80 tiros contra um pai de família ocorre onde jovens que comemoravam emprego sofreram 111 disparos. O que isso diz sobre as cidades?
Há quatro anos, 111 tiros foram disparados sobre um carro onde cinco jovens vinham de uma comemoração de seu primeiro salário. Todos eram negros e jovens. Os culpados aguardam juri popular, depois de muita luta dos familiares por justiça. A mãe de um dos meninos, teve uma parada cardíaca e veio a falecer, em decorrência do sofrimento pela perda do filho. A justificativa da polícia foi de que se confundiram com os suspeitos de um assalto que teria acontecido nos arredores.
O local?
O bairro de Costa Barros, na região de Guadalupe, Pavuna e outros bairros do subúrbio (periferia) do RJ.
Passados esses quatro anos, muitos jovens negros e negras (cabe lembrar, que o genocídio também mata mulheres e meninas, direta ou indiretamente) continuam sendo assassinados pelo estado brasileiro, que permite e justifica essas execuções gratuitas, já que as leis anti-racismo não contavam com ofensiva que cresceria ao longo do tempo, exigindo que as nuances e entrelinhas do racismo fossem especificadas para melhor captar os reais motivos dessas execuções, como o genocídio, por exemplo.
Mas ontem, precisamente no dia 7 de abril do ano que segue, mais um caso hediondo entra para as estatísticas que só crescem: uma família negra é atacada em via pública, em “ação” do exército, que despejou 80 disparos de fuzil em um carro, matando o pai de família e músico Evaldo dos Santos Rosa de 51 anos.
Segundo relatos, eles estavam a caminho de uma comemoração de um chá de bebê. Entre as vítimas do ataque, uma criança de apenas 7 anos de idade. A justificativa da polícia, foi de que foram alvejados por engano. Um engano de 80 disparos de fuzil. Não é possível que alguém acredite nisso.
O local?
O bairro de Guadalupe, na região de Pavuna, Costa Barros e outras áreas do subúrbio (periferia) do RJ.
É fundamental fazer uma pergunta que tem sido negligenciada em todos os casos de genocídio e chacinas:
Isso acontece com que frequência no Leblon, em Ipanema, na Lagoa, na Gávea ou no Jardim Botânico?
Esses bairros são chamados de bairros nobres. Sem muito esforço cognitivo, concluímos a presença esmagadora de pessoas brancas ocupando esses lugares privilegiados da cidade onde o metro quadrado chega a custar até 20 mil reais. Dotados de toda infraestrutura e muitos luxos, como vista pro mar, por exemplo, esses bairros abrigam os herdeiros de uma chacina histórica e institucional chamada escravidão (ou escravização, já que foi um processo político de imposição da força física e alienação mental com o intuito de explorar mão de obra de um povo sequestrado de seus lugares de nascimento).
Todas as chacinas, assassinatos ou execuções que contabilizam o que chamamos de genocídio da população negra, tem lugar específico: periferias e áreas favelizadas (ou áreas que sofreram ação política e social, formando o espaço físico da violência racial e acabaram por se tornar depósito literalmente falando, dos indesejados pelo sistema de dominação branca.).
A primeira favela do país, nasceu no Rio de Janeiro, como consequência da Guerra dos Canudos, quando soldados aportaram na antiga capital em busca das promessas de moradia que lhes foram garantidas como pagamento pelo “bom desempenho” na guerra que eliminaria Antônio Conselheiro, segundo historiadores nos apontam. Como foram enganados, não receberam a parte que lhes cabia no acordo, não tinham alternativa senão se instalarem numa encosta que tinha uma planta rasteira em grande quantidade que se assemelhava com uma planta chamada favela, abundante na região de Canudos.
Cerca de 10 mil soldados ficaram por lá e, a eles se juntaram parcela expressiva de ex-escravos que moravam em cortiços insalubres e caros (para a condição oferecida) ou em sub-habitações nos lugares onde trabalhavam aqueles que continuaram em regime semelhante a escravidão.
Hoje, o atual Morro da Providência, tem 122 anos e é uma das áreas favelizadas com maior índice de violência, o qual agravou-se pela Unidade de Polícia Pacificadora, as temíveis UPPs.
Mas cabe ressaltar que já havia uma segregação racial do espaço nas cidades coloniais, que posteriormente foram urbanizadas, no sentido estrito da palavra, e que, encontrou na favela, seu lugar ideal para assentar a prática institucional de violentar a negritude brasileira também nos espaços físicos, negando a influência arquitetônica africana e expulsando a população negra da cidade formal.
O que fica claro é que há uma ordenação institucional onde o racismo se subdivide em ações práticas para a eliminação da população negra e, isso é um processo histórico comprovado pelas legislações que se seguiram desde o período colonial até os dias de hoje.
Chamar um espaço da cidade de área nobre, é delimitar o lugar que consubstancia a hierarquia social que aponta quem deve ou não morrer, seja física ou simbolicamente.
