Pensou em ser sacerdote, virou pintor, mas acabou se tornando o guru do cinema europeu. Títulos como ‘Asas do desejo’ e ‘Paris, Texas’, na ficção, e ‘Buena Vista Social Club’ e ‘O sal da terra’ (sobre o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado), em documentários, forjaram uma carreira que agora se prolonga em ‘Submersão’: uma história de amor com o terrorismojihadista como pano de fundo. O presidente da Academia de Cinema Europeu prepara além disso um filme sobre o papa Francisco.
Wim Wenders(Düsseldorf, 1945) gosta de recordar que sua personalidade nasceu do choque entre dois indivíduos quase antagônicos: de um lado, o rapaz que estudou medicina e filosofia e se propôs seriamente a ordenar-se padre; de outro, o jovem de 20 e poucos anos que em 1966 esteve em Paris por um ano em um curso e aproveitou para assistir filmes na Cinemateca Francesa todos os dias. “Algo de tudo aquilo ficou em mim, obviamente. Mas quanto?”, ri tranquilo.
O atual presidente da Academia de Cinema Europeu é um dos grandes do gênero autoral com títulos como Paris, Texas; Asas do desejo; O medo do goleiro diante do pênalti e Estrela solitária. Wenders soube transitar da ficção ao documentário com exemplos como Um filme para Nick, Buena Vista Social Club, Pina e O sal da terra. Mas em 12 de abril estreará no Brasil uma nova ficção, Submersão, que recebeu críticas desiguais em Cannes. Narra uma história de amor que acontece durante uma semana entre uma biomatemática especializada no fundo do mar (Alicia Vikander) e um engenheiro hidráulico (James McAvoy). Esse encontro é narrado em sucessivos flashbacks por seus protagonistas: uma, embarcada em uma perigosa viagem científica; o outro, sequestrado na Somália por terroristas jihadistas que descobriram que é um espião. E acima de tudo paira o ritmo narrativo de Wenders, que não é o predominante no cinema atual.
Submersão está ligado a trabalhos anteriores seus?
Talvez a Medo e obsessão... e, quem sabe, a O amigo americano, porque sua base é um romance. Na verdade, gosto de pisar em territórios desconhecidos e por isso embarquei em Submersão. Ao mesmo tempo em que me levava a um território inexplorado, sentia que falava diretamente ao meu coração.
Com Medo e obsessão o sr. compartilha sua necessidade de dizer algo sobre a realidade social.
Naquele caso, sobre os Estados Unidos em guerra. Neste, sobre o terrorismo. Certo, e pode ser que Medo e obsessão contenha mais fúria do que Submersão porque naquele tempo estava muito irritado com a política norte-americana. Em Submersão nos concentramos em um problema que vai além do nacional, o terrorismo, e o fazemos a partir da ficção, não do documentário. Porque assim se tem mais liberdade para abordar o tema. É possível usar atores, música, enfim, contar uma história, você não se restringe à realidade. Como um pintor ou um arquiteto, você tem ferramentas que lhe permitem um voo... que às vezes não se alcança com o documentário.
Pode ser que Medo e obsessão, com sua reflexão sobre a falta de cultura nos EUA, o patriotismo exacerbado, a desilusão que viver em um país como esse pode representar, seja mais atual hoje do que no momento da estreia.
Pode ser, porque chegou antes da hora. Estreamos muito perto do 11 de setembro de 2011 e foi muito mal interpretado. Coisas da vida [risos].
E aqui o sr. apostou em uma história de amor para guiar a narrativa, mais do que no mero drama social.
É que não sei como poderia ter enfrentado tanta escuridão no filme sem a história de amor. As sombras que rodeiam James em sua viagem para a jihad na África são tão densas que era necessária a luz do romance. Acredito que Martin Luther Kingtinha razão. “A escuridão não pode expulsar a escuridão; só a luz consegue fazer isso”, dizia, e por isso fomos por aí. Aprendi que não se pode fazer sermões na tela, que o filme deve se revelar ao espectador por si mesmo. E mais ainda quanto mais complexo é o que se conta. Creio que falta reflexão ao cinema atual, e sem dúvida em casos como o que move Submersão, que mistura investigação sobre o início da vida na Terra e a morte que acompanha o Estado Islâmico, precisamos de um pouco de filosofia.
