Demitido por Ernesto Araújo de um instituto do Itamaraty, o diplomata Paulo Roberto de Almeida diz que chanceler de Bolsonaro é tutelado
O diplomata e doutor em ciências sociais Paulo Roberto de Almeida se envolveu em mais uma das dezenas de polêmicas do Governo Jair Bolsonaro (PSL). Após publicar um artigo em seu blog pessoal com críticas à política externa brasileira, ele foi exonerado pelo ministro Ernesto Araújo do cargo de presidente do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), um dos braços do Ministério das Relações Exteriores brasileiro. Sem o cargo que ocupava desde 2016, Almeida deverá trabalhar em receber. Ou seja, ocupará o fictício “departamento de escadas e corredores” do Itamaraty.
Um dos mais antigos diplomatas em atividade no país, está desde 1977 no Governo, e autor de 14 livros, Almeida critica na entrevista a seguir a ausência de diretrizes de Araújo – a quem atribuiu ideias paranoicas –, ressalta que o ministro tem sido tutelado desde que assumiu a função e que, politicamente, a visita de Jair Bolsonaro a Donald Trump, nesta semana, será a glória para o presidente brasileiro.
Pergunta. Por que o senhor foi demitido do IPRI?
Resposta. A razão aparente parece estar ligada ao fato de eu publicar em meu blog pessoal (Diplomatizzando) análises críticas sobre a política externa conduzida pelo atual chanceler. A razão real parece ter sido minhas fortes críticas ao suposto mentor intelectual desse chanceler, seu patrono na escolha para o Itamaraty, Olavo de Carvalho, a quem eu chamei de “sofista da Virgínia” e de “Rasputin de subúrbio”, o que de certa forma deixou-o desconfortável, pois costuma referir-se respeitosamente a esse bizarro personagem, a quem chama de professor. As posturas antiglobalistas defendidas por ambos constituem uma agenda impossível para qualquer serviço diplomático, na medida em que alimentam paranoias reacionárias que não encontram qualquer fundamento nas negociações internacionais nas quais se engajam os diplomatas.
Uma outra razão que pode ter motivado minha exoneração do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty foi o fato de me ter referido a “fundamentalistas trumpistas”, que o atual chanceler considerou como um ataque pessoal a ele, quando eu estava na verdade visando pessoas mais influentes do que ele, entre elas um dos filhos do atual presidente, Eduardo Bolsonaro, e o atual assessor internacional da Presidência da República, Filipe Martins. O primeiro é considerado uma espécie de “chanceler paralelo”, e passeou pelos Estados Unidos exibindo um boné da campanha de “Trump 2020”, o que representa um grau de aderência totalmente inadequada em termos de política externa responsável. Ademais, teve a arrogância de declarar que o “povo brasileiro” apoiava a construção do muro pretendido pelo presidente americano na fronteira com o México, o que é uma usurpação de mandato. O segundo é um verdadeiro crente, um true believer em Olavo de Carvalho, mais conhecido como “Robespirralho”, autor do discurso julgado extremamente fraco feito pelo presidente em sua visita ao Fórum Mundial de Davos.
P. Qual a influência de Olavo de Carvalho em sua demissão?
R. Não mais que indireta. A despeito de eu me ter chocado com o “sofista da Virgínia” a propósito dessa construção metafísica chamada antiglobalismo – como se tivesse de provar a inexistência de unicórnios, o que ele pretende –, ele não teve nenhuma responsabilidade direta na exoneração, tendo esta sido decidida pelo próprio chanceler, provavelmente em conluio com Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins. Ficaram agastados com minhas críticas a essas ideias bizarras dentro da agenda diplomática.
