Representante de entidades de direitos humanos fala das dificuldades de se estabelecer políticas migratórias, do racismo e da xenofobia
Por Malu Delgado
Por razões jurídicas, constitucionais e humanitárias é preciso rechaçar o fechamento da fronteira com aVenezuela, sustenta o advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário nacional de Justiça e representante de quatro entidades de direitos humanos e imigração.
As quatro entidades – Conectas Direitos Humanos, Instituto Migrações e Direitos Humanos, Centro de Direitos Humanos e Cidadania, e Pia Sociedade dos Missionários de São Carlos – querem acompanhar este debate no Supremo Tribunal Federal e fornecer subsídios ao julgamento.
As políticas migratórias, diz Vasconcelos, que atuou nos ministérios da Justiça e da Casa Civil nos governos de Lula e Dilma, são reveladoras de valores e conceitos de um país.
Impedir fluxos migratórios não só é um ato de estímulo à xenofobia, ao racismo e ao preconceito como, sobretudo, é violação constitucional e jurídica.
Em entrevista à DW Brasil, ele fala das dificuldades de se estabelecer políticas migratórias no país, do racismo brasileiro embutido na xenofobia, dos ranços da ditadura militar e sobre a necessidade crucial de informação e de criação de um aparato civil, e não militar, para tratar do tema.
Deutsche Welle: Qual é a razão para terem apresentado uma petição ao STF sobre o caso da fronteira com a Venezuela?
Beto Vasconcelos: O estado de Roraima apresentou uma ação civil originária no STF pleiteando, dentre outras coisas, o fechamento urgente e imediato da fronteira e alegando descaso do governo federal com a imigração de venezuelanos.
Entidades da sociedade civil que tratam de direitos humanos, imigração e refúgio pediram ao Supremo o ingresso nesta ação como amici curiae [amigos da Corte, em latim]. Pedem para colaborar com informações fáticas e jurídicas, subsidiar o STF com argumentos para rechaçar qualquer hipótese de fechamento da fronteira. Primeiro por uma questão humana e, em segundo lugar, por uma questão constitucional e jurídica.
Nossa Constituição prevê como fundamento da República a dignidade da pessoa humana. Ninguém pode ser discriminado em função de sua origem. Um dos fundamentos das relações entre os povos e nações será baseado em respeito aos direitos humanos.
Temos ainda uma legislação de refúgio, considerada uma das mais modernas do mundo, de 1997, que incorporou o Estatuto do Refugiado. Temos ainda uma Legislação de Imigração, tardiamente alterada, substituindo o antigo Estatuto do Estrangeiro por uma lei, de 2017.
DW: Em que a nova Lei de Imigrações brasileira, de 2017, inova?
BV: Ela muda o paradigma de tratamento da imigração no país. Tínhamos o Estatuto do Estrangeiro, formulado no final do regime ditatorial. O imigrante era tratado como um risco à sociedade, não como um detentor de direitos. O estatuto previa a imigração como risco.
Passamos 20, 30 anos após sua publicação com dificuldades para receber estudantes, pesquisadores e professores. A ditadura militar não queria imigração – baseado no falso argumento de segurança – e nem uma abertura para a oxigenação de ideias e informação.
Em 2014 começamos a formulação de um projeto de lei por especialistas. Enfim esse projeto foi sancionado em 2017 pelo governo atual. É uma legislação que prevê convergência com os direitos e garantias para imigrantes previstos na Constituição de 1988 e novos mecanismos para lidar com eventuais crises humanitárias.
DW: Como enxerga o caso da Venezuela?
BV: Como um fluxo migratório misto. Pode haver casos de refúgio e casos de imigração em decorrência de vários fatores socioeconômicos. É mais uma razão para que nem se cogite fechamento de fronteira. Não faz sentido humanitário, físico e nem jurídico.
Se cogitássemos isso estaríamos violando os valores mais fundamentais da relação humana, que é dignidade. Estaríamos estimulando xenofobia, racismo, preconceito. Estaríamos violando a Constituição, a Lei de Refúgio, a Lei de Imigração e sobretudo acordos internacionais passíveis de sanções.
DW: O Brasil ainda vive uma grave crise econômica, quase todos os estados estão insolventes. Roraima pede socorro para lidar com essa questão imigratória. O papel da União tem sido eficaz?
BV: Tantos governos locais, quanto o governo federal e a sociedade civil têm papéis relevantes para, de forma articulada, promoverem recepção, documentação, acolhimento e integração destes imigrantes.
As entidades querem apresentar como isso está sedo feito e como isso pode ser melhorado. Como ex-secretário Nacional de Justiça compreendo que os estados, de fato, têm dificuldades de lidar sozinhos com uma crise desta natureza. Um exemplo muito pertinente foi a crise migratória haitiana.