A Europa não sabe como encarar o problema do EI?
A cultura ocidental falhou há anos e o exemplo é a recepção que Medo e obsessão teve, com sua estreia em um momento crucial, quando se declarou uma guerra ao terrorismo que só conseguiu criar um novo terrorismo. O Ocidente provocou o nascimento de terroristas onde não existiam. Começamos com o passo errado e seguimos bombardeando por bombardear, como se fosse a solução. Vivemos o triunfo da vaidade, da crença de que nosso pensamento é o único possível. Vale para todas as áreas.
O sr. não sente que a política cultural europeia também está desaparecendo?
Estamos lutando exaustivamente por ela. É um problema de educação. Se continuamos sem ensinar cinema e linguagem audiovisual, nos perderemos como cultura e como pessoas, porque ninguém nos educa para ver imagens.
Outros artistas mudam de pensamento com os anos, mas o sr. não parece ter mudado em seu íntimo. Pelo menos não se percebe vendo seu cinema.
Não acredito que uma pessoa mude ao se tornar cineasta, nem conforme uma carreira se desenvolve. Eu continuo com minha natureza otimista, por exemplo. Inclusive quando filmo temas muito controversos ou escabrosos, me nego a ser engolido pela escuridão. Não é saudável viver de outra forma. Eu me dedico a fazer filmes o mais abertos possível e a aprender no processo de sua realização. Neste caso, sobre a vida marinha e a jihad. Dirigir é uma maneira incrível de aprender e de compartilhar o que se aprende.
O sr. pensa muito no que teria acontecido se se tornasse um pintor em Paris, como desejava quando jovem?
Teria levado uma vida muito diferente, sem dúvida. Tenho muitos amigos pintores e costumo ir a seus estúdios. De um lado, me causa certa dor, porque é a vida que escolhi não viver e às vezes me arrependo. De outro, sou feliz com o que faço e sei que os filmes bebem da pintura. Em Submersão me permiti uma pequena homenagem a meu pintor favorito, Caspar David Friedrich.
Mas foi uma decisão consciente ou uma mudança gradual que o levou da pintura ao cinema?
Aconteceu aos poucos. No início para mim o cinema foi uma forma diferente de me aproximar da arte. Quando comecei, estudava-se sobretudo os movimentos de câmera. Na época muitos usavam a câmera como um pincel. Eu mesmo comecei com um cinema não narrativo, mais próximo da pintura, e lentamente descobri a arte de contar histórias, o que gradualmente me afastou da pintura. Foi um processo que durou cinco anos e até meu quarto filme ainda pensava em voltar à pintura.
E assim o sr. entrou no grupo do Novo Cinema Alemão, com Fassbinder, Von Trotta, Schlöndorff e Herzog. Pelo gosto, o sr. era mais afim ao cinema americano e, portanto, um animal exótico.
Conforme vamos evoluindo, fazemos isso dentro de uma tradição. Werner Herzog fez isso apegado a Murnau e a um cinema romântico. Fassbinder vinha de Douglas Sirk, do melodrama. E eu encontrei minha tradição no clássico americano, em John Ford, Howard Hawks, Samuel Fuller... E tive a sorte de conhecer alguns de meus heróis. Mas todos tivemos claro desde o início que isso não era uma limitação, mas um ponto de apoio a partir do qual encontrar nossa linguagem. E a beleza do Novo Cinema Alemão é que não éramos uma escola estética, na verdade não defendíamos nenhum estilo em comum, e isso nos ajudou a ser felizes, porque não competíamos entre nós. Compartilhávamos distribuidoras, inclusive produtoras... Percebemos que entendíamos o cinema como ato de solidariedade e, portanto, não havia interferências, só ajuda. Ninguém ficava com medo de mostrar seu filme para os outros e ouvir os comentários. Hoje prevalece a competição e é improvável que ocorra um grupo assim com gente jovem. Só podíamos existir porque existiam os outros.
O sr. desfrutou de uma proveitosa e frutífera colaboração naqueles anos com o escritor Peter Handke. O que se lembra dessa fase?
É meu amigo mais antigo. Nos conhecemos há mais de meio século. Mostrei a ele meu primeiro curta e ele me ofereceu um livro dele, que na época era um best-seller, para que adaptasse ao cinema. Simples assim. Começamos a colaborar [Wenders recita os numerosos projetos em comum], produzi filmes que ele dirigiu. Enfim, é meu irmão.
