Em entrevista, brasileiro que assinou carta em que cientistas exigem que União Europeia vincule importação de produtos brasileiros à preservação ambiental fala sobre cenário atual de queimadas na Amazônia.
Se alguma questão relacionada ao meio ambiente no Brasil ganha repercussão internacional, logo amigos e vizinhos enchem de perguntas o brasileiro Tiago Reis, cientista que estuda ações de combate ao desmatamento e de uso do solo na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica.
"Querem saber se devem deixar de comprar produtos brasileiros, por exemplo", comenta ele, ressaltando que depois que os incêndios da Amazônia se tornaram notícia mundial, passou a ser acionado constantemente por conhecidos via WhatsApp.
Reis foi um dos proponentes de uma carta aberta, publicada em abril deste ano na revista Science, em que mais de 600 cientistas que atuam na União Europeia (UE) pediram que, durante negociações comerciais, o bloco vinculasse as importações oriundas do Brasil à proteção do meio ambiente.
"Somente em 2011, a UE importou carne bovina e ração para gado associados a mais de 1.000 km² de desmatamento no Brasil [o equivalente a mais de 300 campos de futebol por dia]", diz o texto, pedindo que o bloco europeu "fizesse da sustentabilidade o pilar de suas negociações comerciais com o Brasil".
Em entrevista à DW Brasil, o cientista conta que o grupo começou a se mobilizar ainda no ano passado, temendo que a postura do então candidato Jair Bolsonaro pudesse "resultar na desconstrução da política ambiental brasileira e, consequentemente, afetar as exportações brasileiras".
DW Brasil: Desde a publicação da carta, podemos elencar duas novidades: foi firmado o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia e, devido ao desmatamento e aos recentes incêndios, a Amazônia vem ocupando machetes no noticiário internacional. Como você avalia o atual cenário?
Tiago Reis: O acordo ainda não foi nem ratificado – pelos Parlamentos dos países do Mercosul e da Europa –, tampouco regulamentado. A Amazônia se tornou centro da atenção mundial por causa de dois fatores. É preciso lembrar que houve uma retomada do aumento do desmatamento: entre 2004 e 2012 o Brasil reduziu em cerca de 80% a taxa anual de desmatamento.
Em 2012 chegamos ao ponto de inflexão das políticas de combate e controle de desmatamento. O que restou dali deveria ser tratado com outras políticas públicas, como regularização fundiária, maior presença do Estado, construção de infraestrutura, subsídios e assistência técnica a pequenos produtores. Uma agenda positiva. Mas o que se observou foi o contrário: com a aprovação do Código Florestal de 2012, passamos a ver uma retomada dos níveis de desmatamento.
E em 2019, um novo pico foi observado. O fogo que aparece agora é só a consequência. Os incêndios são o sintoma. A causa é o desmatamento. O que são os incêndios? O sujeito acabou de desmatar uma área e ele precisa colocar fogo para limpar a área. Ou, de maneira mais primitiva, ele faz uma degradação da área, uma extração seletiva e ilegal da madeira. No que resta da floresta ele põe fogo. A floresta em si é úmida e não pega fogo. Então, o fogo é ou em uma área já desmatada ou já muito degradada ou na borda da floresta que já está comprometida e com sua estrutura danificada pelo desmatamento próximo.
E de que maneira a postura do governo federal é avaliada?
Há discursos públicos do presidente a favor da mineração ilegal, da extração ilegal de madeira em terras indígenas e em unidades de conservação. Isso é crime. Porque o governo federal tem a prerrogativa, a obrigação constitucional de promover ações de conservação do meio ambiente. Ou seja: o governo brasileiro está cometendo crimes por atuar de modo inconstitucional ao não cumprir sua obrigação de conservação do meio ambiente. O fogo pode ocorrer todos os anos. A diferença é que no passado o governo lutava contra, havia uma política de combate. Hoje temos um governo que ativamente promoveu condições para isso.
O grupo de signatários da carta aberta segue em contato? Há perspectivas de novo posicionamento?
Seguimos em comunicação. A carta se desdobrou em um movimento, e nosso objetivo é fazer com que o comércio entre União Europeia e Mercosul se torne sustentável. Atualmente estamos trabalhando em articulação, realizando reuniões estratégicas com tomadores de decisões, incluindo tanto integrantes da Comissão Europeia como membros de partidos políticos europeus e organizações não governamentais. Estamos trabalhando também em um artigo científico com base em dados e evidências científicas direcionados à formulação e execução de políticas públicas. Queremos detalhar, testar e mostrar como as diretrizes sustentáveis que pedimos poderiam ser de fato implementadas na política comercial europeia, demonstrando a viabilidade da aplicação concreta delas.
Qual a avaliação de vocês quanto ao impacto da carta publicada pelo grupo?
Tivemos um engajamento muito forte de alguns parlamentares europeus. Eles levaram as nossas considerações para debates no Parlamento Europeu e em alguns parlamentos nacionais, como na Alemanha, na França e na Irlanda. Nós também participamos de mobilizações. Nossa carta ajudou a pautar a relação do comércio internacional com o desmatamento, trazendo o tema para o centro do debate. E qualificamos o debate: este é o papel da ciência. Mostramos a responsabilidade: grande parte do desmatamento é associada a commodities de exportação. Tudo isso é explícito e evidente. Nós fazemos um apelo para que a política europeia de comércio internacional seja condizente com as preocupações ambientais de toda a comunidade europeia, de toda a sociedade europeia.
Do ponto de vista científico, qual seria ou quais seriam as melhores soluções imediatas para conter o problema do desmatamento na região amazônica?
Há uma série de eixos e trabalhos que seriam necessários: identificação de marcação de unidades de conservação, identificação e demarcação de terras indígenas, regularização fundiária, assistência técnica para pequenos agricultores familiares. O fogo às vezes é usado como maneira primitiva para limpar uma área, um pasto que precisa rebrotar com a chuva. O pequeno produtor, muitas vezes, faz isso porque não tem outros meios, outras soluções – precisamos oferecer essas soluções. O desmatamento grande, por sua vez, muitas vezes é ligado a crimes: daí a melhor solução seria uma maior presença do Estado.
Toda a redução do desmatamento que conseguimos entre 2004 e 2012 na Amazônia resultou da presença do Estado. Nesse período, entretanto, só houve a presença negativa do Estado, com punições e controle, multas, toda a parte negativa. Ela funciona, mas não muda a dinâmica, a lógica do desmatamento. Portanto, junto a elas, é preciso implantar também ações positivas: incentivos econômicos à produção sustentável, assistência técnica e capacitação a pequenos produtores que ainda utilizam técnicas primitivas e infraestrutura básica para que as populações locais fiquem menos vulneráveis à cooptação de grupos criminosos.
Fonte: DW Notícias
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