P. Qual a sua avaliação sobre a política externa de Ernesto Araújo?
R. Difícil fazer uma avaliação sobre o que não existe. Não dispomos, até o momento presente, de nenhuma exposição clara, completa, racional, sobre qual seria essa política externa, até aqui marcada apenas por slogans: luta contra o globalismo, contra o marxismo cultural, contra o multilateralismo, contra o climatismo, o comercialismo, coisas totalmente bizarras, com efeito. Depois, essa introdução inócua de temas religiosos na agenda diplomática, que tampouco se coaduna com a postura de um Estado secular, como parece ser o Brasil. Em terceiro, e mais importante lugar, posturas contrárias a um tratamento verdadeiramente diplomático do mais importante tema da diplomacia brasileira no momento atual, a crise terminal do governo chavista na Venezuela. Foram os militares que tiveram de reafirmar ao atual chanceler o respeito a princípios constitucionais e de Direito Internacional relativos à não intervenção nos assuntos internos de outros países, quando o chanceler estava disposto a apoiar a aventura americana de forçar uma confrontação com o governo chavista. Na última reunião do Grupo de Lima coube ao vice-presidente Hamilton Mourão liderar a delegação brasileira, e de certa forma a posição dos demais países da região, contrária a qualquer intervenção militar na Venezuela.
P. Já ouvi diferentes relatos sobre a condução da política externa desse Governo. Dizem que ela é conduzida pelo Eduardo Bolsonaro ou pelo Filipe Martins. Ou ainda que os militares tutelam o ministro Araújo por meio do vice-presidente. Concorda com alguma dessas versões ou teria uma quarta corrente?
R. No plano puramente ideológico, ou principista, todos os três personagens, o chanceler e os dois primeiros, demonstram adesão às ideias estapafúrdias de Olavo de Carvalho sobre as relações internacionais, que são manifestamente inadequadas, e prejudiciais, a uma condução racional da diplomacia brasileira. No plano prático, o chanceler teve sua escolha apoiada e decidida pelos dois olavistas brasileiros, daí sua total dependência em termos de sua legitimação no governo atual. Em consequência do desconforto do núcleo militar com tais posturas inadequadas – como a ideia inaceitável para os militares de uma base americana no Brasil, ou a subserviência às posições do presidente americano – estabeleceu-se uma espécie de cordão sanitário em torno do chanceler e do próprio Itamaraty, inclusive porque o chanceler subverteu a hierarquia de comando no ministério, algo que os militares consideram como inaceitável. Seria, como eles dizem, ter coronéis mandando em generais. Eles também estão conscientes de que o Itamaraty foi submetido a uma reforma orgânica imposta sem qualquer consulta à casa, o que também causou desconforto geral. No conjunto, existe um comitê de tutela informal exercido pelos militares sobre a política externa.
"Estabeleceu-se uma espécie de cordão sanitário em torno do chanceler e do próprio Itamaraty"
P. Pelo que o senhor acompanha, como o Araújo chegou ao topo da carreira? Procede que ele conquistou o presidente com o artigo Trump e o Ocidente?
R. Não é que ele conquistou o Bolsonaro. O Bolsonaro não leu nada. Ele [Araújo] levou o artigo para o Olavo de Carvalho. Foi levado pelo Nestor Foster, nosso ministro conselheiro em Washington, que é um olavista. Conheço o Nestor, que é um bom funcionário, e que me deu um livro do Olavo, O Jardim das Aflições. Que é uma aflição ler, porque é uma coisa caótica. O Olavo não tem método, ele tem rompantes, ideias. O Ernesto, então, publicou esse artigo em minha revista sem que eu fizesse qualquer censura. No artigo ele trata da decadência do Ocidente, que é algo debatido por vários estudiosos, mas ele mete no meio aquela ideia de Cristo, de Deus, que é uma coisa que você não consegue debater. Você consegue debater com teóricos, historiadores, sobre o Ocidente em si, não a interferência de Deus. No blog dele, o Metapolítica, ele disse que houve uma intervenção divina para unir o Olavo e o Bolsonaro. Hoje, o que ele faz comigo é me denegar um direito que ele teve no passado e ainda tem, o de debater suas ideias pessoais em um blog. Na verdade, quem o colocou lá foram o Filipe Martins e o Eduardo Bolsonaro. Sem nominá-los, em meu artigo, eu os chamei de fundamentalistas trumpistas. O ministro achou que eu falava dele, mas não. Eu o considero um personagem menor nesse jogo de poder. Ele construiu um perfil que não é o dele para se elevar ao cargo de chanceler, mas é totalmente inseguro e não conseguiu construir uma política externa até hoje.