O espaço da cidade ou lugar materializado da subalternidade como construção racista da subjetividade da população negra, são as periferias e as áreas favelizadas, onde o estigma da violência como resultante do tráfico de drogas está assentado no senso comum da população, dizendo de maneira tácita que se trata de lugares onde a morte é a única solução.
Uma nítida inversão de valores, já que os articuladores da violência como discursiva e prática estão nas áreas nobres (leia-se brancas), desfrutando do bônus da exploração, os chamados privilégios sociais, e mantendo a verticalidade das relações raciais/sociais.
O racismo delimitou não apenas os espaços sociais, mas também os espaços físicos desenhando as cidades de maneira excludente e segregacionista, reforçando a supremacia branca como forma de poder predatório.
Nos EUA durante as políticas racistas do New Deal, foi cunhado um termo para descrever essa demarcação estratégica de áreas, obedecendo ao critério racial e de classe, para limitar o acesso a empréstimos financeiros de cunho imobiliário, os mapas de redline.
Os chamados mapas de redline foram usados nos EUA, porque o governo precisava reconstruir o mercado imobiliário após a Grande Depressão e evitar execuções hipotecárias.
Nesse sentido, coube à agência chamada Home Owners ‘loan Corporation uma pesquisa entre corretores de imóveis e especialistas no mercado imobiliário para dar aos bairros em mais de 200 cidades considerações tendenciosas e pejorativas, tais como “desejáveis”, “declinantes” ou “perigosas”, quantificando o número de pessoas nascidas negras e estrangeiras. Quanto menor a nota, menor seriam as chances de alguém conseguir um empréstimo bancário para comprar uma casa.
No Brasil também há uma redline que é silenciosa, já que passa despercebido a olhos nus, mas quanto olhamos um mapa como o da imagem a seguir, se torna ensurdecedor:
Nossa redline demarca tal qual uma parede de vidro, as áreas pretas, onde é permitido matar, violentar, invadir e executar ações completamente arbitrárias, como disparar 80 ou 111 tiros de fuzis e áreas brancas (bairros nobres).
Ainda que as periferias e áreas favelizadas abriguem também pessoas brancas, o contingente negro é majoritário e, devido a outras práticas racistas, tem sua mobilidade social terrivelmente comprometida. Nas áreas pretas, como as das chacinas descritas acima, ser negro é ser suspeito natural, mas também é pertencer uma um bloco disforme e desumanizado e invisibilizado pelo sistema racista, senão para ser eliminado friamente.
Nas áreas brancas, a permanência é proibida e coibida por olhares e atitudes intimidadoras, quando não pela verbalização real do racismo que compõe a mentalidade do cidadão/ã brasileiro/a.
Ou seja, em qualquer espaço da cidade, ser preto é ser suspeito natural e alvo certo da desumanidade branca, constituída pelo racismo que é o principal legislador nacional.
O racismo é um urbanista que planeja e define espaços de morte e vida nas grandes cidades[1].
O grande desafio das políticas urbanas é encarar o entendimento do racismo enquanto estrutura social transversal, para depois diagnosticar onde ele exerce a função de perpetuador de práticas que corroboram com o racismo.
A divisão racial do espaço das cidades foi desenhada e articulada por mentalidades herdeiras da colonialidade e que, tem se negado a rever a absorção da estrutura racista pelas políticas urbanas e habitacionais. Kimberley Creenshaw, intelectual negra norte-americana, que cunhou o termo interseccionalidade, alerta para a necessidade de se trabalhar em qualquer área de atuação, nomeando problemas oriundos das opressões estruturais.
Maria Lucia Pereira, liderança do Movimento da População de Rua da Bahia, falecida em 2018, alertou em entrevista que quando políticas públicas não especificam raça, como é o caso também das políticas fundiárias e de assistência habitacional a população em situação de rua, não se chega a uma execução eficiente.
Urbanismo inclusivo não basta; é necessário pensar caminhos que quebrem a lógica racial que está delimitada fisicamente na construção e divisão das cidades.
As periferias e favelas, são parte de uma importante articulação de desumanização de sujeitos negros, expostos a práticas racistas que culminam com a morte física.
Os espaços das cidades espelham as hierarquias raciais que estão dadas pelo sistema sociopolítico, e precisam se tornar componentes de análise e diagnóstico, denominadas em todos os planos e trabalhos que visem melhorias socioespaciais. Não é casual o clima de guerra instaurado nas periferias e áreas de favelas, com a desculpa de inibição do tráfico de drogas.
Sabemos que a guerra as drogas são guerra contra a população negra, já que não são apenas os lugares pretos das cidades que têm tráfico, as áreas brancas e elitizadas também têm.
Esses espaços pretos são lugares do racismo que se materializaram para chancelar as outras práticas que figuram no grande guarda-chuva da hierarquia racial histórica. Nesses lugares a permissão social se alia ao descaso e à perpetuação de estereótipos, estigmas e a violência física e simbólica que mata pessoas negras e pobres desde os primórdios desse país.
Fonte: Carta Capital
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