superar através próprio do movimento globalizador (identificamos Negri nesse ponto). Ambas as perspectivas chegam ao mesmo ponto: não há necessidade de agir contra a transformação em consideração. Adeus socialismo, uma ultrapassada utopia do século XIX. Adeus marxismo.
Solidariedade entre todos os trabalhadores do planeta
Minha análise se distancia dessa. A transformação corrente é evidência do obsoleto (“senil”) estágio no qual o capitalismo se encontra; não apenas porque ele se tornou o inimigo da humanidade (e deve então ser revertido através de ação política consciente, se nós queremos escapar do pior), mas também porque aquela transformação é insustentável. Isso não é para ser entendido no sentido que os regulamentos impostos pelos grupos plutocráticos falharam em reduzir o “risco” de um colapso financeiro, mas, de algum modo, no sentido que eles inevitavelmente o agravaram. Em um sentido político geral, sua regulação é insuportável: socialmente, pelas classes trabalhadoras de todas as regiões do mundo; e, politicamente, pelos povos, nações e Estados da periferia (em particular países ditos “emergentes”). O retorno de um Estado afirmativo não deve ser, portanto, excluído como uma possibilidade (até uma probabilidade).
O maior paradoxo, para mim, é que análises que se crêem como sendo sinceramente democráticas não vêem a flagrante contradição entre a governança do mundo pela plutocracia agora vigente e os princípios fundamentais da democracia. De fato, o novo capitalismo plutocrático dos oligopólios financeirizados é o inimigo da democracia, esvaziando-a de conteúdo substantivo. A destruição corrente da democracia burguesa está sendo desenvolvida de modo sistemático pela classe política dominante, em particular em um “projeto” Europeu, que foi elaborado pelos seus fundadores, para tais propósitos. O discurso sobre o “indivíduo como sujeito da história” é mera fachada e legitimação de uma prática antidemocrática. Isso deveria ser imediatamente óbvio, que as estruturas econômicas administradas por grupos dominados pelo capital financeiro oligopólico de fato constituem “bens sociais”, ou seja, deveriam ser a “propriedade da nação” e administrados por ela. Nossos autodenominados democratas, supostamente representando os interesses daqueles abaixo na hierarquia social, correm para substituir a administração privada – como se os poderosos interesses financeiros realmente respeitassem a santidade da propriedade privada, que não a sua. Não é uma ilusão pensar que a administração dessas estruturas poderia ser assumida por um coletivo de acionistas pequenos? Somos nós tão inocentes para engolir a crença na superior eficácia da administração privada e o futuro fatalmente burocrático do Estado – como se suas realidades fossem o capitalismo racionalizado de Weber?
A realidade deveria abrir os olhos daqueles inocentes democratas. Poderiam suas admirações pelos grandes inovadores (Rockefeller, no passado, e Bill Gates, hoje) causar o esquecimento de que a maioria dos plutocratas é sua sucessora? Por qual racionalidade social eles deveriam ser permitidos a descartar tão exorbitantes poderes? Não existiria uma “burocracia privada” que não seria necessariamente menos esclerosada que a dos Estados? O Estado não teria também seus grandes inovadores (Colbert, no passado, e, hoje, os engenheiros que colocaram a empresa pública CFNF – Companhia Francesa Nacional Ferroviária – na vanguarda das ferrovias do mundo)?
Os democratas verdadeiros têm que entender que o grau atual de concentração do capital demanda a sua socialização. É fato que os termos nos quais os trabalhadores participarão na administração da economia nacional ainda ficaram para ser pensado. É verdade que a socialização democrática fora do mercado não exclui (ainda por um longo prazo) a iniciativa e propriedade de milhões de pequenas e médias empresas. A socialização dos altos comandos criaria as condições para uma verdadeira economia de mercado, para tais empresas pequenas e médias. Diversas formas de administração podem ser pensadas: propriedade privada, mas também cooperativas de trabalhadores (a cooperativa Lip na França demonstrou sua eficiência, sua “falência” foi um deliberado e planejado assassinato pelo Estado de um modelo ameaçante), permitindo a emergência de formas de socialização, além dos limites do mercado capitalista.
O obstáculo para esse possível e necessário futuro está inteiramente situado na cultura política dominante, na forma da corrente Americanização da Europa. Análises críticas dessa vertente ideológica e política não faltam; análises que têm focado as muitas facetas da degradação que ocorrem e que apontam para “um outro mundo” emergente ainda pior do que conhecemos. Negri ignora essas análises. Seu otimismo é usado para justificar a inação.
Uma multiplicidade de conflitos está para surgir da ditadura do capital financeiro atual, com os povos e Estados do Sul liderando o caminho na oposição da lógica da governança globalizada plutocrática. Sobre isso, a oposição do Sul tende a crescer muito mais rápido que a oposição dos povos da tríade imperialista. Assim, eu imagino que as primeiras tempestades vão emergir no Sul; embora de diversas formas, como nós podemos ver já na América Latina e, por outro lado, na Ásia.
Essa última observação não é de um “militante terceiro-mundista”. É de um internacionalista clamando por solidariedade entre os trabalhadores do planeta. Quanto mais solidariedade nós conseguirmos, melhores serão as oportunidades oferecidas para os avanços revolucionários, tanto no Sul como no Norte.
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