P. Pelo fato de o senhor considerá-lo menor, acredita que o ministro é manipulável?
R. Certamente que ele não vai desatender sugestões do Eduardo Bolsonaro e do Filipe Martins, que são seus promotores, nem do Olavo de Carvalho. Agora, o Olavo acaba de se desacreditar por si só com essa ordem de que todos os seus alunos abandonem o Governo. Por um lado, ele tem essa influência bolsonarista e olavista. De outro, ele está totalmente tutelado pelos militares desde 1º de janeiro. Ele tratou da base americana no Brasil, o que foi rebatido pelo Ministério da Defesa; ele defendeu o rompimento de relações militares com o governo Maduro, o que deixou os militares brasileiros irritados; e depois, com a Venezuela, em que ele aparentemente comprou a ideia da agenda americana, de imposição de uma ajuda humanitária para tentar desequilibrar o Governo chavista, o que não conseguiu. Nosso chanceler comprou essa ideia e teve de ser controlado pelos militares, quando o general Mourão foi o chefe de delegação na última reunião do Grupo de Lima e liderou a América Latina na defesa da não intervenção militar na Venezuela. É uma coisa que caberia a um diplomata. Está em nossa Constituição, nos princípios do direito internacional. Ver um diplomata atuando antidiplomaticamente é uma coisa inédita no Itamaraty.
P. Há uma submissão aos Estados Unidos?
R. É algo alucinante pensar que o chanceler não acate nossa Constituição, e isso os militares fizeram o favor de lembrar, e tome atitudes voluntaristas e de apoio à postura americana que não se coadunam com uma política externa sensata e razoável que o Brasil sempre teve. Depois, as ideias bizarras expressas pelo chanceler são algo inédita em diplomacia. Assista a aula magna que ele deu no Instituto Rio Branco. É uma coisa constrangedora. Não faz nem o sentido lexical, de frases completas.
P. Mas essa crítica, de que não se consegue completar as ideias, é algo recorrente sobre os discursos do presidente também.
R. O presidente está lá porque foi eleito, tem a sua legitimidade. O chanceler, teoricamente, deveria conduzir a política externa. Os diplomatas não têm a menor ideia do que esperar da política externa brasileira. Só vejo arroubos. Nessa palestra no Rio Branco, ele falou de comercialismo, de globalismo, contra o multilateralismo, a perda da fé e de que não vamos apenas exportar café e minério, mas também crenças. É algo inacreditável até no plano puramente operacional, primário, elementar.
P. Sem essa definição de uma política externa, o que se pode esperar das relações comerciais do Brasil? Por exemplo, a China abandona parte do mercado brasileiro para comprar dos americanos.
R. Exato. A gente tem as ideias aventadas pelo Paulo Guedes, de abertura econômica e liberalização comercial que agora ficaram um pouco de escanteio por causa da reforma da Previdência. Mas não vejo como será feita essa abertura econômica. Não se sabe com quem vai se debater. O Brasil não conseguiu nem resolver como fará com o Mercosul, se ele continua como está, se vai avançar para consolidar sua união aduaneira ou se vai recuar para um simples projeto de zona de livre comércio. Todas essas alternativas têm seus prós e contras na política comercial brasileira. Na nova estrutura do Governo, publicada em janeiro, diz que o Ministério da Economia tem competência para as negociações econômicas internacionais. E nas competências do Itamaraty, diz que o Itamaraty participa das negociações econômicas internacionais. Ou seja, fomos relegados a uma posição secundária, o que nunca ocorreu antes. O Ministério das Relações Exteriores sempre teve preeminência nas negociações comerciais do Brasil, ainda que a política comercial seja estabelecida pela Fazenda. Tem um lado nebuloso nessas definições de políticas setoriais que até hoje não foi resolvida. Não vi nenhuma declaração clara nem do chanceler nem do ministro da Economia de como será conduzida a política comercial.