E depois de muito tempo sem filmes em comum, reuniram-se há dois anos em Os belos dias de Aranjuez.
Sim. Peter é dois anos e meio mais velho que eu e sempre me ensinou coisas. Uma das primeiras foi que se pode fazer o que se quiser confiando em si mesmo e sendo radical. E Peter era muito no início. Meus primeiros filmes também eram. E, sinceramente, não sei até onde teria chegado sem sua ajuda nem seus roteiros.
Era um bom momento para ser jovem e cineasta?
Em minha opinião, o melhor. Porque eu trabalhei com pessoas que tinham começado na era do cinema mudo, que tinham começado nos anos 20 e agora me dedico a fazer documentários em 3D. Enfim, tive uma grande sorte de ver essas mudanças, de usá-las. Nos anos setenta e oitenta a juventude mudou o cinema, certo. Mas também tínhamos acesso fácil aos clássicos. No ano em que estudei em Paris, vi 2.000 filmes, e apreciei a herança que podia me impulsionar para o futuro. Hoje sem dúvida é mais complicado, não os invejo.
O sr. sempre honrou outros artistas: penso em filmes como Pina, sobre a coreógrafa Pina Bausch, ou Tokyo-Ga, sobre Ozu. Conseguiu que grandes diretores aparecessem em seus filmes como atores.
Na verdade a sorte não foi fazer cinema com eles ou sobre eles, mas conhecê-los. Recebi grandes presentes de outros artistas como cineastas, escritores, arquitetos...
Músicos.
Realmente, músicos mais do que outros. De Pina aprendi mais sobre a beleza do que todo o cinema que vi junto. O cinema é o resumo de todas as artes... Compartilhar uma paixão é um excelente motivo para fazer um filme.
Suponho que seja doloroso ver esses homenageados falecerem. Não posso continuar sem perguntar sobre Harry Dean Stanton e Sam Shepard, ator e coração de Paris, Texas, ou o músico Ibrahim Ferrer, cuja morte também foi um duro golpe para o sr.
Fui testemunha da morte de Nicholas Ray. Sofri com o falecimento de Ibrahim e Harry Dean, e era muito amigo de Lou Reed. Estou mais velho, você perde amigos... Vivi dias maravilhosos na filmagem de Buena Vista Social Club, com aqueles músicos setentões... Compay passava dos oitenta. Pouco a pouco você descobre que nunca estarão com você para sempre. Três anos depois da filmagem do documentário voltei a rodar um comercial de rum, e ao entrar em meu quarto havia um ramalhete enorme de rosas. Desci à recepção porque pensei que tinham se enganado de quarto. Me disseram que não, que o buquê era para mim, apesar de achar que ninguém soubesse que estava em Havana, e descobri um cartão entre as flores. Era de Compay Segundo, que disse ter passado comigo o melhor momento de sua vida. E olha que era velho [sorri]. Mas com Sam [Wenders para e uma lágrima escapa]... Era jovem demais, tinha tanto a oferecer [o diretor esconde seu rosto atrás de uma xícara de café].
Voltando à música, continua escolhendo os CDs que coloca na mala antes da roupa?
Pior ainda, levo um disco rígido com 28 dias de música... Já não preciso de CDs.
E escolhe ou deixe que toque ao acaso?
Vou contar meu segredo. Comecei compilando as músicas que tinha e a tarefa ficou grande demais para mim. Então comecei a qualificar os discos de uma a cinco estrelas e consegui um sistema em que só os álbuns de cinco estrelas entram nesse disco rígido.
Mas agora já ocupa 28 dias...
E por isso tenho outro problema. Não sei o que fazer. Coloco no modo aleatório e deixo que toque o que for.
Ry Cooder conta que nunca teria sido quem é se o sr. não o tivesse contratado quando era quase um desconhecido para fazer a trilha sonora de Paris, Texas.
