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Um conto de três cidades, por David Harvey

Neste século a habitação tornou-se um instrumento de acumulação de capital e ganho especulativo. O crédito e a liquidez inundaram os mercados imobiliários, mudando o foco do imóvel para o terreno



por David Harvey*

Uma casa é uma coisa muito simples. Mas também é uma mercadoria, o que significa que ela abunda “em sutilezas metafísicas e em melindres teológicos”, como Marx disse certa vez. Eu cresci em uma casa em um bairro seguro, protegido e respeitável da classe trabalhadora na Grã-Bretanha depois de 1945. A casa era um valor de uso – “apática em sua banalidade”. Constituía um espaço seguro, embora bastante repressivo, onde se podia comer, dormir, socializar, ler histórias, fazer os trabalhos de casa ou ouvir rádio; um lugar onde a família, com todas as suas complexidades e tensões interiores, podia habitar e se relacionar sem muita interferência externa. As relações com os vizinhos eram cordiais e solidárias, mas não íntimas. Esta era a cidade do valor de uso.

Lembro-me, no entanto, do dia em que a hipoteca foi saldada. Houve uma pequena celebração. Percebi então que a casa tinha um valor de troca que podia ser transmitido às gerações futuras (como eu). Mas isso nunca foi um tema de conversa. Não muito longe dali, havia propriedades de habitação social. Elas pareciam ok para mim, mas quando namorei com uma moça de lá a minha mãe desaprovou fortemente – eram pessoas imprestáveis que não mereciam confiança, disse ela. Mas eles também pareciam ter uma habitação segura num ambiente de vida não tão mau assim – embora um pouco insípido.

Nós ouvíamos os mesmos programas de rádio e as crianças jogavam os mesmos jogos na rua. Mas na época das eleições eles apoiaram os Trabalhistas. No meu bairro havia alguns cartazes, alguns Trabalhistas, mas também alguns Tory. A posse de moradia da classe trabalhadora, promovida a partir de 1890 na Grã-Bretanha, sempre tinha sido um instrumento de controle social e de defesa contra o bolchevismo. Nos Estados Unidos, costuma-se dizer: “os proprietários de casa sobrecarregados com dívidas não entram em greve”.

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