P. O que essa viagem do Bolsonaro aos Estados Unidos pode trazer para o Brasil?
R. Aparentemente vai trazer o acordo de salvaguardas tecnológicas, que está atrasado há 20 anos. É um acordo para a utilização da base de Alcântara (no Maranhão). A boa relação dos presidentes Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso trouxe esse acordo que acabou sendo sabotada pelo PT, pelo próprio Bolsonaro e pelos partidos de esquerda. Houve um relatório na Câmara do então deputado Waldir Pires, que havia recusado esse acordo. Os deputados queriam ter transferência de tecnologia, mas os Estados Unidos queriam preservar essas informações, que que é absolutamente normal num mercado assimilado a construção de mísseis e balísticas. Agora, parece que esse acordo vai sair. Na aula magna deste ano para a turma do Itamaraty, o chanceler não conseguiu nem explicar o que seria feito nas visitas aos Estados Unidos, Israel e Chile. Só disse coisas banais de que se trata de relações importantes. Ele também criticou a China, várias vezes, sem dizer o nome dela. É algo alucinante o que está acontecendo.
P. E sobre os Estados Unidos, nada além do acordo de salvaguarda?
R. Algo que pode ser discutido é a dispensa de vistos de americanos que visitam o Brasil, algo que pode ser atacado pelos da esquerda, pelos nacionalistas e pelo pessoal que defende reciprocidade estrita, o que é uma imbecilidade. Não tem reciprocidade estrita nas relações internacionais, tudo é assimétrico. Nenhum país é igual ao outro. Você não imagina que você tenha milhares de americanos que queiram vir ao Brasil e se estabelecer ilegalmente. Uma família americana típica, um casal e dois filhos, se pensa em viajar ao Brasil já tem de gastar de 600 a 700 dólares só de visto. Com esse dinheiro eles já passam uma semana no Caribe. Então, o visto talvez saia para os turistas e para a facilitação dos empresários nos Estados Unidos. Não sei mais o que pode sair, de fato.
P. Politicamente para o Bolsonaro, o que representa essa visita?
R. É a glória porque ele é uma espécie de Trump brasileiro. Ele tuita, ele fala e aprova as posições do Trump. Falou que, assim como os Estados Unidos ia trocar a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, falou que a China compra o Brasil. Fico pensando o que a gente fez para merecer uma coisa dessa, uma indefinição completa dos interesses do Brasil. Tanto que os militares se encarregaram, mais uma vez, de cercear, de limitar, de controlar, de proibir essa transferência da embaixada – que constrangeu os exportadores de carne halal, a ministra da Agricultura teve de intervir – atacar a China é outra bobagem monumental e a questão da relação muito próxima com os Estados Unidos é uma subserviência, que nosso chanceler demonstra. É inaceitável para os militares essa subserviência aos Estados Unidos, assim como para qualquer pessoa de bom senso.
P. O senhor está sem função nenhuma no Itamaraty. Está indo só “bater o ponto”, sem trabalho algum?
R. Vou para a biblioteca, que é o que eu fiz durante anos no lulopetismo. Aliás, tenho de agradecer ao Celso Amorim [ex-chanceler] e ao Samuel Pinheiro Guimarães [ex-secretário-geral] por terem me dado a oportunidade de escrever dois ou três livros no período em que fiquei sem função alguma. De 2006 a 2010 eu só frequentava a biblioteca. Depois tirei uma licença, fui dar aula em Paris e ocupei um cargo secundário em um consulado nos Estados Unidos. Só voltei a ter algum cargo após o impeachment da Dilma Rousseff. Agora, voltarei ao "departamento de escada e corredores".
P. Mas o senhor fará pesquisas, sem produzir diretamente para o Itamaraty ou para qualquer outro órgão do Governo, que paga o seu salário. É isso?
R. É uma irregularidade administrativa que precisa ser resolvida pelo Itamaraty. Acredito que o Tribunal de Contas da União não admite que você receba sem trabalhar. Então cabe ao Itamaraty me dar uma função. Em toda a gestão lulopetista eu sempre fui ao chefe de administração e dizer que estava disposto a trabalhar. E, apesar de promessas, não me davam nada.
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