Por sorte, tive muita liberdade naquele filme. Quis contratá-lo três anos antes, para Hammet – Mistério em Chinatown, mas tinha acabado de lançar seu primeiro álbum e os estúdios o rejeitaram. Prometi que o chamaria assim que pudesse. Nosso respeito é mútuo. Paris, Texas não teria tido o sucesso que teve sem a música de Ry. Vou contar uma história. Harry Dean Stanton era um bom músico e cantor estupendo. Gostava de interpretar músicas mexicanas. Na filmagem de Paris, Texas à noite cantava para nós no bar. Um dia Harry me perguntou se eu não achava que o filme precisava de uma música assim e me pareceu uma ideia brilhante. Então fez a versão de ‘Canción Mixteca’ e gravamos no fim da produção. Depois da estreia do filme, Ry Cooder saiu em turnê e em seus primeiros três concertos na Europa Harry apareceu para cantar com ele, tendo pago a própria viagem. Na quarta, Ry me ligou e me pediu para fazer alguma coisa. “Está ameaçando me seguir a turnê inteira, é um cara adorável, mas acredita que faz parte do show.” No fim, tudo acabou quando Ry viajou para o Japão.
O sr. também é muito amigo de Nick Cave...
Sim, é um cara incrível. Se tornou o [dá risada] Frank Sinatra de nossos tempos. É ótimo na composição e tem uma voz que representa toda uma geração. Vou continuar trabalhando com ele enquanto puder. Como escritor de romances é surpreendente em seu uso dos tons.
Sendo um apaixonado pela música, seu cinema está repleto de silêncios.
O silêncio se tornou um dos grandes privilégios dos cineastas atuais. É preciso lutar por ele. Faz com que o espectador se concentre no que vê. A tecnologia vai em sentido contrário, prima cada vez mais para que o cinema tenha um som mais alto.
Podemos falar mais de Paris, Texas?
Sei que esse filme é muito popular na Espanha. Na verdade, é um fenômeno estranho. Há filmes que estreiam no momento exato, e foi o que aconteceu com Paris, Texas. Comigo aconteceu mais duas vezes, com Asas do desejo e Buena Vista Social Club. Às vezes os filmes estreiam cedo ou tarde demais, e não é você quem decide. Pode chamar de destino, sorte, o que quiser... Harry Dean Stanton estava em seu momento perfeito, era o primeiro roteiro de Shepard... Nastassja estava no ápice de sua carreira, e Ry estava disposto a mostrar ao que veio. A única coisa que eu podia fazer era não estragar tudo, e consegui. Porém, ninguém se importou com Estrela solitária e veja como Sam Shepard e Jessica Lange estavam bem.
Vai continuar filmando em 3D?
Quando precisar, sem dúvida. É uma mídia muito interessante, mas está sendo usada de forma horrível, o que piora sua má reputação. Quis rodar Submersão em 3D, mas não me deixaram. Sinto-me como um lobo solitário uivando à noite: “Deixem-me filmar em 3D!”.
Não é curioso que tenha sido candidato ao Oscar por três vezes, sempre com documentários?
Que vou fazer ou dizer? É a vida. Paris, Texas foi comprada para os Estados Unidos pela Twentieth Century Fox e prepararam um lançamento inteligente, a fim de obter inclusive vários Oscars, sobretudo pensando em Harry Dean Stanton. E em três semanas mudou tudo, da cúpula diretora até a recepcionista. Os novos executivos não quiseram nem saber das intenções dos anteriores e não fizeram nem uma projeção para os acadêmicos nem colocaram um anúncio. Harry ficou arrasado.
O sr. conseguiu controlar sua carreira?
Sempre fiz o que quis. Aprendi em minhas colaborações com Coppola e seu estúdio Zoetrope. Vendo a loucura que rodeava Francis, entendi que aquilo não era para mim e que precisava me manter em filmes que podia controlar.
E agora está filmando o papa Francisco.
Começamos a trabalhar em seu primeiro ano de papado. Nos vimos cinco vezes e cada encontro durava meio dia. Assisti milhares de horas de imagens de suas viagens e rodei muito com ele. Na verdade fomos nos aproximando, apesar de este não ser um filme biográfico. O que me interessa é o que conta, estou me concentrando em suas ideias, em sua coragem de devolver a Igreja a suas origens, a suas preocupações com a pobreza, os refugiados, a natureza, o diálogo entre religiões. Não são ideias novas, vêm de alguém de quem escolheu o nome, Francisco, um legado enorme vindo de alguém que foi um revolucionário. E acredito que o papa Francisco também é.
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