O estado de Roraima precisa de ajuda.
O primeiro passo positivo e relevante do governo federal foi reconhecer que há uma crise imigratória. Segundo, que a solução para essa crise não é o fechamento de fronteira. E houve o esforço de colocar o Estado, o aparato institucional, na fronteira.
Certamente há um problema local. Muito provavelmente é necessário, para além de mais esforço para acolhimento e mobilidade, também um esforço de comunicação. Em breve estaremos com problemas de xenofobia, racismo, preconceito e refração ao imigrante.
DW: Isso já está ocorrendo. Venezuelanos têm sido atacados.
BV: É preciso imediatamente uma campanha intensa de esclarecimento para a população de Roraima e para o resto do país sobre importância de acolhimento de imigrantes em situação de risco.
O país está carente, há décadas, de uma estrutura institucional migratória civil que coordene as ações de imigração e refúgio. A solução para um problema migratório é civil, não militar.
Imigração é uma questão significativamente humana, sobre que modelo de Nação queremos. É questão também de coerência histórica. O Brasil é um país forjado por fluxos migratórios em 500 anos de história, alguns deles episódios tristes, de tráfico de negros da África, de indução de migração europeia para tornar a sociedade mais branca.
Em outros momentos foram fluxos migratórios socioeconômicos, de imigrantes buscando uma melhor condição de vida, ou a sobrevida. Forjaram sociedades com descendência de italianos, japoneses, árabes, alemães, latinos, norte-americanos. E também é uma questão de coerência em relação ao tratamento que queremos aos quase 3 milhões de brasileiros fora do país
DW: O STF ainda não analisou a petição?
BV: Estamos aguardando a manifestação da corte para colaborar. Temos que afastar mantras e falsos dilemas sobre imigração e refúgio no Brasil. O primeiro deles: imigração e refúgio não afetam a segurança, não geram insegurança. Imigrantes e refugiados são vítimas de violência, e em hipótese alguma promotores dela. O segundo dilema é sobre a hipótese de roubo de emprego e piora do ambiente socioeconômico do país.
O imigrante é um empreendedor por natureza, por necessidade. Tem potencial para gerar negócios, empregos, sejam para novos imigrantes, sejam para brasileiros. Ao trazer o intercâmbio cultural, tecnológico, eles são promotores de desenvolvimento.
DW: Questões ideológicas e políticas podem contaminar o entendimento, no Brasil, da crise migratória da Venezuela?
BV: Um de nossos grandes desafios é garantir que a sociedade brasileira tenha informação suficiente para formar opinião sobre fluxos migratórios. Tivemos dificuldades na crise migratória haitiana. Há uma dificuldade de compreender por que acolher pessoas quando cada qual aparentemente tem já seus problemas muito exacerbados aqui.
Há uma falha de compreensão, qualquer que seja a nacionalidade do imigrante. Não é diferente no caso do venezuelano.
Vamos ter liberais sustentando que as razões pelas quais esse fluxo ocorre tem relação com governos venezuelanos [de Hugo Chávez e Nicolás Maduro] e questionando se devemos ou não acolher esses imigrantes. Haverá também frentes de esquerda sustentando que o resultado deste fluxo não é por causa destes governos. Independentemente das crenças de esquerda e direita, o fluxo existe. E ele não pode ser ignorado por convicções ideológicas. São seres humanos em situação de fragilidade, muitos com risco de morte.
Não temos alternativa, nem o governo federal, nem o governo local, nem os progressistas ou os conservadores, que não seja acolher essas pessoas e garantir seus direitos. Não me parece relevante a opinião ideológica sobre o que acontece na Venezuela. O preponderante é atender uma crise humanitária.
DW: O brasileiro está mais xenófobo em virtude da crise econômica?
BV: A xenofobia brasileira tem muita relação com o racismo. Quando entidades da sociedade civil e o Estado avaliávamos violações de direitos humanos, se percebia que o comportamento era refratário à cor do imigrante. Havia racismo embutido na xenofobia manifestada, tanto que o tratamento dado a haitianos era diferente do dado a imigrantes de outras nacionalidades.
Prefiro crer e quero crer que seja uma minoria no país. Fazer campanhas de esclarecimento sobre imigração, sobre direitos, sobre a nossa história, é fundamental para reverter esse tipo de comportamento irascível, impetuoso e, muitas vezes, criminoso.
O primeiro-ministro canadense [Justin Trudeau] respondeu ao debate sobre imigração e o colocou à mesa. O tema precisa ser tratado com transparência e comunicação direta, como também foi feito por [Angela] Merkel na Alemanha, ainda que signifique perda de apoio político.
fONTE: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/201ctemos-que-afastar-falsos-dilemas-sobre-migracao-no-brasil201d
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